Papo com Chris Ware

Entrevistei o Chris Ware para uma matéria publicada na Galileu de setembro. Tenho certeza que ele é uma das mentes mais iluminadas dos nossos tempos, talvez a mais brilhante do mundo dos quadrinhos. Jimmy Corrigan, Lint e Building Stories estão entre as coisas mais belas, apaixonantes e interessantes que já li e vi. Em breve posto por aqui o texto publicado na revista. Por enquanto, segue a íntegra da nossa conversa por email. A foto aqui de cima foi feita na Edinburgh International Book Fair.

Building Stories é composto de 14 publicações e você não determinou a ordem de leitura dessas impressões. Fiz uma conta matemática utilizando análise combinatória e conclui que são possíveis 87 bilhões, 178 milhões, 291 mil e 200 leituras diferentes do quadrinho. Durante a produção de Building Stories você tinha consciência dessa quantidade de possibilidades?

Bem, não. Acho que desconfiava levemente que a quantidade de leituras possíveis tinha potencial para ser matematicamente impressionante, mas não tanto assim. Você está inventando isso? Eu queria de fato criar um livro sem começo ou fim, que tentasse refletir vagamente a forma como alguém é capaz de penetrar, de uma vez só e a partir de várias perspectivas, a própria memória, levando em conta as incontáveis formas como essas memórias são reunidas, mesmo que as experiência sendo narradas sejam mais ou menos consistentes e mutáveis (apesar de haver no livro contradições e esquecimentos intencionais, que eu espero que reflitam os erros e as reescritas que constantemente infligimos a nós mesmos).

Uma pessoa pode ler um livro ou um quadrinho, ver um filme ou assistir uma exposição da forma que quiser, até de trás pra frente. No entanto, essa sequência de leitura costuma ser estabelecida pelo autor. Qual a sua intenção ao dar tamanha liberdade ao leitor?

Costumo me surpreender com a minha facilidade em me perder facilmente em uma memória da minha infância, a ponto de até perder temporariamente a conexão com o presente. Ao mesmo tempo, ainda vivem dentro de mim as falsas memórias que criava, quando criança, de como poderia ser a minha vida como adulto; parecia absolutamente impossível que eu iria crescer, me tornar um homem e até ser pai, assim como hoje parece cada vez mais impossível que eu já tenha sido uma criança. Um das razões pelas quais acho que nos sentimos compelidos a contar e recontar histórias sobre nós mesmo é que nossas memórias tornam-se simplesmente cada vez menos críveis a medida que envelhecemos: como elas são dependentes de linguagens, parecem secar com o tempo. É quase como se estivéssemos reidratando-as a cada vez que as contamos.

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Em Desvendando os Quadrinhos, Scott McCloud diz que uma definição precisa para quadrinhos seria “imagens pictóricas justapostas em sequência deliberada”. Você não deliberou a sequência de leitura de Building Stories. É possível dizer que seu trabalho põe em xeque a definição de McCloud? Ou então que Building Stories vai além da compreensão que se tem de quadrinhos?

Eu cursei uma faculdade de artes, então acredito que tem sempre uma voz dentro da minha cabeça me incentivando a ir além ou a tentar fazer algo que nunca foi feito, mas não faço nada por fazer; faço para tentar alcançar as verdadeiras texturas e estruturas da realidade e da memória como eu as percebo. Acho que o potencial dos quadrinhos para capturar o fluxo e refluxo da consciência em toda sua complexidade visual e linguística foi muito pouco explorado, principalmente por eu achar que histórias em quadrinhos são por definição uma arte da memória. E eu tento expandir essa concepção em quase tudo o que faço,de preferência sem alienar o leitor durante esse processo. A utilidade desse meu esforço pode ser questionada, é claro.

Quero genuinamente criar algo interessante, atraente e respeitável para o leitor. Há tantas outras mídias fáceis de serem engolidas por aí que acredito que nós cartunistas precisamos nos esforçar cada vez mais para competir – por falta de uma palavra mais esportiva. Acredito que é um tipo de situação desafiadora mas também saudável no fim das contas.

De onde veio a inspiração para o formato de Building Stories? Vi comparações de Building Stories com La boîte-en-valise, de Marcel Duchamp, foi uma referência para você?

Foi sim, junto com as caixas de Joseph Cornell,  que acho que também serviram de inspiração para a obra do Duchamp. Considero o Jospeh Cornell um dos mais importantes artistas do século 20 e, com o passar do tempo, ele deve crescer ainda mais em qualquer cânone artistico e histórico independente de investidores e colecionadores (ou seja, todos aqueles que simplesmente amam arte e não aqueles que investem nela). As esculturas de H. C. Westermann também me inspiraram bastante: ele é um poeta no estilo do Joseph Cornell, mas diferente, mais robusto e compacto.

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Qual foi a reação dos seus editores quando você explicou o formato de Building Stories? Houve algum tipo de apreensão ou sugestão de simplificar a obra?

De forma alguma. A Pantheon se esforçou ao máximo para encontrar uma maneira de produzir o livro exatamente como convebi  (e eu ressalto a importância de que todas as publicações do livro tenham sido feitas do mesmo papel, apesar dos diferentes formatos) e por um preço acessível. Queria que fosse o mais próximo possível de uma obra de arte, pelo preço mais baixo. E eu também não queria que ninguém se sentisse mal se resolvesse jogar a coisa fora.

Você conhece o trabalho de Randall Munroe em seu site, Xkcd? Na tira Click and Drag (http://xkcd.com/1110/) ele permitiu que o leitor determinasse o rumo da história e é provável que o número de leituras possíveis seja até maior do que o de Building Stories. Você conhecia esse trabalho?

Não, no entanto parece certamente interessante, obrigada por me mostrá-lo. Quando eu era uma criança, houve uma breve moda de livros chamada “Escolha sua Própria Aventura” (Choose Your Own Adventure) – eram brochuras baratas, com histórias precursoras das narrativas de video-game. Essas histórias tinham várias bifurcações e o leitor podia escolher qual seguir; eu as achava fascinantes, mas confusas, já que eu passava a maior parte do tempo pensando em como o escritor concebeu a história do que me perdendo na história em si.

Mais uma vez, a estrutura de “Building Stories” é tal que a narrativa básica e a cronologia são consistentes e essencialmente compreensíveis. A experiência verdadeira, espero, é  que o leitor se sensibilize independentemente da maneira como ele entenda a história, seja como um livro sobre uma mulher nos anos solitários da juventude ou como uma história recordada pelo ego maternal de meia idade dela, etc. Acho que não é diferente de como quando conhecemos alguém, nós juntamos fragmentos de ideias dos outros por meio de histórias e memórias que eles nos oferecem, mas nós nunca conhecemos a pessoa como um todo. Essencialmente, é um senso de empatia o que eu espero despertar no leitor, tanto pelos personagens no livro, e, além disso, por pessoas reais.  E empatia é a habilidade mais importante que alguém pode aprender na vida, e uma das mais difíceis de manter e ajustar. É a razão pela qual temos linguagem e arte.

Jimmy

Em vários de seus trabalhos você incluiu detalhes às vezes difíceis de serem notados pelo leitor. São quadros, textos e ilustrações extremamente pequenos que não sei se todos conseguem perceber. Pra você, a leitura de seus trabalhos só será plena com leitura desses detalhes?

Não sei…É impossível controlar o que uma pessoa lembra ou esquece de um livro, mas acho que os melhores livros são aqueles longos e complicados o suficiente pra nos fazerem esquecer o começo antes mesmo de chegarmos ao fim. O que alguém memoriza ou considera importante está mais ligado às experiências que essa pessoa teve na vida do que com as minhas, eu acho (ou pelo menos espero).

Você já está desenvolvendo algum próximo projeto? Ele é tão complexo quanto Building Stories ou sua leituras tende a ser mais convencional?

Estou trabalhando em outro livro longo, mas será mais tradicional em termos de encadernação. No entanto a história é tão fragmentada, ou até mais, do que Building Stories. Enquanto quadrinhos forem voltados para adultos, não os considero realmente convencionais, pelo menos não por enquanto.

Pelo formato e o excesso de detalhes de Building Stories, é difícil que ele ganhe publicação em outras línguas além do inglês. Você sabe de algum outro país em que a obra tenha sido lançada ou há o planejamento para se publicar?

Sim. “Building Stories” vai ganhar uma edição francesa no ano que vem ou no próximo, quando eles conseguirem acabar de traduzir e letreirizar. E é claro que não sinto qualquer inveja das pessoas incumbidas dessa missão.


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