PARAFUSO ZERO – Expansão: Bastidores [Parte #6: Akira, Wally e paralelismos distópicos]

O post de hoje da série PARAFUSO ZERO – Expansão: Bastidores é dedicado à construção do logotipo do próximo álbum do quadrinista Jão. Em campanha de financiamento coletivo no Catarse, PARAFUSO ZERO – Expansão é assinada por Jão, editada por mim e tem como proposta ser “a história em quadrinhos de super-heróis mais estranha que já existiu”. O logotipo do álbum foi criado pelo designer Matheus Ferreira, também parceiro de Jão em outros projetos, como a HQ Baixo Centro e eventos organizados pelo autor em Belo Horizonte – como a feira Faísca e o festival Traço.

Em seu depoimento, Ferreira conta sobre suas reflexões a partir das referências enviadas por Jão para a construção do logo e como sua contribuição para o projeto resultou na adaptação do nome da obra de PARAFUSO 0 – Expansão para PARAFUSO ZERO – Expansão, trocando o número pela palavra por extenso. Antes da íntegra da fala do designer, reproduzo a mensagem enviada por Jão ao colega de projeto, explicando quais ideias ele gostaria de ver representadas no logo e chamando atenção para os estudos que resultaram na concepção do logo do mangá Akira. Ó:

PARAFUSO ZERO – Expansão: Bastidores [Parte #6: Akira, Wally e paralelismos distópicos]

(depoimento de Matheus Ferreira)

Parceria de longa data

“Eu e o Jão já temos um histórico bem legal de trabalhos juntos. Nós nos conhecemos na escola de Belas Artes da UFMG, eu trabalhava no laboratório de informática e lá tinha uma estrutura legal de computadores. Na época, ele precisava escanear os originais que tinha feito pra MSP Novos 50, um dos primeiros quadrinhos de projeção maior em que ele trabalhou. Foi quando nos conhecemos e nessa brincadeira acabamos nos aproximando, trabalhando juntos em diversas edições e publicações dele. Logo depois ele lançou a Peiote. Em quase todas as outras revistas, com exceção de uma ou outra, eu estive envolvido. E em outras investidas também, desde a Faísca até o Traço, foram várias situações em que tive a oportunidade de trabalhar com o Jão e a Helen [sócia do autor na Editora Pulo e na realização da feira Faísca e do festival Traço].

Quando surgiu essa proposta da PARAFUSO ZERO – Expansão já estávamos em contato em função de um outro trabalho. Eu tinha ido pra Recife, voltei pra Minas e aí mandei um alô, disse que já estava de volta e que era para eles me darem um toque quando quisessem conversar. Aí o Jão me mandou uma mensagem pouco tempo depois, dizendo que tinha ligado os pontos e que queria que eu fizesse o logotipo pra essa nova publicação, já me passando algumas instruções e referências bem específicas”.

Cara menos orgânica

“Nos trabalhos anteriores à PARAFUSO ZERO – Expansão nós tivemos a oportunidade de experimentar uma espécie de noção de desenho manual das tipografias e dos textos. Desde usar fontes tipográficas como referência e redesenhá-las, para que conseguíssemos captar algumas micro-imperfeições do traço, até a possibilidade de hand lettering mesmo – como usar uns grafites bem largos para que funcionassem como penas e eu pudesse desenvolver letras a partir dessas oscilações de espessura da linha.

No caso da PARAFUSO ZERO, o Jão entrou em contato comigo e disse que queria que a gente variasse um pouco esse percurso que tínhamos tido até então. Ele queria uma coisa mais crua, mais impessoal, com uma cara menos orgânica. Aí eu já comecei a quebrar a cabeça em torno de uma tipografia que a gente pudesse usar. O título todo consiste em três palavras, então pensei em formas de ordenar esses caracteres para que eles ficassem legais juntos. Eu fiz uma proposta pro Jão que seria uma alteração no que ele tinha me enviado a princípio, utilizar a palavra ‘zero’ por extenso e não como um caractere numérico. A partir disso eu fiz uma pesquisa em torno de algumas tipografias do meu acervo e algumas outras coisas que eu já vinha pesquisando e acabei chegando nessa proposta final, uma coisa com mais cara de logotipo mesmo, um bloco de três linhas. As letras ainda sofreram algumas alterações e distorções que, de certa forma, conceitualmente, conversam com o universo que ele está propondo com a história. Ele curtiu e tocamos o barco”.

Paralelismos distópicos

“Em um primeiro momento, o Jão me enviou uma referência que me deixou mó feliz, um estudo pra construção do logo de Akira, do Katsuhiro Otomo. Tanto o quadrinho quanto a animação são grandes cânones para mim, uma assumidade, uma coisa muito incrível. O fato da natureza da construção de história, vamos dizer assim, esbarrar de maneira sofisticada nesses universos cyberpunks e pós-apocalípticos, em um mundo de fantasia que pensa numa espécie de paralelismo distópico da nossa realidade, me deixou supercontente.

Ele me enviou esses estudos como referência e também algumas proposições verbais. ‘Pensei que talvez pudéssemos seguir por tal caminho, pra esse e aquele’, e tudo girava um pouco em torno dessa ideia de uma letra um pouco mais crua, uma tipografia um pouco mais digital, com uma cara um pouco mais vetorial, menos orgânica. Essas foram as principais instruções, além das referências do Akira.

Ele me enviou inclusive umas fotos dos logotipos que foram discutidos até a escolha da versão final que ficou no Akira. Por sinal, um estudo incrível. Nas primeiras edições do mangá, o logotipo tinha serifa nas letras, uma coisa bem diferente e eles chegaram naquele resultado atual, supersucinto, mas com toda uma construção de ser de fato sucinto e ser de fato sintético e, ao mesmo tempo, ter uma presença bem drástica e impactante. Chegou muito bem como referência pra mim”.

Exatidão quase cartesiana

“Desde quando eu e o Jão começamos a trabalhar juntos eu fiquei satisfeito por ocuparmos, cada um, o espaço do profissional que se propõe a ser. Ele sempre foi o quadrinista que precisava de um artista gráfico, de um designer, e eu sempre fui o designer trabalhando com o quadrinista. Isso é sensacional, as coisas se encaixam de um jeito muito legal. É muito comum dentro do universo dos quadrinhos, sobretudo do pessoal que vem do universo independente, a pessoa cuidar de todas as partes da produção. Existe uma espécie de autosuficiência que às vezes esbarra em pequenas questões que a pessoa nem sempre domina completamente, afinal a produção de uma novela gráfica envolve ‘n’ frentes, uma quantidade enorme de conhecimentos e práticas e é muito comum as pessoas fazerem tudo, do roteiro ao desenho e à impressão e acabou.

Nisso o Jão acabou tendo uma clareza nas primeiras oportunidades que tivemos de trabalhar juntos: deixar pra mim essa parte do design. Nas primeiras, literalmente a primeira e a segunda revista que fizemos juntos, trabalhei um pouco com tipografia digital. Depois, nos primeiros esboços da Sob o Sol, um lançamento futuro dele, eu fiz um lettering, um letreiro que tinha uma visualidade bem específica, toda à mão. O Jão respeitou e contribuiu muito com isso, uma ideia que a informação e a natureza da letra, a natureza da tipografia e do design, transmitem para além do nome escrito em si. Por exemplo, você pode ler a palavra ‘parafuso’ e se ela estiver escrita em helvética ou numa letra gótica, são mensagens bem diferentes.

Nas primeiras oportunidades em que trabalhamos juntos, em alguns contextos era bem interessante ter uma espécie de rastro orgânico de traço. A gente teve a oportunidade de fazer o Baixo Centro, por exemplo, uma investida sensacional. Nela nós estávamos com muita vontade de construir um logotipo que não viesse de um universo tão retilíneo e exato. De certa forma, conceitualmente, a história esbarra num pensamento sobre o centro de Belo Horizonte, em que existe um duelo enorme entre uma arquitetura moderna, extremamente sisuda, e a pixação, também uma espécie de design moderno – se você pensar que a pixação vem de referencias tanto do heavy metal quanto do punk, enfim… Nessa situação, o que eu fiz foi trabalhar um tipografia que fazia uma mescla entre o pixo e um tipografia moderna clássica da Art Déco.

Agora, o Jão propôs essa outra situação, o que não me surpreendeu, eu achei superlegal, é só uma outra linguagem, uma outra forma de fazer. Cada escolha dentro dessas proposições carrega ali uma carga de informação. Diante dessa nova história eu achei que tinha total uma relação: a visualidade com umas perspectivas muito bem construídas, umas linhas com uma certa exatidão quase cartesiana. Diante disso eu pensei que nem sei se seria tão interessante a gente trabalhar com um letreiro tão orgânico, que tivessem umas carcaterísticas menos exatas. De repente, uma certa impessoalidade, um certo aspecto mais sintético, conversem muito com o fato de ter multidões e arquiteturas que massacram visualmente a presença de um ou outro indivíduo. As imagens têm todas aquelas características meio ‘Onde Está o Wally?’ em que uma figura em si acaba sendo irrisória se você comparar com o todo. Isso tem uma certa assepsia, uma coisa mais seca e direta. Eu pensei que isso seria interessante de carregar na tipografia e depois vieram algumas distorções que não são da fonte. Eu fiz algumas alterações nela que acabam entrando também como uma forma de construção em cima – obviamente, com todo o respeito aos tipógrafos que desenvolveram a fonte que eu usei. Mas usamos algumas alterações para construir uma conversa mais próximas com o conteúdo da novela em si, do que o Jão estava propondo”.

De ‘0’ para ‘ZERO’

“Eu esbarrei com a ideia do ‘zero’ por extenso pelo seguinte: quando eu me deparei com o visual da história e das imagens que já tínhamos visto, eu relacionei muito na minha cabeça com algumas referências. Pensei muito em pop art, pensei em quadrinhos clássicos, pensei muito em ilustração oriental contemporânea. Diante dessas referências eu concluí: ‘se a gente colocar uma letra com características muito específicas, caractere por caractere, talvez resulte em uma carga de informação um pouco pesada’. Eu até fiz alguns testes com fontes que chamamos de monospaced, aquelas derivadas de máquinas de escrever e aparelhos de produzir tipografia dessa natureza, elas envolvem letras que não tem uma oscilação muito grande entre a largura da letra. Eu queria essa cara de computador, com ares de um ‘futuro-retrô-confuso’.

Enquanto eu pesquisava essas fontes, eu vi que ainda era possível a gente usar o zero como numeral mesmo, mas todas as outras opções que eu acessei ficava muito fácil de alguém acabar lendo como ‘PARAFUSO O’, como se o zero fosse a letra ‘o’. Como as fontes não tinham uma variação tão drástica de espessura nas linhas que uma fonte serifada poderia propor, a diferenciação entre os caracteres começou a ficar um pouco confusa.

Como eu estava buscando o sintético, uma coisa mais minimalista, a fonte tinha características mais limpas ainda, então o zero e o ‘o’, considerando que estava tudo em caixa-alta, acabaram ficando muito semelhantes e isso me preocupou um pouco. Além do fato dessa semelhança, eu acrescentei algumas distorções, então isso podia gerar um erro de leitura. O pessoal poderia ler ‘Parafuso O’, ‘Parafusoo’ ou alguma dessas onomatopéias que o mundo pós-internet nos forneceu. Diante disso eu pensei em fazer uma versão com o zero por extenso, na qual a leitura seria possível sem erro nenhum e também pela composição em relação ao número de caracteres, que ficaria mais equilibrada. A palavra ‘zero’ me renderia também algumas possibilidades legais. Aí eu mostrei e o Jão foi bastante receptivo”.

Parceria e cocriação

“Geralmente eu trabalho com fontes gratuitas. Eu tenho uma pesquisa muito grande com fontes que consigo acessar na internet que as pessoas que desenvolveram propõem que elas sejam distribuídas gratuitamente. Aí eu encontrei dentro das minhas pesquisas essas duas que acreditei que seriam bem interessantes e trabalhei com elas. Por mais que dentro da tipografia tenhamos uma noção de derivações muito grande, boa parte das fontes são derivações de fontes anteriores mais clássicas.

Comecei a trabalhar com duas fontes que davam esse ar meio impessoal que queríamos. Eu achei interessante essa certa impessoalidade. Eu até pensei algumas outras tipografias, mas eu queria uma coisa que tivesse uma cara um pouco mais cartesiana e aí, como ela tinha uma estrutura quase modular, eu tive condições de acrescentar alguns períodos de mancha que permitem distorcer as letras sem que elas percam uma integridade de leitura. Isso tudo poderia conversar com o nome, com o universo, com a coisa toda.

Foi uma oportunidade sensacional, trabalhar com liberdade de criação, um diálogo que é realmente olho no olho, isso é muito positivo, é literalmente uma cocriação. Você pode desenvolver um trabalho esperando uma receptividade e foi sensacional, o Jão me deu bastante autonomia e isso é só positivo quando podemos construir juntos”.

CONTINUA…

ANTERIORMENTE:
>> PARAFUSO ZERO – Expansão: Bastidores [Parte #5: Proporções extremas e a insignificância humana no Universo];
>> PARAFUSO ZERO – Expansão: Bastidores [Parte #4: A origem do ‘Formato Jão’];
>> PARAFUSO ZERO – Expansão: Bastidores [Parte #3: Um sonho com Moebius];
>> PARAFUSO ZERO – Expansão: Bastidores [Parte #2: Baixo Centro, Flores e texto];
>> PARAFUSO ZERO – Expansão: Bastidores [Parte #1: origens, restrições e OuBaPo].


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