Papo com Tom Scioli, autor de Jack Kirby – A Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos: “Todo o estilo narrativo das HQs de super-heróis ainda segue o modelo de Kirby”

Escrevi sobre Jack Kirby – A Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos na 17ª edição da Sarjeta, minha coluna sobre histórias em quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural. Fiz o meu texto após entrevistar o quadrinista norte-americano Tom Scioli, autor da obra recém-publicada em português pela editora Conrad com tradução de Érico Assis. Você lê a minha matéria clicando aqui.

O álbum de Scioli me chamou atenção não apenas pela arte e pelo texto do autor, mas também por seu empenho em se contrapor à versão oficialista da história da indústria norte-americana de HQs, na qual Kirby se tornou um coadjuvante de Stan Lee e outros de seus contemporâneos. Trata-se, definitivamente, de um dos grandes lançamentos desse início de 2021.

Compartilho a seguir a íntegra da minha conversa com Tom Scioli. Ele me falou sobre as origens de seu livro, lembrou de suas memórias mais antigas ligadas a Kirby e listou os principais legados e as mais importantes contribuições para as HQs mundiais do autor apelidado de Rei dos Quadrinhos. Papo bem massa. Saca só:

“Você nunca vai confundir o trabalho dele com o de outra pessoa”

Quadros de Jack Kirby – A Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos, de Tom Scioli (Divulgação)

Queria começar sabendo como estão as coisas por aí. Como você está encarando a pandemia do novo coronavírus? Ela afetou de alguma forma a sua rotina profissional?

Eu estou bem. Como vai você? Estou tomando todas as precauções recomendadas. Estou feliz que haja uma vacina. Isso teve um efeito contínuo na minha produtividade. Como muitas pessoas, isso está me fazendo questionar todos os aspectos da minha vida e descobrir um sentido mais claro do que é importante e do que não é.

E como você acha que essa realidade que estamos vivendo vai impactar o seu ambiente profissional? Você tem conversado sobre iso com outros autores e editores?

Muito desse trabalho é feito isoladamente, para começar. Eu sei que as vendas sofreram um golpe imenso. As conversas que tive com outras pessoas na indústria foram sobre como manter o foco e manter o moral elevado durante tudo isso.

Você pode me contar um pouco sobre a origem de Jack Kirby – A Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos? Você lembra de quando teve a ideia para esse livro?

Era algo que sempre quis ler, mas não existia, então tive que fazer. O Jack Kirby fez uma pequena história em quadrinhos autobiográfica chamada Street Code sobre uma briga de gangues que travou quando criança. Eu queria ler uma série inteira como essa, mas cobrindo toda a sua vida. Se existem centenas de edições do Capitão América e do Quarteto Fantástico, por que não centenas de edições da vida da pessoa que as criou?

“Senti o peso e a responsabilidade todos os dias em que trabalhei nisso”

Quadros de Jack Kirby – A Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos, de Tom Scioli (Divulgação)

Você lembra do seu primeiro contato com um trabalho do Jack Kirby? Tem algum quadrinho dele que você considera o melhor que ele produziu?

Meu primeiro contato com o trabalho dele foi o desenho animado Thundarr, o Bárbaro. O primeiro quadrinho de Kirby que li foi provavelmente Thor Treasury com o enredo do Mangog. Acho seus trabalhos mais bem desenvolvidos e meus favoritos pessoalmente, são Novos Deuses, Povo da Eternidade e Senhor Milagre, coletivamente conhecidos como O Quarto Mundo. Eles também eram os favoritos de Kirby. Você poderia ter argumentos fortes para vários outros quadrinhos dele, mas essa é minha escolha. Se eu tivesse que limitar a um único gibi, diria Novos Deuses #7.

Se você tivesse escolher um elemento ou uma característica em particular do trabalho e do estilo do Jack Kirby que você considera seu atributo mais singular, o que seria?

Para mim, seriam as tecnologias do Kirby. A maneira como ele desenha tecnologia. É difícil identificar o que o torna distinto, mas você sabe quando vê e ninguém desenha como ele. Tem também a Kirby Squiggle [ondinhas de Kirby], o jeito rápido que ele tinha fazer reflexo, energia, sombreado, musculatura. Há também os Kirby Dots, mas que já foram imitados e assimilados infinitamente, mas ainda estão associados a Kirby.

Queria saber mais sobre seus métodos de trabalho. Você adotou alguma rotina específica e usou alguma técnica em particular durante o desenvolvimento desse livro?

Meu processo evoluiu com o tempo e ao longo da produção desse livro. A essência é a mesma, mas algumas particularidades mudaram. Eu escrevo uma sinopse com marcadores. Esboço as páginas em um formato aproximado e as reviso várias vezes. Depois de definir o layout, imprimo e traço o desenho final a lápis. Eu reviso tudo a cada passo do caminho. Aí coloro digitalmente.

“A fama de Stan Lee e a fama de Walt Disney foram conceitos cuidadosamente cultivados”

Quadros de Jack Kirby – A Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos, de Tom Scioli (Divulgação)

Você precisou desenvolver toda uma estética para um livro não apenas sobre a vida de um dos quadrinistas mais importantes de todos os tempos, como também de um dos mais influentes e singulares em termos estéticos. Você se sentiu pressionado durante a produção desse livro?

Senti o peso e a responsabilidade todos os dias em que trabalhei nisso.

Fico curioso em relação aos seus sentimentos ao ver Jack Kirby: A Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos sendo publicado no Brasil. Você fica curioso em relação à forma como esse livro será lido em um contexto tão diferente do seu?

Estamos vivendo cada vez mais em uma cultura global. Kirby é uma figura venerada dentro de um contexto cultural muito específico dos quadrinhos de super-heróis norte-americanos e todas as suas peculiaridades, mas presumo que a história de Kirby se espalhou por aí e que há alguma familiaridade. Se alguém não ouviu falar de Kirby, pelo menos ouviu falar do Hulk, dos Vingadores e dos X-Men. Estou curioso para ver a reação.

Os personagens e os títulos da Marvel e da DC são marcas milionárias, pertencentes a empresas gigantescas e que precisam dar lucro aos seus donos. Acredito que isso tenha impacto direto em autores que nem sempre conseguem expressar suas vozes e contar histórias originais quando trabalhando para essas empresas. Como você acha que o Jack Kirby conseguiu conciliar essa construção de uma voz própria, distinta e autoral em um ambiente tão restritivo criativamente?

Ele não conseguia não ser original. Mesmo nos momentos em que deliberadamente reteve suas melhores ideias, quando sentiu que não estava sendo tratado com justiça por seus empregadores, ele ainda continuou criando conceitos originais convincentes. As piores ideias de Kirby são melhores do que as melhores da maioria das pessoas. Ele era verdadeiramente original. Você nunca vai confundir o trabalho dele com o de outra pessoa.

“Todos os criadores que conheço pensam em Kirby quando estão fechando negócios e contratos”

Página de Jack Kirby – A Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos, de Tom Scioli (Divulgação)

O quanto você acha que a indústria de quadrinhos dos Estados Unidos mudou desde o início da carreira do Jack Kirby? Qual você considera o maior legado dele para essa indústria?

O foco do negócio mudou. Há muito mais ênfase na narrativa mais ampla, ao invés das edições individuais dos quadrinhos. O Kirby iniciou essa tendência, mas está se tornando cada vez mais evidente. Há um percurso de respeito a direitos autorais estabelecido que não existia quando o Kirby estava trabalhando. Gil Kane e Wally Wood enfrentaram retaliações em suas tentativas de sair do sistema industrial de quadrinhos. Todo o estilo narrativo dos quadrinhos de super-heróis, por mais que tenha mudado de maneira superficial, ainda segue o modelo Kirby. A ênfase na figura humana em movimento, a ficção científica e os temas míticos, o foco na ação e na colisão, a novela sem fim, tudo isso tem o trabalho de Kirby como base.

O Jack Kirby foi muito influenciado pelas tiras de jornal que ele lia na infância. O espaço dessas tiras em jornais são cada vez menos, assim como as tiragens e as vendas dessas publicações? O que você acha que o meio dos quadrinhos perde com a diminuição desse espaço?

Acho que os webcomics preencheram muito bem a lacuna deixada pelas tiras de jornal. As tiras de jornal já estavam em declínio na época em que as lia. Calvin e Haroldo foram o último suspiro e estou grato por tê-lo testemunhado.

Qual é a importância que você vê na história do Jack Kirby para as mudanças relacionadas aos direitos autorais na indústria dos quadrinhos de super-heróis?

Todos os criadores que conheço pensam em Jack quando estão fechando negócios e contratos. Ele foi muito influente como exemplo do que pode dar errado, junto com [Jerry] Siegel e [Joe] Shuster [criadores do Super-Homem]. Ele falava muito sobre seus direitos como criador e de sua situação nos últimos dias de sua vida, e os pioneiros dos direitos dos criadores de quadrinhos, como [Kevin] Eastman e [Peter] Laird [criadores das Tartarugas Ninjas], eram fãs e conhecidos de Jack e o citam como inspiração.

“As barreiras entre os quadrinhos e as animações e os games se tornaram porosas”

Quadros de Jack Kirby – A Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos, de Tom Scioli (Divulgação)

Você vê um futuro possível no qual o Jack Kirby será plenamente reconhecido por suas criações? Ou pelo menos tão reconhecido como o Stan Lee?

Ele tem reconhecimento oficial da Disney/Marvel como coautor dessas histórias e personagens, o que não aconteceu por muito tempo. Esse é um desenvolvimento positivo e relativamente recente. A família Kirby obtém algum tipo de recompensa financeira pelas criações dele. Acho que os filmes de Os Eternos e dos Novos Deuses serão um grande avanço no sentido de cimentar seu legado na cultura popular, já que é a primeira vez que uma criação solo de Kirby receberá esse tipo de tratamento. Não sei se será possível obter o tipo de reconhecimento que Stan tem. A fama do Stan e a fama do Walt Disney foram conceitos cuidadosamente cultivados. Eles não simplesmente aconteceram. Eles foram o resultado de muito esforço e do peso de uma estrutura corporativa global que sustentou essa narrativa durante sua vida.

Uma curiosidade: o que são quadrinhos para você? Você tem alguma definição em particular para a linguagem? Ou tem alguma definição em particular que você acha mais interessante?

Minha definição de quadrinhos é bastante ampla e inclusiva. Se for uma história visual, criada por um único criador ou uma pequena equipe, é uma história em quadrinhos. Pode ser no papel, pode ser digital, pode ser animado, pode ser interativo. Pode ser uma única imagem estática. A forma de arte evoluiu até o ponto em que as barreiras entre os quadrinhos e as animações e os games se tornaram porosas. Recebo muito bem tudo isso.

Outra curiosidade: você poderia recomendar algo em particular que tenha visto, lido ou ouvido recentemente?

Estou tentando pensar em algo fora do radar. Todas as coisas que vêm à mente são muito grandes. Eu gostei de Tenet e The Mandalorian. Estou gostando de WandaVision.

A capa de Jack Kirby – A Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos, obra de Tom Scioli publicada no Brasil pela editora Conrad (Divulgação)

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