Papo com Manuele Fior, o autor de A Entrevista e Cinco Mil Quilômetros Por Segundo: “Tento investigar todas as possíveis ramificações do conceito que quero trabalhar”

O quadrinista italiano Manuele Fior teve duas obras lançadas quase simultaneamente no Brasil, os álbuns A Entrevista (Mino) e Cinco Mil Quilômetros Por Segundo (Devir). As publicações são distintas em diversos aspectos, relacionados principalmente às diferenças de técnicas e estilos dos quadrinhos, mas também aos momentos destoantes da carreira do autor quando foram produzidos. Ainda desconhecido e em início de carreira na época do lançamento de Cinco Mil, Fior ganhou fama após o livro vencer o prêmio de melhor álbum do Festival de Angoulême de 2011. A Entrevista foi lançado em 2014, com o autor já reconhecido internacionalmente e com a proposta de produzir uma história de ficção científica, em nada relacionada às tramas quase autobiográficas de seus trabalhos prévios.

Eu escrevi para o jornal O Globo sobre o lançamento das duas HQs no país. Entrevistei o autor das duas obras e conversei com ele sobre a origem de cada trabalho, as técnicas utilizadas em cada HQ, suas inspirações e seus próximos projetos. Recomendo a leitura dos dois quadrinhos, uma conferida no meu texto e depois o papo a seguir, a íntegra da minha troca de emails com Fior. Saca só:

“Eu acho que tentei com esse livro colocar um pouco de ordem nos meus pensamentos, eu tinha uma vida muito nômade na época e as coisas acabaram um pouco bagunçadas”

Cinco Mil Quilômetros Por Segundo e A Entrevista foram lançados aqui no Brasil quase simultaneamente, por duas editoras diferentes. Você fica curioso em relação a esse interesse repentino no seu trabalho aqui no Brasil e na recepção das duas obras?

É claro que fico curioso. Em Portugal eu conheci alguns leitores que já conheciam o meu trabalho antes do lançamento de Cinco Mil Quilômetros Por Segundo por lá. Eu honestamente não faço ideia do que possa ter motivado que os livros tenham sido lançados em um intervalo tão curto de tempo, a única coisa que sei é que a Devir queria que o livro já estivesse publicado para o festival de Beja.

Os dois livros são muito diferentes, tantos as histórias quanto os estilos que você desenvolve em cada um. Você poderia falar um pouco da origem de cada trabalho?

Cinco Mil Quilômetros Por Segundo teve uma gestação muito problemática, eu estava morando na Noruega na época e fazendo vários trabalhos ao mesmo tempo. Eu acho que tentei com esse livro colocar um pouco de ordem nos meus pensamentos, eu tinha uma vida muito nômade na época e as coisas acabaram um pouco bagunçadas, me refiro a relacionamentos, ambições profissionais e por aí vai.

Já A Entrevista foi bem diferente, eu o fiz logo após vencer o prêmio em Angoulême, então eu estava me sentindo um pouco mais confiante com o meu trabalho. Ele foi a minha primeira tentativa de abandonar temas autobiográficos e mergulhar na ficção, na verdade ficção científica, da minha forma é claro, de maneira muito íntima.

“Não há nenhuma razão racional para o uso de cada técnica, normalmente quando a ideia de um livro vem à mente também tenho um vislumbre de como ele será”

Você utiliza técnicas muito distintas nos dois livros. Como você decide a técnica e o material que utiliza em cada obra?

A Entrevista foi feito com carvão e nanquim, já o Cinco Mil Quilômetros por Segundo em tinta acrílica. Não há nenhuma razão racional para o uso de cada técnica, normalmente quando a ideia de um livro vem à mente também tenho um vislumbre de como ele será. Depois eu busco alguma técnica que me permita chegar o mais próximo possível a essa imagem mental, é um processo que vai se definindo à medida que vou criando o quadrinho.

Da mesma forma, os dois livros são visualmente muito diferentes. Como você define a estética de cada trabalho?

Essa é uma pergunta muito complexa e abrangente, eu honestamente não tenho nenhuma resposta para ela. Eu nunca tenho um conceito estético definido, eu apenas preciso de algum esforço pessoal e a forma final acaba sendo resultado desse empenho. Eu não acho a palavra ‘estilo’ seja aplicada nesse caso.

“Eu não sou um grande admirador de histórias como apenas uma única interpretação, com apenas uma única solução no fim”

Eu fiquei fascinado com a ambientação de A Entrevista e queria saber mais sobre a sociedade futurística que você concebeu pra esse livro. Você chegou a desenvolver mais sobre esse universo que acabou ficando de fora da HQ?

Normalmente eu escrevo muito durante a criação do quadrinho, tento investigar todas as possíveis ramificações do conceito que quero trabalhar. Mas no final das contas o que você lê é o que realmente existe, não há ideias ou sequências que eu tenha desenvolvido e não estão presentes no livro.

A minha sensação lendo A Entrevista foi semelhante a de assistir a um filme dos irmãos Coen. Tudo soa como uma enorme conspiração, há muitas ideias não desenvolvidas e implícitas, mas a trama principal é focada nesse sujeito ordinário lidando com pequenos ocorridos extraordinários. Isso faz sentido para você?

Na verdade, a minha referência cinematográfica foi a Trilogia da Incomunicabilidade – A Aventura, A Noite, O Eclipse -, do Michelangelo Antonioni. Se você é familiarizado com esses filmes, encontrará o mesmo fascínio pelo desconhecido, pela psicologia distorcida de personagens agindo enquanto refletem sobre suas existências e suas motivações. Eu não sou um grande admirador de histórias como apenas uma única interpretação, com apenas uma única solução no fim.

Sobre Cinco Mil Quilômetros por Segundo: quais eram os principais sentimentos que você tinha intenção de transmitir enquanto criava a HQ?

Os meus próprios sentimentos na verdade, os meus medos e o meu deboche pelo período que estava vivendo. Foi uma forma de exorcizar alguns dos medos e dos arrependimentos que eu tinha, e impus toda essa carga para os meus pobres três personagens, que vivem, sofrem e perdem exatamente como aconteceu comigo.

No que você está trabalhando atualmente? Tem mais diálogo com o Cinco Mil Quilômetros por Segundo ou com A Entrevista?

Estou no meio de uma graphic novel longa chamada Celestia, uma história de ficção científica ambientada em Veneza. É uma trama totalmente nova na qual eu decidi usar a personagem Dora, que já apareceu em A Entrevista.

Você pode recomendar algo que esteja lendo, assistindo ou ouvindo atualmente?

Definitivamente The World of Edena, a edição completa. Eu já havia lido alguns capítulos dessa obra prima do Moebius, mas reler na íntegra está explodindo a minha cabeça, é uma inspiração eterna.


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