Papo com Scott McCloud, autor de The Sculptor e da trilogia Desvendando os Quadrinhos

Não sei quantos emails já mandei pro Scott McCloud. Acho que ele foi o primeiro autor de histórias em quadrinhos que tentei entrevistar, mas nunca havia tido um retorno. Eu tinha oito anos quando minha mãe comprou a primeira edição em português de Desvendando os Quadrinhos, em 1995. Não demorei pra roubar o livro pra minha prateleira e começar a entender ali a vastidão do que pode ser compreendido como histórias em quadrinhos. Depois vieram Reinventando os Quadrinhos e Desenhando os Quadrinhos, li e reli a série inteira e a partir dela corri atrás dos vários nomes que apareciam por lá. Ele me apresentou a Jack Kirby, Chris Ware, Katsuhiro Otomo e Moebius.

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Na penúltima semana de julho deste ano, McCloud me respondeu um email pela primeira vez. Havia voltado a pedir uma entrevista no início de maio, ao terminar de ler The Sculptor, seu mais recente trabalho – falo mais sobre o livro aqui. Ele pediu desculpas pela demora em responder e avisou que estava a disposição. Eu estava viajando e escrevi minhas perguntas no bloco de notas do celular mesmo, antes que ele mudasse de ideia. Dessa vez, a resposta foi rápida. McCloud me falou sobre os anos que passou produzindo The Sculptor, algumas mudanças no mercado de quadrinhos norte-americano e na linguagem das HQs e sobre a busca universal e fútil por reconhecimento. Olha só:

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Imagino que sua formação com autor de histórias em quadrinhos não tenha se construído apenas a partir de quadrinhos, mas porque ter um escultor como protagonista da obra?

Os elementos básicos do livro surgiram para mim quando era muito novo, quando tinha vinte e poucos anos. A escultura estava lá no começo de tudo e jamais cogitei outra coisa. Quando você trabalha em uma história, você pode questionar cada uma das suas decisões, com exceção da primeira delas.

E você já trabalhou como escultor? Quais outras formas de artes são mais familiares para você além dos quadrinhos?

Eu fui estudante de artes na faculdade durante um semestre (enquanto esperava a minha transferência para o departamento de ilustrações para poder fazer quadrinhos!). Tenho mais proximidade com pinturas e desenhos. Sempre gostei de todas as formas de arte e narrativas, principalmente música. Eu gosto de escultura e costumo visitar museus e galerias quando viajo, mas nunca quis ser um escultor.

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Um dos principais temas do livro é a busca do artista pela imortalidade através do próprio trabalho. Você costuma pensar nisso? Em como será lembrado pelos seus quadrinhos?

Eu sou como a maioria dos artistas. Gosto de acreditar que posso produzir alguma coisa que vai viver além de mim. À medida que envelheço, percebo que esse é provavelmente um objetivo fútil – pois nada é eterno -, mas também estou aprendendo a aceitar essa futilidade, a estar em paz com ela.

Você passou alguns anos trabalhando em The Sculptor. Qual foi a sensação quando soube que havia encerrado o livro?

Eu trabalhei até o último minuto fazendo correções e revisões, e sei que ainda há mais coisa que eu poderia arrumar, mas chegou uma hora que precisei parar, então parei. Nunca um trabalho está completamente concluído, mas esse parece mais finalizado e orgânico do que qualquer coisa que eu tenha feito desde Desvendando os Quadrinhos em 1993.

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Li que os protagonistas do livro são inspirados em você e na sua esposa. Quais são as principais semelhanças entre vocês e os personagens?

Hoje eu sou apenas um pouquinho parecido com o David Smith, talvez fosse mais quando era mais novo. Eu era obsessivo, obcecado e estava me tornando recluso. Já a Meg é muito mais parecida com a minha esposa com aquela idade. Nos nossos vinte e poucos ela me resgatou de mim da mesma forma como a Meg resgata o David.

O David Smith é jovem e bastante ansioso por algum reconhecimento. Você era assim no início da sua carreira?

É uma sensação muito comum entre artistas, mas acho que todo mundo quer se sentir importante, sentir que vai deixar alguma coisa pro mundo. Nem que seja só uma memória.

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O livro foi bastante elogiado, mas o final não foi uma unanimidade. Você chegou a dar algumas entrevistas focadas nesse final. Porque você acha que ele foi tão controverso?

A história tem uma estrutura muito parecida com a de um conto de fadas, então ela definitivamente tem alguns arquétipos e situações familiares. Eu acho que há espaço para esse tipo de história se a forma como esses elementos forem combinados for interessante. Alguns concordam e outros não, e isso é saudável. Fico feliz apenas pela forte reação que a maioria dos leitores teve em relação à história. Quase todo mundo com quem conversei leu em apenas uma sentada e guardou fortes lembranças da obra, isso já me deixa feliz.

Seus livros sobre a linguagem dos quadrinhos são muito famosos. Você utilizou algum deles como referência durante a produção de The Sculptor?

No meu livro Fazendo Quadrinhos, de 2006, eu escrevi que um dos objetivos da obra era me ensinar a produzir quadrinhos melhores enquanto me preparava para uma nova graphic novel. No caso, eu estava me referindo exatamente a The Sculptor. Então sim!

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Nos últimos 10 anos foram publicados quadrinhos que exploraram ainda mais algumas possibilidades da linguagem dos quadrinhos. Para ficar em três: o David Mazzucchelli publicou Asterios Polyp, Chris Ware lançou Building Stories e Richard McGuire publicou Here. Você vê alguma explicação para tantos trabalhos impactantes lançados em um intervalo de tempo tão curto?

A leitura de grandes quadrinhos faz as pessoas quererem produzir grandes quadrinhos. Só precisamos de alguns pioneiros como o (Art) Spiegelman (autor de Maus) para fazer a bola rolar aqui na América do Norte. Mesmo apenas um ou dois artistas podem fazer uma grande diferença em longo prazo. Concordo que vivemos um momento muito bom, mas espero que estejamos apenas no começo disso.

Aliás, você concorda que esses três livros que citei estão entre alguns dos mais relevantes quadrinhos americanos publicados nos últimos anos? Há algum outro que chamou a sua atenção recentemente?

Eu acho que os três são incríveis. Estão entre os melhores quadrinhos publicados em um longo período. Um dos meus favoritos, que espero que tenha mais reconhecimento, é a graphic novel Market Day, do James Sturm. Também continuo amando os trabalhos do Jim Woodring e fiquei bastante impressionado por um quadrinho para jovens adultos chamado This One Summer, da Mariko e da Jillian Tamaki.

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Em Desvendando os Quadrinhos você comentou que quadrinhos podem ser definidos como ‘imagens pictóricas justapostas em sequência deliberada’. O quão viva e mutável você considera essa definição?

Definições são sempre complicadas e variáveis. Ainda assim, em 1993 a maioria das pessoas ainda se apegava à ideia consensual que quadrinhos eram revistinhas baratas e de baixa qualidade com pessoas fantasiadas batendo umas nas outras. Agora, em 2015, mais pessoas do que nunca veem quadrinhos como uma forma de arte capaz de contar qualquer tipo de história, com qualquer estilo e em qualquer meio físico. Gosto de pensar que minha definição neutra em termos estilísticos ajudou um pouco.

E o público leitor de quadrinhos parece estar aumentando, assim como as possibilidades de publicação e formatos também estão se ampliando. Você vê algum contexto atípico hoje em dia que contribua para isso?

Obviamente, o grande fator do presente é a distribuição digital, seja pela web ou por aparelhos móveis. Mas essas são ideias que poderíamos levar horas discutindo.

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Ao mesmo tempo, parece ser uma realidade universal: quadrinhos de super-heróis e mangás continuam a ser os nichos mais populares. Você consegue imaginar alguma estratégia para artistas autorais e independentes que queiram, no mínimo, ir além do mercado alternativo e independente?

A estratégia para o sucesso de qualquer quadrinho é a mesma desde sempre: faça grandes quadrinhos. Mais do que nunca, se boas histórias estão por aí, as pessoas VÃO encontrá-las.

Se você pudesse incluir em alguns dos seus livros teóricos sobre quadrinhos um tópico particular que se fez relevante ou alguma grande mudança recente na indústria de HQs, qual seria?

As questões tecnológicas que abordo em Reinventando os Quadrinhos, publicado em 2000, continuam a transformar dramaticamente as HQs. A ascensão das mulheres como leitoras e autoras também é extremamente importante na América do Norte.

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