Papo com Laerte

Para escrever sobre a Ocupação Laerte conversei durante quase uma hora com a quadrinista na semana passada, na sede da exposição. Havia entrevistado Laerte outras duas vezes: em março de 2013, quando escrevi pro Estadão sobre a cena de quadrinistas independentes de São Paulo, e em maio do ano passado, para uma matéria que acabou não saindo, sobre a exposição do Glauco na Caixa Cultural. Nessas duas vezes, o papo foi rápido, sempre por telefone. Falar ao vivo com uma das maiores artistas brasileiras de todos os tempos tem um outro peso. Meu texto saiu no Globo, com alguns trechos da nossa conversa. O foco foi a Ocupação, um dos grandes eventos do ano na área de quadrinhos no Brasil, mas fomos além disso.

Além dos quadrinhos da Laerte, o post está ilustrado com as fotos sensacionais do Rafael Roncato – o idealizador do Nankeen e dono de alguns dos álbuns de fotos mais legais da internet brasileira. A série completa de fotos dele com a Laerte tá aqui.

LaerteDivulgação

Segue a íntegra da entrevista:

Quando vocês receberam o convite para a exposição?

Ano passado, o Claudiney (Ferreira, gerente do Núcleo de Audiovisual e Literatura do Itaú Cultural) falou comigo. Perguntou se eu estava afim de fazer a Ocupação Laerte e gostei muito da ideia. Indiquei o Rafael pra ser o curador, ele topou e estamos fazendo.

As Ocupações são em espaços concentrados e exigem uma curadoria. Não é simplesmente reunir todos os trabalhos de alguém e pendurar em paredes.

Qualquer exposição implica em uma série de decisões. Decisões que podem levar pra um lado ou pro outro. A Ocupação do Angeli levou não só a dividir e editar o trabalho do Angeli, que também é monumental, em algumas zonas, distribuíveis dentro de um espaço físico, como também a construir uma cenografia a respeito. No meu caso não, a cenografia está só sugerida na ideia mítica do labirinto. Uma ideia que está presente, mais do que representada em cenários explícitos. Está indicada pelos caminhos.

Você já tinha trabalhado com o Rafael antes?

Já, no Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte no ano passado. Foi muito legal, uma experiência muito interessante, mas também houve alguns problemas que tentamos não reproduzir esse ano. E acho que está um sucesso. A Ocupação está muito mais enxuta, do ponto de vista de musculatura cenográfica, de retórica espacial. E está mais simples.

E você permitiu que o Rafael fizesse o recorte que ele quisesse, da forma como ele escolhesse expor?

Sim.

O que você achou da seleção que ele fez?

Muito boa. Eu tendo a me perder quando faço esse tipo de revisita ao meu trabalho, tanto que não faço, até pra evitar problemas. Tendo a me confundir e me perder e tal, então é muito bom que seja uma outra pessoa. Ao mesmo tempo outra e ao mesmo tempo próxima. Tem essa mistura desejável de alteridade com proximidade, pois é o meu filho e trabalhamos na mesma área.

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Não é a primeira vez que você tem seu trabalho exposto, mas como é ver seu trabalho reunido em um mesmo espaço e dessa forma?

Essa mostra é muito mais totalizante que a do FIQ. Ela era mais parcial, focada em alguns aspectos. Essa aqui tem, ao mesmo tempo, uma edição obrigatória e uma intenção de totalidade que acho bem sucedida, pro meu gosto está.

E qual o sentimento ao chegar aqui e ver tudo isso reunido?

Ai (suspiro produndo acompanhado de risos) Existem vários sentimentos. Não vejo com a mesma festividade toda a minha produção. Tenho sentimentos contraditórios em relação a várias obras. Não sei definir de um jeito só…Eu acho que…eu acho que o quê? Não sei o que eu acho (risos).

No texto curatorial o Rafael fala de várias linhas cronológicas sendo misturadas. A exposição está muito mais dividida em função de núcleos temáticos, certo?

Sim, porque cronologicamente muitas vezes essas coisas se decompuseram em fios diferentes que mais tarde foram reunidos. Eu não sei. Tinha uma época que eu tinha duas tiras diárias, por exemplo, e isso não fazia muito sentido (risos). Tive duas tiras diárias por arranjos conjunturais, para diferentes jornais, pro Estadão e pra Folha. Criei uma tira aqui e depois a Folha queria uma outra tira, mas não a mesma do Estadão…então tive uma época de manter duas tiras e depois três, e em alguns momentos comecei a fazer cruzamentos entre todas (risos) Então é isso sobre a linha cronológica. Pra não falar do arquivamento. O arquivo que eu faço é uma zona.

Você guarda tudo que produz?

Mais ou menos, mais ou menos. Como sempre fui eu mesma que fiz esse arquivamento, ele foi feito segundo o meu nariz, que pode ser muito bonitinho, mas é uma zona. Não consigo organizar coisas, desde casa até armário de cozinha, é tudo uma zona. Até que pro padrão de confusão que tenho, tá bem organizado, eu acho. Muitos originais estavam guardados e muita coisa se perdeu, lógico. Não sei precisar o quanto. Como se perdeu eu não consigo fazer a procentagem. Que nem o negócio do roubo do HD. O que se perdeu ali eu não sei onde vou encontrar. Não sei nem como procurar porque perdi a única referência que tinha, que era aquilo. Então estou indo meio no escuro.

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O Rafael também comenta no texto dele que ainda hoje existem várias Laertes. Existe um padrão no Laerte de hoje?

Em termos de público infantil tenho a Lola, que é uma andorinha e ela está razoavelmente sintonizada com o tipo de liberdade que me dou hoje. Eu liquidei os personagens, deixei eles de lado, e também deixei lado o modo de contar piadas e construir discurso cômico como eu fazia. Então, não sei, é evidente que acaba tendo um ar só, né? Um espírito só. Dizem que o Millôr jamais assinou duas vezes da mesma forma, o que quer dizer que ele nunca assinou diferente, ele sempre assinou do mesmo jeito diferente (risos). É isso, procuro lembra, revisitar, procedimentos que eu tinha quando era adolescente e jovem, antes de me profissionalizar. Isso me leva pra lugares muito interessantes, porque misturo isso com a minha experiência profissional. Pode ser criticável de diversas maneiras, mas ela é uma experiência, tem um peso.

Aqui tem mais de 40 anos de trabalhos seus. E o mundo mudou bastante nessas quatro décadas. Em termos de mudanças, no seu trabalho, há alguma mais significativa?

Há de ter né? Mas quem pode precisar isso melhor é quem está vendo de fora. Acho que estou razoavelmente a mesma pessoa. Me sinto mais ou menos a mesma pessoa, em termos das coisas que me preocupam no mundo e me movem. Mas acho que os temas estão diferentes…acho que estou jogando mais solto o discurso narrativo. Talvez antigamente eu tivesse uma necessidade de objetivar mais os roteiros. Não sei se me explico bem, mas hoje eu conto mais com as possibilidades aleatórias que ocorrem numa narrativa e que podem ocorrer. Dou mais chance para as possibilidades mais ou menos aleatórias entrarem. Não estou produzindo uma obra aleatória, estou produzindo uma coisa razoavelmente perto que fazia, mas me permito mais uma linguagem poética, um sentido que pode ser chamado de obscuro (breve silêncio) Mas que não é obscuro (risos).

Há 40 anos, quando você começou, ainda não era possível imaginar a internet e a forma como hoje as pessoas consomem informação.

Nem me fala…

Hoje você está muito mais próximo dos seus leitores não é?

De fato, na minha juventude nem contava com isso. É o tipo de coisa que a gente, e a gente que eu digo são as velhas que nem eu assim (risos). A gente imaginava as fantasias tecnológicas do ano 2000 muito mais no aspecto da urbe. Aliás é interessante fazer esse trabalho hoje. Apesar de obras como a do George Orwell, como 1984, já terem apontado para esse rumo da comunicação, eram muito mais visíveis as projeções urbanísticas, com carros voando, cidades completamente ecológicas e sei lá o quê (risos) E nada disso aconteceu, o que aconteceu foi essa parte de evolução rápida e intensa como a dos comunicações. A ponto de não sabermos mais o que é um telefone. Eu tenho um telefone e as pessoas olham e me perguntam se é um computador, não é. Enfim, essas coisas são inesperadas e trazem um mundo que é povoado por fóruns, dos mais diversos possíveis. Pra mim, me encanta mais do que assusta. É meio assustador sim, mas acho mais encantador do que assustador (risos). Sei que tem muita gente que me odeia ha muito tempo, acho que muito tempo antes da internet eu já sabia que tinha gente que me odiava (risos).

Mas as pessoas hoje, pela internet, estão deixando aflorar mais explicitamente suas opiniões? Ainda mais nos meses de campanha que estamos vivendo?

Todo mundo fala que a internet é permanente e prioritária na vida cotidiana, pro bem ou pro mal. É, é isso aí, pro bem ou pro mal. Já vi pro mal e já vi pro bem. É possível você convocar um ato público hoje, como a gente convocou sábado passado, um ato público contra a homotransfobia, e reuniu um número de gente que de outra forma seria difícil, muito difícil, fazer. Ao mesmo tempo, há campanhas de difamação, você pode enfiar o dedo na Wikipedia dos outros (risos) Esses negócios também são possíveis e relativamente fáceis. A Wikipedia é um terreno absolutamente aberto, qualquer um pode entrar lá e mexer né? (risos) O que fazer com isso? Não sei. Voltar atrás não dá né? As candidaturas estão tanto se prejudicando quanto se beneficiando desses atributos da modernidade, da internet. Há tanta gente convocando uma vaia quanto convocando um coro. Não sei mais como desenvolver além disso.

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E depois de ver a exposição e seu trabalho reunido, você consegue imaginar qual será o próximo Laerte?

Não tem próximo, o próximo já é o que eu sou hoje. Tenho a perspectiva de trabalhos novos. São coisas nas quais estou trabalhando e já estava trabalhando no ano passado. Há alguns projetos narrativos por aí. O principal deles é uma espécie de continuação do que estava mais ou menos configurado no Laertevisão, que é uma linha memorialista. Não é memória estrita. É uma construção semi-autobiográfica. Ou auto-semi-biográfica (risos). Algo que abarque o período onde o Laertevisão parou, ali pelos anos 60, deu uma pincelada no início dos anos 70. A ideia é pegar isso assim, a minha maturidade, a minha vida adulta, e desenvolver algumas narrativas, de memória e de ficção também. Isso eu tô fazendo já, juntando elementos para construir isso aí.

Também seria para a Companhia das Letras?

Para a Companhia, sim. Está combinado para a Companhia, não está agendado ainda porque sequer comecei esse trabalho na prática. Quero dizer, comecei na prática, mas não tenho ainda uma projeção de tempo que vai demandar, quantas páginas vai ter,…não dá pra fazer isso ainda. Acho que vai ser maior do que a minha paciência admite (risos). Porque uma das coisas que tenho hoje é uma grande impaciência em relação ao trabalho. Nunca fui uma criatura assim de muita meticulosidade e tal, mas já fui bem mais do que sou hoje. Ao mesmo tempo, o traço, a execução gráfica dos trabalhos, solicita de mim exigências muito maiores. Então, as vezes, vejo coisas que fiz recentemente e parecem que foram cuspidas, e não são. Eu fiz aquilo várias vezes, rasguei, e isso tem me trazido uma grande impaciência. As vezes a ideia do que quero precede tanto o produto final, que eu quase desisto (risos). “Ah, o que eu vou precisar pra fazer isso?”. Ah meu Deus do céu (risos). É complicado.

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