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Entrevistas / HQ

Papo com Jason, autor de A Gangue da Margem Esquerda: “Estamos caminhando para uma catástrofe que mudará tudo. O futuro é muito incerto”

A Gangue da Margem Esquerda é o terceiro álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil. O primeiro trabalho do autor lançado por aqui foi Sshhhh!, coletânea de histórias curtas e mudas que vão do humor ao macabro. Depois saiu Eu Matei Adolf Hitler, sobre um assassino profissional contratado por um cientista para viajar no tempo, matar o líder nazista e impedir o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial.

Entrevistei o artista pela primeira vez em 2017, na época do lançamento de Sshhh! por aqui, e, depois, no ano passado, quando Eu Matei Adolf Hitler chegou às livrarias nacionais. Bati agora um novo papo com Jason, dessa vez sobre A Gangue da Margem Esquerda, obra vencedora do Prêmio Eisner de Melhor Título Estrangeiro no ano de 2007. Transformei essa conversa em matéria que você lê por aqui.

Reproduzo a seguir a íntegra da minha entrevista mais recente com o autor norueguês. Ele falou sobre a concepção da trama sobre um roubo envolvendo Ezra Pound, James Joyce, Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway na Paris dos anos 1920; também tratou de suas técnicas e métodos de trabalho e expôs um pouco de seus temores sobre o impacto da pandemia do novo coronavírus no mercado de HQs. Saca só:

“Parte de ser quadrinista é que você já é praticante de distanciamento social”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

Antes de tudo, como você está? Como você está encarando a pandemia do coronavírus? O contexto de isolamento social afetou de alguma forma sua rotina diária?

Parte de ser quadrinista é que você já é praticante de distanciamento social. Você trabalha sozinho em casa a maior parte do tempo, fazendo uma corrida ou respirando ar fresco de vez em quando. Portanto, não há grandes mudanças. Eu tento trabalhar um pouco todos os dias. Mas, como sempre, o YouTube é o grande inimigo. Você pode perder facilmente algumas horas por lá. E sempre há livros ou quadrinhos para ler.

Como você acha que essa realidade que estamos vivendo vai afetar o seu ambiente profissional? Você tem conversado com outros autores e editores sobre essa situação?

Não, eu não conversei com mais ninguém sobre isso. Mas sou publicado na maior parte das vezes por editoras pequenas, administradas por duas pessoas. E o mercado já é difícil, pelo menos na França, com muitas publicações novas a cada semana. Espero que todos os meus editores ainda estejam por aí e que as lojas de quadrinhos também se saiam bem quando meu próximo livro for publicado na próxima primavera.

“Lembro dos meus 30 e poucos anos como uma época em que me preocupava em ganhar dinheiro suficiente apenas para pagar aluguel”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

Você pode me contar um pouco sobre o ponto de partida de A Gangue da Margem Esquerda? Você lembra de como surgiu a ideia desse livro?

Eu gosto do Hemingway e li muitas biografias sobre ele e sobre a Paris dos anos 1920. Foi um período emocionante, com muitas pessoas interessantes morando lá. Eu senti que era um bom lugar para ambientar uma história. Lembro dos meus 30 e poucos anos como uma época em que me preocupava em ganhar dinheiro suficiente apenas para pagar aluguel e pensando se tinha feito a escolha errada estudando ilustração na escola de artes e depois tentando ganhar a vida como ilustrador e quadrinista. Eu consigo me relacionar com muitos dos escritores na Paris dos anos 1920 também preocupados com dinheiro. E, por último, assisti ao filme O Grande Golpe, de Stanley Kubrick, que foi a inspiração para contar a história de um assalto fora de ordem cronológica.

Por que utilizar autores e artistas reais? E por que transformá-los em quadrinistas?

Para criar um distanciamento dos artistas, deixando claro que isso é uma fantasia e não fatos biográficos. Usei alguns fatos, mas ao mesmo tempo tive liberdade para inventar uma história. Além disso, achei engraçado transformar Hemingway e Scott Fitzgerald em quadrinistas.

“Você precisa aceitar que poderá fazer algo que ama, mas terá que enfrentar a realidade financeira como resultado”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

Eu estava pensando sobre os dramas e dilemas desses artistas e autores na vida real e como eles poderiam ser semelhantes aos de quadrinistas. Você crê em muitas similaridades entre a vida profissional e as dificuldades de um pintor ou escritor e a vida profissional e os dilemas de um quadrinista?

Sim, acho que são praticamentes os mesmos para todos os artistas, sejam escritores, quadrinistas ou artistas plásticos. Na maioria das vezes, não há muito dinheiro envolvido. Você precisa aceitar que poderá fazer algo que ama, mas terá que enfrentar a realidade financeira como resultado. Sem grandes apartamentos, sem férias caras, sem carros sofisticados. A menos que você seja daquele sortudo 1% que terá um sucesso ou conseguirá um contrato de cinema e poderá ganhar muito dinheiro. Provavelmente, depois que morrermos, é que o dinheiro vai entrar.

O que você vê de mais especial na Paris dos anos 1920? Quais seriam as motivações para todos esses artistas se reunirem nesse mesmo local durante esse mesmo período?

Bem, a cidade era barata. E muitos desses expatriados americanos já haviam estado na Europa durante a guerra, como soldados ou motoristas de ambulância. Paris significava liberdade. Na América havia proibição. E talvez a distância torne as coisas mais claras. Hemingway viveu em Paris, mas escreveu histórias sobre sua infância e juventude nos EUA.

“Não tenho nenhuma rotina em particular, exceto não escrever um roteiro completo”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

O quanto você acha que o mundo mudou nesse intervalo de 100 anos entre 1920 e 2020?

Eu não acho que as pessoas mudaram muito. A comunicação mudou. Há a internet e Iphones. Mesmo para mim, crescido nos anos 70, as coisas mudaram. Quando eu criança, na Noruega, havia uma estação de TV e uma estação de rádio. E as mudanças climáticas estão acontecendo agora, sabemos que o ambiente que nós demos como certo agora pode desaparecer, que estamos todos caminhando para uma catástrofe que mudará tudo. O futuro é muito incerto.

Eu gosto muito quando um autor se impõe algumas restrições. Penso nos seus grides fixos, por exemplo. Você gosta desse exercício? Há alguma restrição particular que te interessa mais?

Não vejo o gride como uma restrição. Para mim, ele é apenas esteticamente mais agradável. E assim um painel não recebe mais importância que outro. Cabe ao leitor decidir qual é importante. Então, na maior parte do meu tempo como cartunista, usei grides de 4 painéis, 6 painéis, 8 painéis ou 9 painéis. Houve um período em que fiz muitas histórias silenciosas. Isso foi uma restrição, não usar palavras. Bem, na verdade, eu não gostava de escrever, então ficou mais fácil não usar palavras. E então, em algum momento, esse se tornou o desafio, escrever diálogos. E agora eu gosto de uma combinação. Ter diálogo, mas também ter painéis silenciosos, se isso contar a história de maneira mais eficaz.

“Às vezes, tenho o começo e, enquanto estou trabalhando nisso, penso no que pode acontecer a seguir”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

Você pode me falar um pouco sobre os seus métodos de trabalho? Você tem alguma rotina em particular? Você está mais habituado a alguma técnica em particular? A Gangue da Margem Esquerda foi todo com tinta e papel, certo?

Sim, é tudo tinta no papel. Não tenho nenhuma rotina em particular, exceto não escrever um roteiro completo. Improviso e crio a história enquanto estou trabalhando nela. Às vezes, tenho o começo e, enquanto estou trabalhando nisso, penso no que pode acontecer a seguir. Às vezes eu tenho pedaços de diálogos. Outras vezes, as imagens aparecem primeiro e eu decido o diálogo enquanto desenho. Às vezes, faço esboços em miniatura, faço a maior parte do trabalho diretamente na página. Atualmente, eu desenho principalmente com um grid de 4 painéis. Não preciso trabalhar cronologicamente, trabalho em sequências e as coloco na ordem correta no final. Isso facilita a edição do livro. Se uma página ou uma sequência não funcionar, eu posso removê-la, sem precisar substituí-la por outra coisa.

Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento?


Eu reli alguns quadrinhos que não pegava desde que comprei. Christophe Blain, o cartunista francês, já li muitas coisas dele. Eu pretendo ler alguns dos romances russos que desisti pela metade anteriormente, como O Idiota e Os Irmãos Karamazov. Estou revendo Memórias de Brideshead, a série de TV com Jeremy Irons. Eu revejo O Picolino e os velhos filmes de Fred Astaire e Ginger Rogers. Columbo é sempre divertida de assistir e muito relaxante. Eu não tenho Netflix nem uso streaming, então tudo isso é DVD. Música, há muito para mencionar. Ouvi alguns CDs de John Renbourn que acabei de ganhar. 

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino
HQ

Especial Vitralizado: Jason fala sobre A Gangue da Margem Esquerda, os autores da Geração Perdida e o impacto da pandemia no mercado de HQs

“Por que a gente faz quadrinho?”, questiona Ezra Pound a Ernest Hemingway durante uma partida de pingue-pongue no reduto boêmio parisiense do Quartier Latin, em algum momento dos anos 1920. A resposta parte do também quadrinista James Joyce: “É porque líamos quadrinhos quando éramos crianças. Se tivéssemos jogado futebol ou subido em árvores, hoje seríamos normais. Teríamos trabalhos de verdade. Seríamos motoristas de ônibus ou carpinteiros e seríamos felizes”.

O autor irlandês encerra com um lamento: “Agora é tarde demais. É a única coisa que sei fazer. Não consigo dirigir um ônibus, nem acertar um prego com um martelo. Mas consigo contar uma história com desenhos e foder minha vista um pouco mais a cada dia. Estamos fodidos”.

Recém-lançado no Brasil pela editora Mino, com tradução de Dandara Palankof, A Gangue da Margem Esquerda apresenta quatro dos maiores nomes da literatura inglesa como autores de histórias em quadrinhos. Não só. Desenhados como animais antropomorfizados, Ezra Pound, James Joyce, Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway estão insatisfeitos com os rumos de suas carreiras e suas dificuldades financeiras, então arquitetam um assalto à mão armada. 

“Provavelmente, depois que morrermos, é que o dinheiro vai entrar”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

Terceira obra do quadrinista norueguês Jason publicada no Brasil, a HQ rendeu ao autor o Prêmio Eisner de Melhor Título Estrangeiro no ano de 2007. Seu primeiro trabalho lançado por aqui foi Sshhhh!, coletânea em preto e branco de histórias curtas e mudas que vão do humor ao macabro. Depois saiu Eu Matei Adolf Hitler, sobre um assassino profissional contratado por um cientista para viajar no tempo, matar o líder nazista e impedir o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial.

A Gangue da Margem Esquerda segue muito dos padrões dos demais trabalhos de Jason, como o uso de personagens antropomorfizados e a elegância narrativa caracterizada principalmente pelo uso de um gride constante de nove quadros por página. O contraste maior está na trama.

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

“Eu gosto do Hemingway e li muitas biografias sobre ele e sobre a Paris dos anos 1920. Foi um período emocionante, com muitas pessoas interessantes morando lá. Eu senti que era um bom lugar para ambientar uma história”, disse Jason em entrevista por email ao Vitralizado.

Jason consegue se relacionar com muitos desses escritores e artistas que viveram na Paris de 100 anos atrás. Na avaliação dele, na maior parte do tempo, a principal preocupação desses autores era a mesma que ele tinha quando estava em seus 30 e poucos anos, recém-saído da faculdade e tentando viver como quadrinista: ganhar dinheiro para pagar o aluguel. Para Jason, dificuldades financeiras tendem a ser um drama para 99% dos artistas.

“Na maioria das vezes, não há muito dinheiro envolvido. Você precisa aceitar que poderá fazer algo que ama, mas terá que enfrentar a realidade financeira como resultado. Sem grandes apartamentos, sem férias caras, sem carros sofisticados. A menos que você seja daquele sortudo 1% que terá um sucesso ou conseguirá um contrato de cinema e poderá ganhar muito dinheiro. Provavelmente, depois que morrermos, é que o dinheiro vai entrar”.

“Achei engraçado transformar Hemingway e Scott Fitzgerald em quadrinistas”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

E por que fazer dos quatro protagonistas autores de histórias em quadrinhos?

“Para criar um distanciamento dos artistas, deixando claro que isso é uma fantasia e não fatos biográficos. Usei alguns fatos, mas ao mesmo tempo tive liberdade para inventar uma história. Além disso, achei engraçado transformar Hemingway e Scott Fitzgerald em quadrinistas”.

Fitzgerald é mostrado lamentando a falta de interesse da esposa, Zelda, em suas HQs e Hemingway protagoniza uma cena na qual busca conselhos com a mentora Gertrude Stein – creditada como responsável pela criação do termo Geração Perdida para designar esse grupo de autores expatriados na Paris dos anos 1920.

“Que tipo de lápis está usando?”, questiona Stein, também transformada em quadrinista. Depois ela instrui: “Nunca copie uma foto. Se precisar desenhar um automóvel, saia, ache um e desenhe em seu caderno de rascunhos, certo?”.

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

Já a ideia do roubo partiu de uma sessão de O Grande Golpe (1956), terceiro filme de Stanley Kubrick, com o ator Sterling Hayden no papel de um ladrão recém-saído de um período de cinco anos atrás das grades que planeja um último assalto antes de se casar e se aposentar da vida de crimes.

A metade final de A Gangue da Margem Esquerda, focada no crime executado pelo quarteto de quadrinistas, tem influência direta da narrativa fora de ordem cronológica do assalto mostrado no filme de Kubrick. A ação e os desdobramentos do roubo arquitetado por Hemingway com o auxílio de seus três amigos são apresentados sob os pontos de vista de sete personagens.

Em relação à produção do quadrinho, Jason diz ter seguido sua prática habitual de tinta e papel, sem uso de computador.

“Improviso e crio a história enquanto estou trabalhando nela”

Quadros de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino

“Não tenho nenhuma rotina em particular, exceto não escrever um roteiro completo. Improviso e crio a história enquanto estou trabalhando nela. Às vezes, tenho o começo e, enquanto estou trabalhando nisso, penso no que pode acontecer a seguir. Às vezes eu tenho pedaços de diálogos. Outras vezes, as imagens aparecem primeiro e eu decido o diálogo enquanto desenho. Às vezes, faço esboços em miniatura, faço a maior parte do trabalho diretamente na página”.

Hoje aos 54 anos, Jason reside desde 2007 na cidade francesa de Montpellier. Ele está atualmente confinado em casa, respeitando o isolamento social imposto pelas autoridades locais durante a pandemia do novo coronavírus. Mas ele conta que sua vida como o autor de quadrinhos já impõe certo distanciamento social ao trabalhar em casa na maior parte do tempo.

Ele acredita ainda estar cedo para mensurar o impacto da pandemia no mercado de quadrinhos, mas mostra-se pessimista: “Sou publicado na maior parte das vezes por editoras pequenas, administradas por duas pessoas. E o mercado já é difícil, pelo menos na França, com muitas publicações novas a cada semana. Espero que todos os meus editores ainda estejam por aí e que as lojas de quadrinhos também se saiam bem quando meu novo livro for publicado na próxima primavera”.

A capa de A Gangue da Margem Esquerda, álbum do quadrinista norueguês Jason publicado no Brasil pela editora Mino