Papo com Felipe Portugal, o autor de Granizo: “Uma piada consegue ridicularizar a agonia humana e colocar a nossa crise de ansiedade de lado”

As 16 páginas em preto e branco de Granizo narram a jornada dos soldados Pipo, Zeca e Raimundo tentando sobreviver à chegada de um inverno cruel nos últimos instantes de uma guerra que eles não têm consciência que chegou ao fim. A publicação é assinada pelo quadrinista Felipe Portugal, em seu primeiro trabalho impresso em seguida à coletânea de tiras Narigudo. Também autor de Espiga e da HQ da sexta edição da Série Postal 2017, Portugal teve como principal inspiração para seu trabalho mais recente as histórias do escritor norte-americano Kurt Vonegut. Também é explícita sua influência pelas narrativa e pelos designs de página do quadrinista Chris Ware.

Publicado pela editora Ugra Press em formato tabloide e impresso em papel jornal, Granizo tem como temas principais a efemeridade da vida e a fragilidade dos seres humanos. Sem dúvida, uma das HQs mais singulares e interessantes lançadas no Brasil em 2018. Bati um papo rápido por email sobre o quadrinho com Portugal. Ó:

“Eu trabalho misturando elementos que considero complementares. Política e emoção, autobiografia e poesia. Agora comédia e guerra”

Você lembra do instante em que teve a ideia de criar Granizo? Você pode falar um pouco sobre a origem desse projeto?

Pra mim não existem histórias criadas num instante. Elas geralmente são uma amálgama de vários elementos que o autor observa e, depois de dias de reflexão, ele consegue chegar a uma síntese daquilo tudo. Nossa mente não trabalha muito bem com graduações. Pra você eu simplesmente criei Granizo, mas ao dar um zoom no processo artístico de qualquer pessoa você percebe que suas experiências diárias vão ajudando a juntar as peças que fazem o quebra-cabeça da obra final.

Eu trabalho misturando elementos que considero complementares. Política e emoção, autobiografia e poesia. Agora comédia e guerra. Não fui o primeiro a fazer isso, definitivamente. Meu autor de referência foi Kurt Vonnegut, um satirista norte-americano. Descobri seus livros em 2011 e desde então sou um grande fã da forma como o autor contava suas histórias.

Quando assisti o Dr. Strangelove, em 2016, fui criando na minha cabeça essa pequena ‘janela estética’ pra um universo parecido como o da história. Fiz uma curta série pro Instagram chamada Dr. Arrependimento, uma alusão direta ao filme. Vonnegut e Strangelove são as maiores referências pro que eu pretendia fazer.

Como eu te falei, histórias são criadas ao longo de um processo que envolve muitas coisas, não tem exatamente um estalo. Partindo dessa ideia, eu pretendo continuar trabalhando nesse universo do Granizo. Quem sabe um dia refazer a história, como o Chris Ware vive refazendo suas histórias, também. Só me sinto satisfeito quando sinto que consegui contar o que queria.

“O tema central do Granizo acaba sendo a banalidade da vida humana e, convenhamos, é um tema muito mais comum em nossas cabeças do que homens que vestem a cueca por cima da calça”

Por que uma história sobre a guerra? Quero dizer, esse não é um tema muito próximo da nossa realidade. Ou melhor, há várias cidades, bairros e contextos da realidade brasileira que encontram-se em guerra. Mas a nossa ficção não está habituada a retratar confrontos bélicos nos moldes como você retratou, concorda?

Achei curiosa a pergunta. Existem um milhão de quadrinhos por aí que abordam temas distantes da nossa realidade, ainda assim eles não geram espanto. Me perguntaram mais de uma vez o motivo de fazer uma história sobre ‘guerra’ – se é que dá pra resumir assim.

A guerra suscita dois debates que acho fundamentais para entendermos o homem moderno: a banalidade da vida contra a ideia do indivíduo portador de direitos inalienáveis. Você já reparou que existe uma disparidade entre o ideal e o real? É comum defendermos máximas como direito à vida, propriedade e liberdade, porém somos esmagados por instituições que violam esses princípios constantemente e temos em nossos genes um comportamento animal, que prima pela sobrevivência e o egoísmo – e aqui eu não estou fazendo um juízo de valor de nada disso.

Ou seja: racionalmente nós nos sentimos indivíduos, cidadãos, mas na realidade você estouraria os miolos de qualquer um que colocasse a sua vida em risco. Isso não é contraditório. É legítimo que você se defenda e preserve sua vida, mas ao mesmo tempo parece assustador enxergar os seres humanos na forma crua que eles são.

Este não é um tema restrito. Ele é universal. Eu só o ‘vesti’ de fuzis e capacetes. Então, como tratar de temas tão pesados de uma forma sutil? Comédia. Uma piada consegue ridicularizar a agonia humana e colocar a nossa crise de ansiedade de lado. Então o tema central do Granizo acaba sendo a banalidade da vida humana e, convenhamos, é um tema muito mais comum em nossas cabeças do que homens que vestem a cueca por cima da calça.

O quadrinho é curto e você acaba conseguindo desenvolver um pouco de cada um dos seus três personagens. Foi desafiador administrar a história que você queria contar e desenvolver os seus três protagonistas dentro de um espaço tão restrito?

O ‘desenvolvimento de personagens’ é um clichê narrativo, daqueles de livros sobre ‘como escrever roteiros em 10 lições’. Nós temos esses bordões e muitas vezes nem paramos pra pensar no que significa ‘desenvolver um personagem’. Pra mim, narrativas são vidas possíveis e desenvolver o personagem é tornar aquela história cada vez mais multilateral, aproximando a história da realidade. Nesse quesito, foi realmente algo novo pra mim.

Se foi desafiador? Não. Eu considero que uma tarefa é desafiadora se, ao terminar de fazê-la, você aprimora suas habilidades e ‘sobe um nível’. Francamente, eu não vejo muita diferença do Felipe do dia 1 de Granizo pro Felipe que terminou a última página. Infelizmente.

Um artista deve se desafiar para aprimorar sua técnica, estilo e até seu espírito. Porém o mais importante é saber como aprimorar. Não adianta, Ramon, desenhar mil páginas do mesmo jeito. Você não vai melhorar quase nada. Vale mais escolher os desafios certos do que se desafiar toda hora.

Acho explícita a influência do Chris Ware nesse trabalho, principalmente nas soluções visuais com ares de infografia e na disposição de alguns quadros. Eu quero saber como você construiu essa estrutura visual. Você chegou a finalizar um roteiro e só depois desenhou? Enfim, como foi o desenvolvimento dessa HQ?

A primeira etapa de produção é o texto corrido. Minha percepção sobre ideias é linguagem é a seguinte: temos sentimentos e palavras tentam traduzi-los. Você pode traduzir bem ou traduzir mal. Quando você traduz mal não consegue expressar seus sentimentos corretamente e isso gera angústia. Partindo desse princípio eu sempre escrevo a história num texto corrido antes de fazer um roteirinho desses que a gente aprende formalmente. Isso ajuda a entrar no clima da história e enxergar possíveis aberturas que você não achou que a história geraria.

A segunda é a produção do roteiro. Entendo a página como unidade mínima narrativa do quadrinho. Logo, cada página tem uma ‘mensagem singular’ que faz sentido no todo. Escrevo mais ou menos por páginas e vou marcando apenas as falas dos personagens. É a coisa mais simples do mundo.

No terceiro momento é a hora de fazer os rascunhos. É a parte mais chata, insuportável, laboriosa e desanimadora. Uma coisa é traduzir sentimentos com palavras, outra é traduzir com imagens. Não é à toa que bons pintores são coisa rara. É um baita problemão. Um artista narrativo resolve problemas. Ele é um idiota: inventa uma história da sua imaginação, como por exemplo: ‘mulher é encontrada morta num hotel’, e a partir daí tem que resolver esse problema que ele mesmo criou. Não é um trabalho de maluco?

Pensar sobre ângulos, disposição de quadros, formas de contar a mesma cena… tudo isso dá uma baita dor de cabeça. Já passei horas pra terminar uma maldita página rascunhada com bonecos palito. Ao final é só desenhar. Pra mim é uma etapa relaxante. Geralmente eu finalizo as páginas ouvindo música ou podcasts.

“Nossos alicerces são muito frágeis e nada como a guerra para nos lembrar que a morte está batendo na porta constantemente, esperando qualquer frestinha pra entrar”

Me fala também, por favor, sobre o narrador? Eu gosto como ele tem uma voz muito própria, como se tivesse contando a história pra alguém que não seria apenas nós, leitores. Quem é esse narrador pra você?

O narrador é quem faz a comédia. Me parece que, pra inserir algumas ‘metalinguagens’, seria necessário um narrador onipresente e onisciente. Um ‘Deus’ da história. Ele que faz os julgamentos morais, ele que comenta tudo que acontece. Então ele não só conta história, mas também oferece uma ‘moral’ pra tudo aquilo. Daí que vem essa sensação estranha de que ele não estaria só narrando.

Eu fiquei pensando no título da história, como Granizo dialoga com a banalidade e fragilidade da vida em vários aspectos. Esse quadrinho também é sobre isso? Sobre como as coisas podem ser fugazes, banais e passageiras?

Definitivamente. Como afirmei, a sociedade urbanizada que tem facilitações tecnológicas pra todas as atividades, talvez esqueça a banalidade da vida. Conceitos como liberdade, felicidade, realização pessoal, são o topo da pirâmide, não a base. Isso é importante pra quem já tem conforto, comida. Pra quem trabalha com arte, jornalismo, ciência. Qualquer mendigo trocaria a sua liberdade de expressão por uma casa quentinha.

Imaginemos a seguinte situação: todos os policiais desaparecem. Pronto, você acabou de nos transportar de volta para a pré-história. Nossos alicerces são muito frágeis e nada como a guerra para nos lembrar que a morte está batendo na porta constantemente, esperando qualquer frestinha pra entrar.

“O formato dos quadrinhos me parece a única coisa que tem blindado as HQs de terem o mesmo destino dos livros: a digitalização”

O formato do quadrinho é demais. Eu adoro a possibilidade de ler algo legal e barato. Me fale como você chegou nesse formato? Como você acha que o quadrinho e a leitura dele ganham por ter sido impresso em papel jornal, nesse formato tabloide?

Não foi uma ideia minha, foi do editor, Douglas Utescher. De repente ele me mandou uma mensagem falando dessa ideia de imprimir num formato de ‘jornal’ e a princípio eu estranhei. Posteriormente vi que a ideia se encaixava perfeitamente. O formato dos quadrinhos me parece a única coisa que tem blindado as HQs de terem o mesmo destino dos livros: a digitalização. Portanto talvez seja interessante apostar em formatos não convencionais para explorar essas possibilidades. Ainda assim, sou daquela ideia que muitos discordam que ‘divulgação’ pode sim ajudar a pagar as contas. Quadrinistas iniciantes deveriam cobrar o mais barato possível pelos seus quadrinhos. Isso é competição. Se eu for gastar mais de 40 reais num quadrinho, por que raios eu compraria o gibi de um autor desconhecido e não do Grant Morrison?

Quais são os seus próximos projetos? Quando veremos um novo quadrinho seu?

Que perguntinha difícil, viu? Uma HQ pela Balão Editorial está por vir e bem… De resto eu preciso primeiro entender o que eu quero fazer da minha vida em relação a arte e depois te dou uma resposta. Estou cheio de dúvidas e nessas condições não é prudente prometer nada.


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