A Bienal de Quadrinhos de Curitiba começa na próxima quinta-feira, dia 8 de setembro. Com vários debates e encontros propondo discussões sobre o atual cenário político e social brasileiro, o evento ganha um peso ainda maior por ser realizado em seguida à tomada do poder por um presidente golpista, reacionário e descrente em relação ao papel da cultura como um dos principais pilares de uma sociedade. Faltando pouco menos de uma semana para o início do encontro no Paraná, conversei com duas das responsáveis pela Bienal, a coordenadora Luciana Falcon e a curadora Mitie Taketani.
Trocamos alguns emails sobre as expectativas das duas em relação ao evento, a concepção da linha editorial da Bienal, as influências de outras convenções brasileiras de quadrinhos e a dificuldade de realizar um encontro do tipo em tempos de crise econômica e conservadorismo crescente. Leia aí, cara:
Estamos às vésperas do início da Bienal e imagino que vocês ainda estejam a mil. Quais as expectativas de vocês em relação ao evento? Tanto em relação a público e vendas quanto à profundidade dos debates/palestras/oficinas?
Luciana: As expectativas são as melhores, porque além de desenharmos uma programação bastante contundente no que diz respeito às discussões propostas, queremos ver o público percebendo outras interações que os quadrinhos podem ter na nossa vida, além do entretenimento.
A feira este ano ganha novos contornos, de tamanho e espaço, que agora ocupa também um galpão montado ao lado do MUMA, e esperamos que o público compareça para prestigiar os artistas desta edição, apesar do “ano das bizarrices” que enfrentamos.
Mitie: Neste exato momento estava combinando com uma das convidadas de finalizar a montagem de uma exposição. Acho que a Lu deve estar fazendo milhares de coisas ao mesmo tempo agora. Esta é a primeira vez que trabalho na curadoria e achei que seria bem mais fácil hehe. As expectativas? É como estar apaixonada por uma pessoa, sonhar acordada, sonhar dormindo, doar todo o seu amor e esperar ser correspondida. Só de pensar em reunir todos esses grandes nomes durante quatro dias me dá muita alegria. Queria não estar trabalhando….snif… Quanto aos números, prefiro deixar pra depois.
Pela programação e pelos convidados do evento, é possível notar uma carga política intensa na linha editorial da Bienal. Por que essa opção e como vocês chegaram nesse filtro?
Luciana: Podemos nós, artistas, falar de outra coisa agora? Os quadrinhos, como toda expressão artística (e para ser tal) é política. Nossa ideia é realmente colocar os quadrinhos num lugar potente de discussão, de questionamentos, no que envolve a nossa vida e sociedade que, infelizmente, está numa crise mundial. Os convidados internacionais evidenciam isso em seus trabalhos também, alertando que a a sociedade está doente de forma global. A ideia é colocar os quadrinhos a serviço de uma possibilidade de diálogo, de transformação.
Mitie: Não tivemos opção. Não tinha como não sincronizar a Bienal de Quadrinhos com a urgência das ruas, a necessidade de mudar, a movimentação política e social. Está na nossa cara e queremos pensar, refletir também através dos quadrinhos. Os convidados também parecem estar bastante envolvidos.
Ainda sobre a linha editorial: a Bienal está sendo realizada no ano seguinte ao Festival Internacional de Quadrinhos. Em termos de produção independente e autoral, são dois eventos com propostas parecidas. No que vocês acham que os dois eventos se distinguem?
Luciana: O FIQ é um evento que nos espelhamos e sempre estamos trocando ideias com o Afonso Andrade. Ambos os eventos tem um caráter social, de programação gratuita e de formação, ao mesmo tempo que promove o mercado editorial, os artistas independentes e circulação de diferentes públicos e criadores. O intuito da Bienal é explorar a interação de outras linguagens que conversam com os quadrinhos, como o cinema, música, teatro, leituras, grafiti, para que a gente rompa barreiras e esteja aberto para novas propostas e interações. Diluir fronteiras… experimentar.
Mitie: Acho que a Bienal de Quadrinhos aprendeu muito com o FIQ e se espelhou nele também. Talvez o fato da coordenação da Bienal ter convidado várias pessoas para a curadoria com experiências diversas tenha gerado essa diferença. Na verdade todos os eventos (Bienal de Quadrinhos ,FIQ, Fest Comix, CCXP, feiras de impressos, etc) estão aprendendo na troca de informações, crescendo, mesclando resultados positivos e se transformando.
Estamos vivendo um momento de conservadorismo crescente no qual cultura e arte são cada vez mais vistos como luxos. Esse contexto dificultou e/ou influenciou de alguma forma a organização da Bienal?
Luciana: Arte e cultura nunca serão luxos, são essenciais ao nosso desenvolvimento, nas nossas subjetividades, reflexões e críticas. É o que transforma a sociedade. Isso é o que rege a primeira missão da Bienal: oferecer uma programação gratuita à toda a população, entender que esse é o primeiro papel do que pensamos sobre desenvolvimento cultural e democratização de cultura – dar acesso, sensibilizar e formar. Isso sempre esteve em nossas mentes, é nossa função como artistas e trabalhadores da cultura. Esse contexto dificulta ao mesmo tempo que nos instiga a insistir nesse pensamento. O movimento é de resistência.
Mitie: O universo conservador não quer mudanças, está bem confortável ditando as regras. Enquanto estava só pensando na programação era muito estimulante refletir sobre esse universo e em como virá-lo de cabeça pra baixo. Provavelmente a galera da produção tenha enfrentado dificuldades pra levantar o evento…. claro, se tivéssemos, sei lá, um convidado mais famosão teria sido mais fácil.
E também sobre o contexto em que estamos vivendo: o Brasil passa por uma crise econômica intensa. Quais os principais desafios de organizar um evento nas proporções da Bienal dentro dessa realidade?
Luciana: Este é o maior desafio: como reinventar um sistema de organização de projetos de interesse público e sensibilizar incentivadores e apoiadores. Este ano tivemos dois grandes chutes (ops!) digo, cancelamentos de verbas de patrocínios. Isso nos pegou de surpresa faltando 45 dias do evento, mas não cancelamos, continuamos a cumprir com a responsabilidade que assumimos com os artistas, expositores e público. Nosso maior desafio é a articulação e manutenção de parcerias ao longo destas quatro edições. Pensamos que projetos destas proporções, com a qualidade de artistas e trabalhos que são ofertados, inteiramente de graça, são do interesse de todos (poder público, iniciativa privada e sociedade civil), por isso somos todos responsáveis pela realização. O que faz evento é vontade, é junção de esforços, é colaboração, é permuta e é dinheiro também, mas não só. Nosso evento é prova disso.
Mitie: O maior desafio é continuar acreditando, nunca perder a esperança, apesar de tudo.