Papo com Stephen Collins, o autor de A Gigantesca Barba do Mal: “As pessoas buscam cada vez mais descartar tudo aquilo que está distante delas”

Bati um longo papo por email com o Stephen Collins, autor de A Gigantesca Barba do Mal, recém-lançado pela Nemo no Brasil. O quadrinista britânico é dono de uma série semanal no Guardian e o álbum publicado em português é sua primeira investida em um projeto longo. Como já falei por aqui antes, recomendo a matéria que produzi pro UOL a partir do nosso papo, em que detalho mais sobre a carreira e algumas das influências e inspirações do autor. Depois disso, volta pra cá e leia a íntegra da nossa conversa. Mais uma vez, papo bem massa. Saca só:

“Somos todos culpados de aplicar um enquadramento conceitual à nossa visão do mundo e vemos tudo a partir dessa perspectiva limitada”

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Você já leu algum livro do Italo Calvino? Sou um grande fã do trabalho dele e vejo um grande diálogo entre algumas das obras dele e o seu livro.

Infelizmente não li os livros deles apesar de saber quem é. Acabei de googlar e vou definitivamente dar um jeito nessa lacuna na minha formação. Parece um grande escritor e sinto que já deveria ter lido.

É sempre limitante classificar uma obra dentro de um determinado gênero. Mas assim como os livros do Calvino e do Gabriel Garcia Marquez, vejo A Gigantesca Barba do Mal como um representante do realismo fantástico. Você classifica seu livro dentro de algum gênero específico? Aliás, você tinha algum gênero em mente enquanto produzia o quadrinho?

Sim, acredito que tinha um pouco de realismo mágico em mente, eu amo os trabalhos da Angela Carter, como The Bloody Chamber, e acho que esse tipo de obra mistura o real e o extraordinário sem virar realmente ‘fantasia’. Eu tinha bastante interesse em manter essa história fantástica ambientada em uma espécie de estrutura cotidiana, assim por dizer – o cenário é uma zona suburbana e a reação das pessoas em relação aos eventos improváveis contados no livro são semelhantes à forma como acredito que a nossa sociedade iria reagir.

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Você lembra do instante em que teve a ideia de escrever A Gigantesca Barba do Mal? Do momento que o primeiro conceito do livro veio à sua cabeça?

A minha esposa sugeriu essa ideia engraçada de um homem que deixava crescer uma barba gigante e eu comecei a desenvolver uma ideia a partir daí, tentando fazer o mais engraçado possível. Dave, o protagonista, é afligido por essa coisa demoníaca ao invés de deixar crescer por diversão, como talvez algumas pessoas possam esperar pelo título. É a representação de alguma outra coisa que que apenas parte de dentro dele para o mundo e não apenas uma simples consequência de suas ações. Ele fica absolutamente desamparado a medida que essa coisa cresce de dentro dele. Queria pegar uma ideia engraçada e transformar em uma espécie de horror físico que ressalta um medo inerente a todos nós de termos algo crescendo dentro de nós, como a criatura saindo do peito das pessoas em Alien. Para mim, eu estava no final das contas escrevendo sobre a morte – essa semente que inconscientemente todos nós carregamos no nosso interior, que vai crescer e nos consumir um dia. Você sabe, um tipo de coisa bem feliz.

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A Gigantesca Barba do Mal fala bastante sobre relações interpessoais, como nos relacionamos e o quanto a opinião de uma pessoa pode influenciar e definir quem somos. Esse é um tópico importante para você?

Acho que sim, eu estava muito interessado em satirizar o enquadramento que todos fazemos do mundo e das outras pessoas, e queria comunicar essa ideia usando quadros e painéis de uma história em quadrinhos. Somos todos culpados de aplicar um enquadramento conceitual à nossa visão do mundo e vemos tudo a partir dessa perspectiva limitada. O que está além desse enquadramento individual é simplesmente ignorado, seja relacionado a questões políticas, a outras pessoas ou mesmo às nossas próprias ações.

E eu também adoro fazer graça com o funcionamento dos meios de comunicação, criando falsas narrativas e simplificando fatos que ainda são incompreensíveis a todos. Esse tipo de filtro resulta em pessoas sendo retratadas de forma caricatural e categorizadas de forma a fazerem sentido desse universo. Isso tudo é bastante divertido para mim.

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O livro também fala sobre como podemos manter as nossas singularidades como seres humanos dentro dessa realidade claustrofóbica focada em trabalho que vivemos. Para você, como artista, que faz a sua vida a partir de um estilo que só você tem, o quão importante é lutar contra esse mundo pouco inspirado e de tantos sensos comuns em que vivemos?

Eu queria ser tão romântico em relação a isso quanto você! Eu me considero bastante acomodado e nem sempre inspirado. Eu sempre considerei arte que aprecia e valoriza os aspectos banais da vida muito mais reais do que outras que os rejeitam. Escritórios, subúrbios, caprichos e diálogos triviais são coisas que amo em ficção, não quero rejeitá-los.

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[a entrevista foi realizada antes da vitória de Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, daí a pergunta a seguir e a resposta chegam atrasadas por aqui, mas a resposta do Stephen Collins continua válida]

Aqui no Brasil vimos um golpe que resultou no retorno de políticos extremamente conservadores ao nosso governo. O Donald Trump é o candidato republicano à presidência dos Estados Unidos e há alguns meses o Brexit determinou a saída do Reino Unido da União Europeia. O seu livro foi publicado em 2013 e esse cenário atual talvez não fosse tão previsível, mas vejo um diálogo entre A Gigantesca Barba do Mal e a nossa realidade. Qual a sua leitura do mundo em que vivemos? Você se considera otimista ou pessimista em relação à nossa realidade?

Me considero bastante pessimista. Eu considero que esse enquadramento que tentava satirizar no livro, em que pessoas rejeitam tudo o que não é entendem, está só piorando. As pessoas estão buscando cada vez mais descartar tudo aquilo que está distante a elas. “Se você não compartilha da minha visão do mundo, você é o ‘outro’, menos do que um ser humano”. O Trump é um grande representante disso. Toda a ideia do muro que ele quer construir, assim como o Brexit, são exatamente o tipo de coisa assustadora, conservadora e mesquinha que eu queria satirizar. As pessoas no meu livro vivem em uma ilha chamada Aqui e não acreditam em nada que exista além dela. Eles temem tudo que que existe além de seu mundo pequeno. Se o Trump perder em novembro, e torço desesperadamente para que isso aconteça, ele pode com certeza ser eleito na ilha de Aqui. E a mentalidade ‘Pequena Inglaterra do Brexit é exatamente a mesma coisa. Eu odeio tudo isso, mas faz parte da natureza humana. Nós humanos gostamos das nossas cavernas. Então aí está o pessimismo.

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Conheci o seu trabalho com a sua série semanal no Guardian. Ela é muito mais colorida e menos preocupada com enquadramentos que A Gigantesca Barba do Mal. Como você define o seu estilo no livro e que tipo de técnicas você usou enquanto desenhava o quadrinho?

O livro começou há muito tempo, muito antes que eu tivesse definido um estilo, dessa forma é basicamente um experimento de técnicas. É um pouco estranho para um cartunista publicar uma graphic novel tão cedo em sua carreira, mas eu meio que mergulhei com tudo. Além do mais, o meu traço e os enquadramentos funcionavam muito bem dentro da história. Precisava de um clima sombrio e ranzinza, que não faria muito sentido com o meu estilo atual, estruturado em cores mais chapadas e linhas mais finas e clara ao invés do traço pesado com muito cinza. As margens grossas tem um propósito conceitual – eu queria ressaltar o conceito de enquadramento – para que elas fossem notadas pelos leitores. Elas geralmente existem apenas para serem notadas, mas elas existem com o propósito de expor uma ideia.

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A Gigantesca Barba do Mal foi seu primeiro trabalho longo, certo? Em comparação com seus trabalhos semanais, você precisou mudar muito a dinâmica de sua produção para criar esse álbum?

Eu já havia feito alguns quadrinhos para revistas quando comecei o livro, mas não o suficiente para ter desenvolvido um estilo próprio. Então não foi muito difícil mudar esse método, na época inda estava tentando investir em novos estilos. Mas respondendo à sua pergunta, sim, foi uma mudança consciente de estilo, totalmente direcionada para o tema e a estrutura do livro. Não podia soar muito fofa ou engraçada, por causa do título excêntrico que eu escolhi era preciso que fosse mais sombrio para ser interessante.

E também é muito diferente fazer uma graphic novel e uma tira – está tudo em serviço do formato da história longa, isso afeta o ritmo, o tom e o visual de toda a coisa.

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A sua série no Guardian trata bastante da nossa realidade, de temas mais relacionados ao nosso cotidiano. Sendo uma fábula, A Gigantesca Barba do Mal também fala do nosso presente, mas em um formato diferente. É muito diferente para você pensar nesses diferentes formatos de retratar essa realidade?

Sim, com a tira do jornal posso ser muito mais direto com uma piada sobre uma determinada história – mas com o livro é preciso ser um pouco mais profundo e pensar nos contextos e no que pode acontecer no mundo em um intervalo de uns cinco anos. Isso é especialmente verdadeiro porque demora pelo menos uns cinco anos entre o momento que surge a ideia e a graphic novel é finalmente impresso. Bem, pelo menos é o tempo que demora para mim!

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Li no seu site que você está trabalhando em um livro chamado Bad Likeness. Do que se trata? Você já sabe quando será lançado?

Conta a história de dois museus de cera em uma cidade litorânea que entram em guerra. Um é um museu antigo e tradicional, cheio de figuras horríveis e idênticas de celebridades, administrado por um cara chamado Keith e sua filha Lisa. O outro é um museu moderno, cheio de luzes, animações e efeitos especiais, pertencente a uma celebridade de televisão chamada Wilson Lamar. Estou trabalhando com vários temas – o que é ser britânico, os protestos de 2011 no Reino Unido, memória, amor e celebridades. Estou empolgado e acredito estar indo muito bem. Deve ser publicado em 2018, então ainda tem um caminho aí pela frente. Costumo dizer que sou bastante lento para esse tipo de coisa.

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A última! O que você está lendo/escutando/assistindo hoje? Há algum livro/quadrinho/filme/música que você costuma recomendar para seus amigos e acredita que as pessoas deveriam prestar mais atenção?

Nossa cara, vários. Um quadrinho inglês que acho que não recebe a devida atenção é o The Black Project do Gareth Brookes, um conto maravilhoso e ingênuo sobre um adolescente que começa a criar suas próprias ‘namoradas’ a partir de itens de sua casa e deixa elas escondidas debaixo da cama. É incrivelmente brilhante. Eu também recomendo a todo mundo os documentários do Adam Curis, desconstruções incríveis das estranhas narrativas de poder que dão continuidade às nossas vidas modernas. Torço para que eles estejam disponíveis com legendas em português – todo mundo deveria assistir.

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