Cynthia B. e a criação de Estudante de Medicina: “Se eu não estiver falando a verdade, mas estiver falando a verdade no fundo, quem vai saber? Foda-se. Sou eu, mas não sou eu”

Estudante de Medicina retrata os sete anos da quadrinista Cynthia B. na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ou quase isso. Segundo a autora, o livro não é uma biografia ao pé da letra – alguns dos fatos protagonizados por ela na HQ podem ter sido vivenciados por outras pessoas, por exemplo. Ainda assim, o álbum gira em torno das dúvidas e questionamentos da artista em relação à sua vocação profissional e o curso universitário escolhido por ela. O livro recém-lançado pela Veneta é o passo seguinte e mais maduro de uma das mais interessantes quadrinistas do país. Estudante de Medicina cumpre as altas expectativas criadas em torno de uma carreira construída em torno de pérolas como a já clássica Meu Aborto em Quadrinhos e o segundo número da coleção Ugritos, Germes.

Também recém-lançado na França, pela editora Vraoum!, com o nome de Carabin & Caipirinha, Estudante de Medicina começou a ser produzido por Cynthia quando ela ainda estava na faculdade. A obra foi finalizada durante o período da artista como uma das residentes da Maison des Auteurs na cidade de Angoulême, onde ela ainda reside atualmente. Conversei com a quadrinista via Skype sobre a produção do quadrinho, suas principais reflexões durante a criação do álbum, as tramas pessoais tratadas por ela na HQ e o conteúdo científico do livro. Papo bem bom. Ó:

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“O legal mesmo foi o momento em que eu falei: ‘foda-se se aconteceu ou não!’. É baseado na minha vida, mas é muita coisa inventada, muita coisa juntada, coisas de épocas diferentes ou com outras pessoas que encaixaram bem na história”

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Quando você teve a ideia de fazer o quadrinho?

Comecei a fazer o quadrinho quando ainda estava na faculdade. Eu tinha umas 80 páginas prontas, mas foram os primeiros quadrinhos que fiz, então são muito feios (risos). Tinha esse projeto de livro o tempo inteiro, mas aí fui trabalhar na Toscographics e as coisas foram acontecendo. Aí quando eu soube dessa residência, pronto! “Vou lá e fazer o livro”. Eu não gostava mais de alguns dos desenhos e também queria fazer uma história um pouco mais unificada. Eram muitos causos curtos na versão original e eu também estava tentando recolher todos os fatos, pra fazer um negócio meio realista. Depois eu concluí que foda-se, incluí coisas que não aconteceram comigo com outras que aconteceram comigo… Tentei juntar pra contar uma história maior. Ainda é muito fragmentado, né? Não é uma história só e fluida, mas eu tentei.

Quando você foi selecionada pra residência já precisou apresentar qual seria a história que pretendia contar?

Eu tinha que fazer três páginas do projeto. Eu tinha 80, mas mesmo assim eu refiz as três que apresentei – e que acabaram nem entrando no livro. Aí, quando cheguei aqui, fiquei muito tempo trabalhando no roteiro. Então eu já tinha cadernos e cadernos de histórias da época, tinha alguns quadrinhos prontos. A minha bagagem pra França veio cheia de sketch books que eu tinha desde a minha época da faculdade. Aí vi tudo, fiquei pegando o que achava interessante. Fiz uma pilha de papéis com temas e palavras-chaves, colei tudo numa parede, aí fui juntando e tirando, achei que ia fazer em dois volumes e depois tirei mais, dessa bagunça toda saiu o livro. Não tenho mais nenhum plano de fazer um segundo, mas foi muito um trabalho de tirar coisas e juntar coisas pra conseguir ter uma parada realizável com alguma coerência.

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E como funcionava a residência? Os outros artistas e quadrinistas de alguma forma te ajudavam a pensar e editar esse trabalho?

A Maison des Auteurs é pra profissionais, não é pra estudantes. É um bando de gente que fica nos seus ateliês e tem umas festas, a gente se encontra e vai pro estúdio de alguém. Eu não vou muito porque sou muito tímida e não gosto muito quando as pessoas visitam o meu espaço. Mesmo assim você conhece as pessoas, conversa com elas, fala sobre quadrinhos, sobre a forma de trabalhar. É um ambiente muito de quadrinhos, bem legal pra produzir um projeto, entrar dentro do negócio.

E como você chegou na editora aí na França? A residência já ajudava com algum contato?

Não. Na real o que rolou foi que um cara da residência passou um email com todos os nomes de editores, uma lista, e aí peguei um por um e mandei email pra todos, com cinco páginas do projeto traduzidas pra inglês, eu não sei escrever em francês. Aí mandei pra toda essa galera. Aí a Vraoum! me respondeu falando que tinha curtido, teve o Festival de Angoulême com uma exposiçãozinha com os trabalhos da Maison. Fui na mesa do editor, falei “oi” e ele disse que viu meus quadrinhos na exposição e que pra ele tava vendido. “Ah, ok”, né? Aí ele me deu o cartão dele e disse que a gente ia se falando. “Então tá”. Nos meses seguintes ficou uma conversa, demorou um tempo, coisa de contrato, e foi com ele que publiquei.

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O quadrinho tem algumas referências geográficas em relação ao Rio de Janeiro e também de música brasileira. Como ficou na edição francesa? O conteúdo é diferente do que saiu aqui?

Foi legal. Rolou isso tudo, a gente foi conversando e uma hora ele me disse que eu tinha que entregar o livro até início de novembro do ano passado pra ser impresso pro festival e a gente lançasse – na época eu ainda não sabia se a minha residência ia continuar e se eu voltaria pro Brasil. Aí ele não viu o livro. Outro dia ele até falou comigo: “Se eu tivesse lido o livro, talvez…”, enfim, rolaram questões com traduções e tal, mas no fim das contas ele não viu o livro antes de estar entregue. É exatamente o mesmo livro, o meu livro, pro bem ou pro mal, sou eu (risos).

Eu gosto dessa referência locais, acho que elas acabam tornando o livro ainda mais universal.

Pois é. Não sei se o cara teria implicado com isso. Até o título foi o cara que sugeriu, de colocar “caipirinha” aqui em francês. Eu gosto disso, sei lá, ver um filme da África do Sul com os personagens falando da realidade deles, tudo soa meio exótico. Não incomoda, você fica ligado pelo contexto o que mais ou menos é, né? Eu acho. Já as música eu fiquei na maior dúvida, se eu traduzia, o que fazia. Pra mim fazia parte, então não pensei se estava desenhando pros franceses, eu estava desenhando pra mim, sei lá. No final eu traduzi boa parte das músicas e coloquei uma referência no rodapé. Se a pessoa tiver curiosidade ela pode procurar.

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Como você disse, o quadrinho é uma reunião de causos, você não dividiu em capítulos, mas dá pra perceber onde começa uma coisa e termina outra, onde fecham os ciclos. Você produziu também pensando nesses ciclos e enredos menores?

Como eu falei, eu trabalhei com esses papéizinhos, então a coisa já tinha uma unidade. Eu mudei muito a ordem do livro e isso deu o maior trabalhão na real. Enquanto eu estava escrevendo tinha um processo assim: “Ah, essa história é muito parecida com essa então vou tirar, mas seu eu tiro essa ficam duas seguidas só de medicina, fica chato, então seria legal ter algo pessoal aqui no meio”. A ideia era ter um arco geral, a parte pessoal é mais fluida, a parte da medicina eu fui colocando onde era mais interessante, onde cabia. Foi um quebra-cabeça meio chato. Eram blocos que eu fechava.

E em relação ao traço? Você estabeleceu alguma estética padrão desde o começo? Tinha algo que você se propôs a fazer?

Eu fiquei pensando tanto nisso. É muito chato, cara… Aquela que só reclama! (risos) Mas é cada coisinha que precisa ser pensada, você deixa de fazer uma coisa pra fazer outra. Na real esse meu jeito de desenhar meio que surge num dia que vou na casa do Gabriel Góis em Brasília, há uns anos, e aí ele me fez redesenhar uma página cinco vezes. Aí foda-se, né? Ele pediu, eu fui tentar do jeito que ele tava falando. Refiz meio puta, né? “Quem é ele pra ficar falando o que eu tenho que fazer?” (risos). E saiu um negócio meio diferente que gostei, com mais preto, consegui controlar mais a página. Eu não redesenhei cada página do livro cinco vezes, mas foi algo que surgiu e segui. Também teve a história do aborto nesse estilo e pro livro eu continuei fazendo isso, mas também é um pouco chato seguir o tempo todo o mesmo estilo. Então acho que no final das contas, quando me vinha uma ideia diferente eu deixava rolar. Tem uma história que é totalmente sem preto, que fiz no meu sketch book e eu gostei dela do jeito que tava, aí deixei como tá, é um traço bem diferente. Eu curto daquele jeito a unidade do livro.

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Em algum momento você cogitou usar cor? As cores da história do aborto são muito bonitas.

Eu ia fazer colorido, mas pra falar a verdade quando eu estava fazendo… Tipo assim, me deu um medinho e o editor francês disse que queria em preto e branco, acho que também por ser mais barato, e na real fiquei meio aliviada. É o primeiro livro e eu já estava surtando com tanta coisa (risos), quando ele disse que não precisava das cores eu disse “Ok, então beleza! Então concentro no preto e branco e tá tudo bem”. Fiquei meio grata de ser em preto e branco e eu curto o gibi em preto e branco, não sinto falta de cor.

No seu quadrinho você começa a falar dos átomos e nucleotídeos logo nas primeiras páginas, achei que ele seguiria mais por esse caminho, mas não. Você refletiu em relação a até onde ia com ciência e qual era a história que ia tratar ali?

Boa pergunta, deixa eu pensar (risos). Como eu te falei, quando eu estava pensando a história, com os blocos, tinha histórias que eu gostava, cada uma de diferentes fases da Faculdade de Medicina. Na primeira parte a gente tem ciências básicas, né? O curso básico. Depois vamos lidando mais com pacientes e tendo outras coisas. A coisa que pensei mais assim, em termos do leitor se divertir ou não, foi de tentar intercalar bem pra não ter muita ciência perto de muita ciência e muita história pessoal perto de muita história pessoal, pra dar uma respirada. Fora isso, foi mais natural em relação ao fato de que a minha proposta não era de fazer um tratado sobre medicina ou ensinar qualquer coisa. Tipo, até aquele começo meio que não ensina nada pra ninguém, né? É meio que o ambiente, né? A medicina serve como o ambiente onde tudo se passa. Cara, que frase essa! (risos).

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E o quanto você ainda tinha essas informações frescas na sua cabeça?

Aquela primeira página me deu um trabalho da porra. Ela é muito básica, então cada palavra eu fiquei questionando, sabe? Mas é tudo cientificamente correto, pode ver todas as ligações covalentes, botei até os hidrogênios porque me deu vontade (risos). Eu escrevi: “Como toda coisa no universo o nosso corpo é feito de átomos”. Tudo no universo é feito de átomos? Peraí, um buraco negro não é feito de átomos. Então passei pra “Como quase tudo no universo”. Aí cada merdinha eu fiquei pensando pra não escrever uma besteira, mas é capaz de eu ter escrito, saca? Não sei. Se alguém falar que eu escrevi uma besteira eu aceito, mas tentei escrever algo cientificamente correto e não quis pegar a Wikipedia. É difícil escrever e deixar tudo certo.

Mas bateu alguma dúvida durante essa produção? Você conversava com alguém nessas horas?

Quando eu tinha alguma dúvida, se eu não lembrava bem a coisa, eu sentava e pesquisava um pouco.

E as histórias que você narra? Você correu atrás de alguém pra confirmar se aquela coisa aconteceu daquele jeito ou algo do tipo?

Na verdade, o legal mesmo foi o momento em que eu falei: “foda-se se aconteceu ou não!”. É baseado na minha vida, mas é muita coisa inventada, muita coisa juntada, coisas de épocas diferentes ou com outras pessoas e encaixaram bem na história. Realmente não é uma autobiografia, é baseado em mim e tal.

E quando rolou esse momento em que você conclui que podia fazer o que quisesse e que não iria se prender a fatos?

É uma parada quase… Os meus pais não curtem muito que eu faça quadrinhos e menos ainda que eu faça quadrinhos autobiográficos. Eles não gostam que eu fale da nossa vida privada. Então comecei a fazer quadrinhos autobiográficos e isso pegava mó mal. Minha mãe e minha família inteira odiavam, é um negócio muito chato. Aí eu fiquei meio travada, eu queria escrever a história que aconteceu, mas que merda que meus pais não curtem. Essa pressão me travava. Um dia veio essa: se eu não estiver falando a verdade, mas estiver falando a verdade no fundo, quem vai saber? Foda-se. Sou eu, mas não sou eu. Se a minha família ficar brava, beleza. Como eu me distancio um pouco me sinto menos julgada talvez. Enfim, é papo pro meu psicanalista.

O Joe Matt falou sobre isso numa entrevista. Alguém perguntou como ele conseguia namoradas, porque pelos desenhos é o maior filho da puta do mundo. Ele falou isso que eu falei: “sou eu, eu sou um filho da puta, não tô dizendo que não sou, mas lá eu sou um personagem, me dá prazer em fazer ele ser filho da puta”. A minha personagem não é filha da puta, mas é o mesmo distanciamento que eu queria ter e rolou.

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Você citou seu psicanalista, deve ser mais intenso do que uma sessão escrever isso tudo, né?

Ah, sim. Demorou anos pra eu escrever e desenhar o livro, a vida foi acontecendo e no livro é até mais light. Na época eu não conseguia imaginar a minha vida não sendo aquilo. Então todos os problemas eram muito sérios. Demorou um tempo pra eu conseguir me distanciar o suficiente pra eu conseguir contar uma história que não fosse uma confissão. É uma história.

Existe toda uma escola de quadrinistas que se propõem a fazer quadrinhos autobiográficos, mas também com esse distanciamento que você citou.

O próprio Crumb, né? Mas com ele eu sempre fico com a impressão de estar lendo ele de verdade, saca? Sem filtro, o que é lindo. O Joe Matt que me abriu a cabeça de pensar que pode ser você e não ser você ao mesmo tempo. Eu nunca parei pra pensar muito se o Robert Crumb é realmente a pessoa que ele desenha, mas…

Eu tava pensando aqui no Chester Brown.

O Chester Brown é outro nível de observação do mundo, ele é desvencilhado dele mesmo. É quase um Buda (risos), mas é um bom exemplo.

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E quais outras coisas que você leu e te influenciaram e foram referência durante a produção?

Deixa eu pensar um pouco… Cara, Dr. House e séries de hospital. Eu tava vendo agora pouco House aqui. É até engraçado porque não tem no livro uma história sobre o House que tava no original. Na faculdade a gente adorava House.

Mas tem a piada sobre a lúpus, que era a doença sempre cogitada na série.

Ah, é! Tem isso mesmo. A gente adorava ficar discutindo sobre House porque na UFRJ era sempre lúpus também. Lá é centro de especialidade de lúpus, poucos casos de sei lá o que e lúpus pra caramba. Existe essa piada que acabou não entrando.

De quadrinhos eu cito o Joe Matt, o Allan Sieber,…essa galera meio autobiográfica. No livro eu cito também o Woody Allen, é muito prepotente, né? Mas eu curto muito. Gosto dos finais que não são muito felizes e essa leitura do amor que ele tem.

E além do livro, tem algo legal daí, não necessariamente ligado a quadrinho, que você esteja curtindo?

Não tem nada a ver com quadrinhos, é mais pessoal, mas tava lendo agora o Jogo das Contas de Vidro do Herman Hesse. Eu tava ouvindo muito Alan Watts, os áudio-livros. Isso tudo tem me influenciado em termos de aceitar como contar história. De coisas legais aqui da França tem um artista chamado Pozla, esse livro Carnet de Santé Foireuse. Também tem o Édika, melhor coisa de blague visual que já vi em toda a minha vida, muito sensacional. Melhor coisa do mundo. Ele faz uns quadrinhos que são gags visuais o tempo inteiro, são histórias completamente insanas, tudo brincando o tempo todo com o fato de ser quadrinho. E ele desenha de um jeito tão engraçado…fiquei doida com ele. É tipo um Monty Python, nunca tem um final claro. Ele inventa uma parada e encerra o quadrinho, sabe? É muito doido. Tipo um Monty Python em quadrinho.

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