Autor do livro Os Quadrinistas, Télio Navega vê o atual cenário independente de HQs brasileiras como “fora da curva”

O jornalista e designer Télio Navega é uma das principais autoridades brasileiras em histórias em quadrinhos. Como repórter do jornal O Globo, ele assinou por vários anos a coluna Gibizada no caderno Megazine, depois transformada em blog no site do diário. Seus muitos anos de cobertura do mercado de quadrinhos resultaram no livro Os Quadrinistas (R$40, Zarabatana Books), uma coletânea de 25 perfis sobre 28 artistas que será lançada no Festival Internacional de Quadrinhos em Belo Horizonte, nos próximos dias. A obra surgiu a partir de uma série de seis perfis publicados por Navega no suplemento Prosa & Verso de O Globo em 2009. A seleção de autores perfilados pelo jornalista reflete a riqueza e variedade de estilos dos quadrinhos publicados no Brasil nas últimas décadas.

“Acredito que o cenário independente de autopublicação de HQ brasileira é algo, mesmo, fora da curva. Ninguém precisa necessariamente de uma editora se não quiser. Se o autor quer ser lido, com urgência, e não importa por quantos, vai lá e faz. Isso é revolucionário”, comenta o autor do livro em entrevista por email. Os 28 artistas com perfis na obra são: José Aguiar, Danilo Beyruth, Vitor e Lu Cafaggi, Renato Canini, Marcelo e Magno Costa, Cynthia B., Marcelo D’Salete, André Diniz, Gustavo Duarte, Luiz Gê, Eloar Guazzelli, Adão Iturrusgarai, Laerte, Marcelo Lelis, Marcatti, Mário César, Mauricio de Sousa, Fábio Moon e Gabriel Bá, Lourenço Mutarelli, Marcello Quintanilha, Rafael Coutinho, Shiko, Allan Sieber, André Toral e Fabio Zimbres.

Bati um papo por email com Navega sobre o livro. Ele falou sobre as origens da obra, as entrevistas que deram origem à publicação, seu longo período de experiência cobrindo o mercado brasileiro de quadrinhos, a presença cada vez mais limitada de jornalistas especializados em HQs na grande imprensa e outros tópicos bem legais. Papo massa. Saca só:

Os primeiros perfis do livro surgiram a partir de algumas matérias que você produziu pro Prosa & Verso. Mas quando você teve a ideia do livro?

Tive a ideia de produzir o livro em meados de 2014, antes mesmo de sair do Globo, jornal em que atuava, fundamentalmente, como designer. Sempre desejei dar continuidade aos seis perfis que saíram publicados no Prosa e Verso em 2009. E, ainda que eu tenha utilizado no livro algumas declarações colhidas ao longo de dez anos de cobertura de quadrinhos, principalmente no Gibizada, escrevi a maioria dos perfis do zero, a partir de novas entrevistas. Muitas, pessoalmente. Outras, por skype. E algumas, por email.

Dentre os nomes que você selecionou é possível notar uma variedade de estilos, origens e gêneros. Como você fechou nesses 28 nomes?

Foi difícil chegar aos 25 textos, sobre 28 autores. Procurei, modestamente, conversar com quadrinistas dos mais variados estilos, que representassem, a meu ver, a HQ brasileira. Espero ter conseguido. Afinal, sempre fui leitor do gênero. E gosto de todos os 28 autores que escolhi. Sempre tive, em minhas estantes, as HQs deste time.

E como foi a produção do livro? Você já conhecia o trabalho desses quadrinistas e imagino que já tivesse entrevistado quase todos eles. Você voltou a conversar com eles apenas pro livro? Quanto tempo gastou nessas conversas?

A produção do livro foi prazerosa, apesar de árdua, pois fiz questão de entrevistar todos os autores. Só não consegui conversar novamente com Renato Canini, que faleceu em 2013. Mas fiz questão de atualizar o perfil do desenhista. Acredito que eu tenha levado seis meses nas entrevistas, e mais uns seis escrevendo.

O Gibizada sempre teve um cuidado muito grande de contextualizar cada obra e artista para leitores não habituais de HQs. O livro segue essa mesma linha? Ele é pensado tanto para quem costuma ler quadrinho e conhece os nomes perfilados por você quanto para leitores de primeira viagem?

Acredito que sim, mesmo que não tenha sido uma escolha consciente de minha parte. Talvez seja algo natural para quem passou tanto tempo escrevendo em jornal, para leitores dos mais diversos tipos.

Imagino que sua relação com hqs venha de infância, mas acredito que seu envolvimento profissional cobrindo essa área tenha mudando seu olhar em relação aos quadrinhos. É uma pergunta que pode render todo um outro livro, mas quais você acredita terem sido as principais transformações que o universo dos quadrinho passou desde o início da sua carreira cobrindo essa área?

Antes de eu começar a escrever sobre quadrinhos, era apenas um leitor. Depois, continuei a ser um leitor, mas passei a ser cobrado. Até de mim mesmo. Passei a querer ler mais e mais. Tudo que podia. Principalmente de HQ nacional. Sempre acreditei que mais pessoas deveriam conhecer um trabalho que eu tinha lido e gostado. Daí a razão da existência do Gibizada. Acredito que, nos últimos tempos, a HQ nacional ficou mais autoral, com mais variedade de estilos. Acredito que dê para ver isto através do livro. Todos os quadrinistas que escolhi são autores que se destacam no gênero. Mesmo o Canini, que ousou dar a sua visão de carioca ao Zé Carioca. Ainda que o desenhista gaúcho nunca tenha conhecido o Rio de Janeiro.

Outra pergunta que também pode render pra caramba. Esses quadrinistas que você escolheu foram selecionados a partir das obras deles. Você consegue escolher uma hq essencial de cada um deles? Ou listar aquelas que você considera mais essenciais da história recente dos quadrinhos brasileiros?

Essa pergunta é cruel. Poderia passar um dia inteiro listando HQs dessa turma. Em minha opinião, todos nós, leitores, descobrimos os autores após a leitura da obra. É assim quase sempre, acredito. Descobri o Marcatti por acaso, lendo a Chiclete com Banana. E gostei tanto da podridão que corri atrás de mais. Com Laerte foi a mesma coisa. Ler HQs como a do Batman arreando as calças para os Piratas do Tietê formou o meu caráter.

É difícil analisar um contexto que estamos vivenciando, sem o devido distanciamento. E tendemos sempre a acreditar que a realidade que estamos vivendo é especial por algum motivo. A história das HQs brasileiras é muito vasta. Mas você vê algo atípico rolando nesse universo atualmente? Algo que você considera ser fora da curva?

Acredito que o cenário independente de autopublicação de HQ brasileira é algo, mesmo, fora da curva. Ninguém precisa, necessariamente, de uma editora, se não quiser. Se o autor quer ser lido, com urgência, e não importa por quantos, vai lá e faz. Isso é revolucionário. Mesmo para mim, que fiz fanzines na adolescência. E inimaginável quando eu comecei a ler quadrinhos. Naquela época, o grosso era banca. Hoje, o forte é livraria ou independente. A pluralidade de estilos é outra coisa que me chama a atenção. Há para todos os gostos.

E imagino que você tenha material pra ir além desse primeiro livro. Você acha possível uma continuação?

Sim, com certeza. Nomes não faltam. Mas, antes, gostaria de fazer uma versão estrangeira, com 25 gringos. A ideia seria a mesma: partir de entrevistas com alguns autores que já entrevistei, como Craig Thompson, Joe Sacco, Don Rosa, Guy Delisle, Milo Manara… e atualizar, com novos papos.

Eu cresci lendo a Gibizada. Hoje há uma efervescência e um aparente público maior leitor de HQ. Quando a coluna começou eu acho que essa realidade atual ainda era difícil de ser imaginada. Como foi propor uma coluna de quadrinhos em um grande jornal como o Globo? Seus editores sempre foram receptivos ao projeto?

Quando propus ao editor de cultura do site do Globo, Rodrigo Pinto, um blog sobre quadrinhos, eu era apenas um designer de jornal que adorava gibis. Ainda assim, ele curtiu e apoiou a ideia com entusiasmo. Depois, com a boa receptividade do Gibizada, consegui, enfim, emplacar pautas no papel. Mas sempre foi uma luta. Acredito que ter publicado na capa de um Segundo Caderno, recentemente, uma entrevista com Don Rosa, um autor de quadrinhos “infantis”, foi uma vitória. Mas eu não fui o primeiro, no Globo, a escrever sobre o tema. Antes de mim vieram desbravadores como Tom Leão e Eduardo Souza Lima, por exemplo. É uma batalha sem heróis, na verdade, pois os quadrinhos ganharam mais espaço em todas as mídias, como cinemas e livrarias.

E junto com o que você escrevia, eu ainda lia outras colunas de quadrinhos. Tinha a Balão do Diego Assis na Folha, numa época que o jornal também publicava muito mais textos do Paulo Ramos. Mais pra frente o Rodrigo Fonseca também teve uma coluna sobre gibis no Jornal do Brasil. E o Érico Assis ainda escrevia pro Omelete. Ainda há matérias sobre hqs publicadas pela ‘grande imprensa’, mas parece haver menos espaço numa época em que o mercado brasileiro de hqs está mais agitado do que nunca. Você concorda com isso? Vê algum motivo para isso estar acontecendo?

Há menos espaço para os quadrinhos hoje em dia na grande imprensa porque os jornais impressos estão em crise. Os cadernos de cultura estão menores, assim como suas equipes. Proporcionalmente, há menos jornalistas que leem quadrinhos. O Diogo Bercito continua na Folha, mas, agora, ele é correspondente, com outras prioridades, imagino. Paulo Ramos tem se dedicado mais à carreira acadêmica. Rodrigo Fonseca sempre escreveu mais sobre cinema, outra de suas paixões. Érico Assis escreve em seu blog pessoal, mas a tradução e a carreira acadêmica vêm na frente, suponho. E eu abandonei o jornalismo pelo design. Tudo é uma consequência da crise do formato jornalístico. O que não deixa de ser uma ironia, já que nunca se publicou tanta HQ. Sonho com o dia em que os quadrinhos serão tratados pelos cadernos de cultura como o cinema e a música, com repórteres exclusivos. Mas acho que os jornais, ao menos os impressos, morrem antes. É preciso tempo e conhecimento para escrever sobre HQs. Não é fácil.

Pra terminar, uma curiosidade. Como começou seu envolvimento com HQs? Você lembra do primeiro gibi que leu? Lembra da primeira obra que despertou seu interesse real por gibis?

Cara, estou velho demais para lembrar disso. Mas dedico meu livro à minha falecida avó materna, que, mesmo não tendo sido alfabetizada, me estimulou a ler, com muitos quadrinhos. Gibis da Ebal, da Bloch… Alguns ainda sobrevivem na casa de minha mãe. E comecei a escrever sobre quadrinhos na faculdade, num fanzine chamado Das Dores. A clássica bienal de quadrinhos de 1991, no Rio, foi um forte estímulo.


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