Tem uma história minha no 26º episódio do podcast Rádio Novelo Apresenta. Difícil falar sobre o tema sem entrar em spoilers, mas posso dizer que tem morte, celebridade internacional e teoria conspiratória. Com a participação especial do Cid Moreira. A minha reportagem é a terceira do programa – mas ouça tudo, as duas histórias que antecedem a minha, da Natália Silva e da Bia Guimarães, são sensacionais.
Deixo aqui meu agradecimento à equipe da Rádio Novelo (um obrigado especial aos amigos Tiago Rogero e Vitor Hugo Brandalise) pela parceria na produção. E também ao André Medeiros pela captação do áudio ambiente. Dá o play:
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Papo com Glenn Head, autor de Chartwell Manor: “Me recuso a deixar minhas experiências passadas me dominarem ou me silenciarem”
Chartwell Manson foi uma das minhas leituras mais impactantes de 2022. O álbum narra as vivências de seu autor, o quadrinista Glenn Head, durante a infância, no internato que dá título à obra, e seus traumas como uma das vítimas do diretor da institução, o predador sexual condenado Terence Michael Lynch. Entrevistei Head sobre o livro, publicado em português pela Comix Zone, com tradução de Érico Assis, e transformei a nossa conversa em reportagem para o jornal Folha de S.Paulo (você lê o meu texto clicando aqui). Compartilho abaixo a íntegra do meu papo com o artista. Saca só:
“Foi estranhamente libertador desenhar esse pesadelo de terror gótico”
Chartwell Manor não é apenas sobre o seu período no internato, mas também sobre o impacto dessa experiência na sua vida e também na vida de seus colegas. Você já se pegou pensando em quem poderia ter sido, quem os seus colegas de Chartwell Manor poderiam ter sido, caso não tivessem passado pelos abusos que passaram?
É claro, ao olhar para trás, você sempre se pergunta sobre essas coisas, sobre o passado e como você poderia ser diferente caso não fossem certas experiências – especialmente aquelas mais traumáticas, como um abuso.
Uma coisa que foi muito positiva (uma das únicas coisas!) em ter passado por Chartwell foi que me ajudou a forjar a minha identidade como artista. Eu tinha um professor de inglês que me encorajava muito em relação à minha produção artística. Então, o que quero dizer é: por pior que Chartwell tenha sido, para todos nós que fomos lá, a vida é complicada! Por mais infernal que aquele lugar fosse, eu realmente saí de lá com algo bom. Um amor por desenhos que dura até hoje. Isso também aconteceu em Chartwell.
Mas, na verdade, Chartwell traumatizou todos nós. Todo mundo que eu conheci que passou por lá acabou com problemas de vícios em drogas. Alguns foram para a prisão ou cometeram suicídio. Alguns se tornaram abusadores. Mas também acho que na vida existem pessoas que são ‘jogadas debaixo do ônibus’ pela sociedade. Às vezes quando jovens. Se eles tiverem sorte, se eles não morrerem no caminho, eles saem apenas feridos, mas continuam. Assim como eu.
Eu sempre quero saber sobre o ponto de partida das obras que leio, sobre a inspiração do autor por trás de sua obra. Mas o seu livro é, essencialmente, sobre as motivações para a produção dele. Então eu gostaria de saber: o que significou para você publicar Chartwell Manor?
Publicar Chartwell Manor significou muitas coisas. Acima de tudo e mais importante, significou pegar essa experiência profundamente perturbadora e transformá-la em uma história em quadrinhos divertida e fascinante! Uma história que emociona, assusta e se prende a você… É motivo de orgulho para mim que muitas pessoas leiam Chartwell Manor em uma sentada só. Talvez pareça estranho falar sobre uma história de abuso dessa maneira, mas acredite em mim quando digo: se uma história em quadrinhos (graphic novel, sei lá) não diverte, está morta! E Chartwell não está morta.
A publicação de Chartwell também significou algo mais profundo: que me recuso a deixar minhas experiências passadas me dominarem ou me silenciarem. Quem tentar desenhar um livro como este ouvirá muitas vozes dizendo: ‘Não! Não desenhe isso, você não pode!!’. Bem, eu posso. E desenhei.
“Nem todo mundo teve a saída criativa dos desenhos que eu encontrei”
Você pode contar um pouco por favor sobre seus sentimentos ao reviver todas as suas experiências em Chartwell Manor? Aliás, não só as suas, aquelas que seus colegas também viveram por lá, como crianças. Como o Glenn, hoje, aos 65 anos, se sentiu ao retratar todos esses crimes cometidos contra crianças?
Como eu me senti desenhando e revivendo essas experiências? Bem, digo que é estranho voltar no tempo e fazer essa viagem pela minha infância… Mas foi estranhamente libertador desenhar esse pesadelo de terror gótico. Colocar isso tudo no papel… Eu gostei! De verdade, foi a experiência mais divertida que já tive fazendo uma história em quadrinhos. Mas é bom esclarecer essa afirmação: não quis minimizar o sofrimento de ninguém que passou por Chartwell Manor. Nem todo mundo teve a saída criativa dos desenhos que eu encontrei. Vejo essas memórias como uma farpa que precisava sair. Foi muito libertador para mim encarar esse material da forma que encarei.
Também me fez sentir mal pelos meus amigos da época. Sinto como se fôssemos todos crianças rejeitadas. Crianças que os pais queriam largar em outro lugar.
Também queria saber sobre os seus métodos durante a produção do livro. Você chegou a finalizar um roteiro todo antes de começar a desenhar? O quanto de pesquisa esse livro exigiu além das suas memórias sobre os eventos ligados a Chartwell Manor?
O roteiro é de longe a coisa mais importante. A história inteira tem que estar muito bem resolvida antes de qualquer lápis. Eu vejo todo o processo como se estivesse fazendo um filme. Todos os bons filmes têm bons roteiros… É a mesma coisa com os quadrinhos. Escrever é fundamental!
Minha esposa é uma ótima editora, então ela vê os rascunhos, as ‘falhas’ do livro, capítulo por capítulo, antes dos desenhos e da tinta. Eu ouço os conselhos dela. Ela é a melhor editora que já tive.
A maior parte da pesquisa tinha a ver com estudar crianças, não é como desenhar adultos, protagonistas da maior parte dos meus desenhos como cartunista. Tive que estudar as proporções para fazer direito. Também trabalhei com fotos quando necessário. Chartwell Manor é essencialmente realidade em quadrinhos, então tem que parecer o mais real possível!
No livro, você demonstra uma certa relutância inicial em contar a sua história em um quadrinho autobiográfico. Por que essa relutância? Aliás, o que você acha que faz um bom quadrinho autobiográfico? Você tem uma obra preferida desse “gênero”?
Minha relutância em fazer Chartwell Manor foi importante porque mostrou a dificuldade inerente em enfrentar o passado, especialmente os momentos mais dolorosos. Sinto que isso precisa ser ressaltado – que este é um material difícil. Não é fácil e não entrei nessa levianamente.
O que faz um bom quadrinho autobiográfico? Para mim tem que ter o que qualquer bom quadrinho tem: bom desenho, uma história bem escrita, algum humor, com a óbvia adição de ser profundamente tocante e pessoal. Não gosto de abordagens jornalísticas ou dia-a-dia-aqui-é-minha-vida-em-tempo-real para autobiografia, isso é chato! Olha, como eu disse antes, os quadrinhos são sempre entretenimento. Eles também podem ser muitas outras coisas, mas….
Meu quadrinho autobiográfico favorito é do Art Spiegelman, com o título Spiegelman Moves to New York Feels Depressed!. É uma história em quadrinhos de uma página, mas mergulha profundamente no isolamento e na ansiedade da vida urbana. Para mim é o quadrinho mais pessoal dele, é ele extremamente vulnerável. Vulnerabilidade, aliás, é a chave para uma boa autobiografia. É óbvio.
“Os quadrinistas underground exigiam a liberdade para desenhar o que quisessem”
Chartwell Manor tem várias referências a quadrinhos underground dos anos 1970, principalmente aos trabalhos de uma geração quem tem no Robert Crumb seu maior expoente. O que mais te atrai, o que você vê de mais especial nos quadrinhos dos autores dessa geração?
As vozes individuais. A primeira coisa que realmente me impressionou, junto com as temáticas malucas, eram as singularidades de seus traços. Estranhos, idiossincráticos, primitivos, grosseiramente desenhados ou mais polidos (como Crumb), esses eram artistas que seguiam seu próprio caminho. A palavra-chave aqui: autonomia. Os quadrinistas underground exigiam a liberdade, o espaço, para desenhar o que quisessem. Essa liberdade, como a liberdade dos próprios artistas, era radical. Essa recusa em ser censurado, diluído, tornado respeitável, era muito parecida com outras formas de arte que me atraíam na época (na música e no cinema).
O ponto real, porém, é que o que esses quadrinistas underground fizeram foi seguir em frente. Eles abriram portas para outros artistas, como eu. Para levarmos as coisas ainda mais longe, se quisermos.
Aliás, você apresenta quadrinhos e música como grandes escapes para você em meio às suas vivências em Chartwell Manor e também em outras fases de sua juventude. Qual a importância de quadrinhos, música e artes em geral na sua vida? Ou melhor, o que quadrinhos, música e artes significaram para você durante essas experiências traumáticas da sua juventude?
Bem, o rock and roll é usado quase como trilha sonora de Chartwell Manor! A canção Jumpin’ Jack Flash [dos Rolling Stones] tem uma frase sobre ser ‘educado com uma alça nas costas’ – ela se encaixa perfeitamente no mundo do internato britânico em que eu estava no livro.
A cultura pop era muito importante para mim porque eu não gostava do mundo em que cresci: internato e subúrbio, eu odiava tudo isso, então algum tipo de escapismo era necessário. De certa forma, não mudei… Acho que 90% do que acontece na vida é besteira, tento evitar a maior parte disso tudo me apegando ao que amo: quadrinhos, filmes, música, arte, livros e fotografia.
Eu fico curioso, quais são os seus sentimentos ao ver seu trabalho chegando no Brasil?
Bem, eu ainda não vi a edição brasileira, mas estou ansioso… Espero que alguém me envie uma cópia! Mas é claro, é muito emocionante ver meu trabalho traduzido. Chartwell Manor está em toda a Europa, e isso também é uma grande motivação para mim! Para um quadrinista, fazer seu trabalho e ser visto pelo maior número possível de pessoas, todos nós almejamos isso, né?
“Criminosos brincalhões, carismáticos, intimidadores e mentirosos parecem cada vez mais presentes na política”
Eu fiquei pensando sobre a figura de Terence Michael Lynch e ele me pareceu muito semelhante, em seus discursos e técnicas, com lideranças com discursos religiosos de extrema direita que parecem estar se proliferando ao redor do mundo. Você também vê esse paralelo? Como você acha que podemos não nos deixar enganar por figuras como ele?
Eu vejo esse paralelo, é claro! Criminosos brincalhões, carismáticos, intimidadores, maiores que a vida e mentirosos parecem cada vez mais presentes na política agora e, sim, Lynch também era uma força da natureza. E como ele, esses políticos são muito perigosos porque podem ser absurdos, até engraçados, mas o que eles fazem não é brincadeira. A única maneira das pessoas não serem enganadas por figuras assim é pensando por si mesmas, não se deixando enganar. Mas sempre haverá pessoas sendo enganadas.
Eu sempre fui bastante questionador. Eu tinha treze anos quando comecei em Chartwell. Se eu fosse mais jovem, teria sido pior para mim. De certa forma, consegui ver através de Lynch, quem ele realmente era. Com Lynch, aprendi sobre líderes carismáticos. Essencialmente, o que eles querem é que você seja o combustível em seu tanque no caminho para a glória. Eles ficam felizes em usar você e qualquer outra pessoa para chegar onde querem. A verdade é que mundo está cheio desse tipo de coisa. Nem precisa ser sexual. Mas sempre acaba sendo predatório.
Você pode recomendar algo que tenha visto, ouvido ou lido recentemente?
A graphic novel Maverix and Lunatix: Icons of Underground Comix, do Drew Friedman e recém-lançada, é uma das minhas favoritas do momento. Ele captura esse mundo louco dos quadrinhos dos anos 1960 com belos retratos de todos os artistas dessa época. Eu recomendo. É maravilhosa!
Papo com Alan Moore, autor de Iluminações (parte 3): “Proponho uma arte poderosa o suficiente para abalar as muralhas da cidade e popular o suficiente para encontrar o engajamento da multidão”
Entrevistei o escritor inglês Alan Moore, autor de alguns dos maiores clássicos das HQs mundiais. A nossa conversa teve como ponto de partida Iluminações, coletânea de contos do autor britânico publicada no Brasil pela editora Aleph, com tradução de Adriano Scandolara e capa de Pedro Inoue. O meu papo com Moore é conteúdo exclusivo da edição nacional de Iluminações, disponível nas melhores livrarias e no site da editora Aleph.
Publico agora a terceira de três perguntas da entrevista que o pessoal da Aleph liberou para compartilhar aqui no blog (você lê a primeira clicando aqui e a segunda clicando aqui). No trecho abaixo, Moore expôs sua opinião sobre a cooptação de artistas e obras pela indústria do entretenimento:
A literatura, a ficção científica, quadrinhos e outras formas de arte muitas vezes são tratadas como parte da “indústria do entretenimento”. Qual sua opinião quanto a essa cooptação dos artistas e suas obras pela indústria?
Se a arte não conseguir entreter, pelo menos em algum nível, então terá uma imensa dificuldade em transmitir sua mensagem a uma plateia que não seja minúscula. Por outro lado, se for apenas entretenimento vazio, então perde todo seu poder e sentido enquanto arte, e torna a empreitada imprestável, exceto para propósitos comerciais. O que eu proponho é uma arte poderosa o suficiente para abalar as muralhas da cidade e popular o suficiente para encontrar o engajamento da multidão. Espero que minha obra seja capaz de entreter o leitor o bastante para que ele absorva o conteúdo, mas nunca me vi como alguém do entretenimento. Por sorte, meus críticos me garantem que eu não preciso me preocupar nesse quesito.
(Na imagem que abre o post, arte original de Kevin O’Neill para A Liga Extraordinária)

Papo com Alan Moore, autor de Iluminações (parte 2): “Super-heróis desempenharam um imenso papel na infantilização da cultura ocidental ao longo desta última década”
Entrevistei o escritor inglês Alan Moore, autor de alguns dos maiores clássicos das HQs mundiais. A nossa conversa teve como ponto de partida Iluminações, coletânea de contos do autor britânico publicada no Brasil pela editora Aleph, com tradução de Adriano Scandolara e capa de Pedro Inoue. O meu papo com Moore é conteúdo exclusivo da edição nacional de Iluminações, disponível nas melhores livrarias e no site da editora Aleph.
Publico agora a segunda de três perguntas da entrevista que o pessoal da Aleph liberou para compartilhar aqui no blog (você lê a primeira clicando aqui). No trecho da conversa abaixo, Moore refletiu sobre sua classificação de quadrinhos de super-heróis como “escapismo insalubre”. Saca só:
Você já classificou os gibis de super-heróis como “escapismo insalubre”. Qual sua opinião quanto ao fato de esse tipo de escapismo continuar tão popular para o público em geral após tantas décadas sem grandes mudanças no gênero (mesmo após a aparição de obras revolucionárias criadas por você e alguns de seus pares da década de 1980 em diante)?
Acho que, na década de 1980, as pessoas alegavam que os quadrinhos tinham crescido, quando na verdade deram de cara com a idade emocional do público, que estava indo na direção oposta. Desde o começo, com o Super-homem de Siegel e Schuster, os super-heróis eram as necessárias fantasias de poder da classe trabalhadora do período da Grande Depressão, feitas por criadores da classe trabalhadora no que era então um formato de trabalhadores visando a um público de trabalhadores. Hoje, os quadrinhos são cotados e embalados quase que exclusivamente para hobbyistas de classe média e de meia idade, por isso servem como fantasias de poder para os que já detêm o poder. Acho que sua existência prolongada até o dia de hoje é parte de uma reação de pânico contra a complexidade cada vez maior do mundo: as pessoas ficam ansiosas e com medo, compreensivelmente, diante de um mundo que é complicado demais para ser compreendido ou controlado. Quando a narrativa da vida moderna se torna complexa demais para se suportar, talvez muitos sintam a compulsão de recuar até uma narrativa mais simples que, embora seja uma bobajada delirante, pelo menos é compreensível. O festival de teorias da conspiração dos anos Trump é um exemplo perfeito. O conceito Q-Anon de demônios pedófilos subterrâneos do Partido Democrata devorando as glândulas adrenais das crianças apresenta uma ameaça ridícula, simplista e inexistente, de gibi, que só pode ser combatida por um herói de gibi igualmente ridículo, simplista e inexistente, a saber, “O Donald”. Super-heróis, em sua encarnação atual – histórias infantis que são aparentemente as únicas com as quais os adultos relutantes de hoje estão preparados para se engajar – desempenharam um imenso papel na infantilização da cultura ocidental ao longo desta última década. E eu argumento que essa foi uma imensa contribuição para a ascensão do fascismo popular nesse mesmo período. Minhas obras, que eu mesmo já reneguei, como Marvelman e Watchmen, não foram concebidas como uma revitalização desse gênero decadente, mas como uma sátira e crítica. O super-herói hoje só pode ser uma figura invulnerável de compensação para uma nação com medo de dormir sem uma pistola na mesinha de cabeceira ou uma representação orgulhosa do excepcionalismo norte-americano. Imagino que eles só vão morrer ou perder o apelo quando morrer a necessidade psicológica de super-heróis, o que pode demorar um tempo, dado o estado atual da cultura e da sociedade.
(Na imagem que abre o post, arte original de Garry Leach para a primeira edição de Miracleman, com roteiro de Alan Moore, lançada em agosto de 1985)

Papo com Alan Moore, autor de Iluminações (parte 1): “O pessimismo, não importa quão bem fundamentado, é quase sempre inútil”
Entrevistei o escritor inglês Alan Moore, autor de alguns dos maiores clássicos das HQs mundiais. A nossa conversa teve como ponto de partida Iluminações, coletânea de contos do autor britânico publicada no Brasil pela editora Aleph, com tradução de Adriano Scandolara e capa de Pedro Inoue. O meu papo com Moore é conteúdo exclusivo da edição nacional de Iluminações, disponível nas melhores livrarias e no site da editora Aleph.
Publico agora a primeira de três perguntas da entrevista que o pessoal da Aleph liberou para compartilhar aqui no blog. Ela vem acompanhada de uma pequena introdução, na qual falo com Moore sobre o contexto no qual Iluminações foi lançado no Brasil – nos últimos instantes do governo de Jair Bolsonaro. Saca só:
Vivemos tempos estranhos em todo o mundo, mas o Brasil passa por um período extraordinariamente catastrófico. Temos um presidente de extrema-direita, um homem que repetidamente expressou (e pôs em prática) suas visões autoritárias e antidemocráticas. Parece-me que a situação no Reino Unido talvez seja menos catastrófica, mas vocês também estão convivendo com as consequências do Brexit e do período durante o qual Boris Johnson foi primeiro-ministro. Digo isso para explicar como a publicação do seu livro e a oportunidade de conversar com você representam um alívio em meio a todo esse obscurantismo.
O título Iluminações soa muito pertinente para este período sombrio pelo qual estamos passando. Existe alguma luz que permita algum otimismo quanto ao futuro da humanidade?
O otimismo, justificado ou não, é a única postura funcional, e o pessimismo, não importa quão bem fundamentado, é quase sempre inútil; um ato de entregar-se às circunstâncias que torna essas mesmas circunstâncias praticamente inevitáveis. Em quase todas as frentes – a contínua destruição do meio-ambiente; a intenção óbvia dos bilionários do mundo de roubar o dinheiro de todos; a invasão da cultura de vigilância em todas as vidas humanas do planeta; a desestabilização da realidade consensual sob uma avalanche de idiotice ridícula; a ascensão de algo que sequer dá para chamar de fascismo; o desejo em massa de escapar para uma realidade de fantasia, seja a Second Life ou o Metaverso, como se fosse existencialmente possível – nossa espécie parece estar numa condição terminal, sem a menor esperança. O meu próprio otimismo, tal como é, nasceu da minha percepção de que o desenvolvimento humano pode estar seguindo a fórmula alquímica de solvé et coagula, onde solvé é o processo de análise, de desmontar algo até o seu componente mais ínfimo, a fim de compreender plenamente o todo, e coagula é o processo de síntese, de reunir os componentes de volta de uma forma aprimorada. Minha esperança é que a fragmentação que vemos hoje em quase toda parte na sociedade seja o último estágio necessário de solvé, o desmantelamento do antigo mundo, para que a parte de coagula possa começar a construir o novo. Pode ser uma esperança frágil, mas é a única fonte de iluminação que eu consigo discernir no que, fora isso, é um apagão moral pestilento.
(Na imagem que abre o post, a arte original de John Totleben para a edição 60 de Monstro do Pântano, com roteiro de Alan Moore, lançada em maio de 1987)
Papo com Pablito Aguiar, autor de Almoço: Uma Conversa com Eliane Brum: “Foi com ela que aprendi sobre ser repórter”
O quadrinista Pablito Aguiar conheceu o trabalho da jornalista Eliane Brum após vê-la sendo entrevistada pelo apresentador Antônio Abujamra (1932-2015), em uma edição de 2013 do programa Provocações. Ele diz ter ficado “impactado com a voz doce dela e ao mesmo tempo a fala tão forte sobre como ela enxerga o jornalismo e a vida”. As 80 páginas de Almoço: Uma Conversa com Eliane Brum (Arquipélago) apresentam, em quadrinhos, uma entrevista do autor com a jornalista na casa dela, em Altamira, no Pará.
Ao longo dos últimos anos, Pablito se tornou um especialista em grandes entrevistas com figuras anônimas. Em 2017 ele publicou Alvorada em Quadrinhos, reunindo histórias de 23 moradores de sua cidade natal, Alvorada, no Rio Grande do Sul. Durante a pandemia do novo coronavírus, ele produziu a série Fala que eu Desenho, sobre vivências de diferentes pessoas durante seus períodos de isolamento social. Ele é um dos expoentes de uma cena brasileira de jornalismo em quadrinhos que ainda conta com Carol Ito, Gabriela Güllich, Cecília Marins, Alexandre De Maio e outros.
Em Almoço, Pablito faz uso de seu traço cada vez mais minimalista para apresentar algumas das principais reflexões em curso na mente de uma das jornalistas brasileiras mais premiadas e reconhecidas de sua geração – e grande inspiração para o trabalho jornalístico desenvolvido por ele.
O álbum mostra Brum preparando um almoço para o quadrinista enquanto ela conta suas motivações por trás de sua mudança para o norte do país e o início de seus trabalhos na Sumaúma – Jornalismo do Centro do Mundo, plataforma de jornalismo baseada na Amazônia e voltada para a cobertura de “uma guerra contra a natureza”.
Mandei algumas perguntas por email para Pablito Aguiar sobre o desenvolvimento de Almoço, sua admiração por Eliane Brum e seus trabalhos com jornalismo em quadrinhos. Compartilho a seguir a íntegra dessa conversa. Saca só que massa:
“O que me tocou primeiro foi ver como ela ama ser jornalista”

Você se lembra do seu primeiro contato com o trabalho da Eliane Brum? Você se lembra de qual reportagem foi e quais foram suas impressões sobre ela?
Eu lembro sim, muito bem. Foi a [quadrinista] Grazi Fonseca que me apresentou pela primeira vez uma entrevista da Eliane Brum, na TV Cultura, no antigo programa Provocações com o Abujamra. A Grazi viu o meu interesse em entrevistar pessoas e disse que tinha uma jornalista que eu iria adorar. Eu não sabia quem era a Eliane. Eu fiquei impactado com a voz doce dela e ao mesmo tempo a fala tão forte sobre como ela enxerga o jornalismo e a vida. E, a partir daí, fui lendo todos os livros da Eliane e vendo todos os vídeos dela no YouTube e me transformando a cada uma dessas experiências.
E o que você vê de mais especial no trabalho da Eliane Brum?
Foi com a Eliane que aprendi sobre ser repórter, o cuidado com o entrevistado, a ética, a importância de checar os fatos… A Eliane tem um jeito delicado e ao mesmo tempo intenso de escrever os textos que deixam o leitor quase sem respiração, mas acho que o que me tocou primeiro foi ver como ela ama ser jornalista. No posfácio do livro A Vida que Ninguém vê ela diz:
“Ser repórter é um dos grandes caminhos para entrar na vida (principalmente a alheia) com os dois pés e com estilo. Desde pequena, o que mais me fascinava era passar pelas casas e prédios de apartamentos, adivinhar a luz lá dentro e imaginar o que acontecia, que vidas eram aquelas, com o que sonhavam, que dramas tinham, o que as fazia rir. Pronto. Arranjei uma maneira de entrar em qualquer casa iluminada por dentro, mesmo que seja com uma vela. Ser repórter não tem preço. Em todos os sentidos”.
Ela fala que quando percebeu que poderia entrar em qualquer lugar, conversar com qualquer pessoa, com um bloquinho e uma caneta na mão, se encantou pela profissão. Para mim também foi assim. Quando percebi que poderia conhecer qualquer pessoa com um gravador e a promessa de fazer um quadrinho, me apaixonei. Sabe, e ainda contar histórias que valorizem a vida das pessoas! Só vantagens. Me vi nesse amor que a Eliane tem pelo jornalismo e decidi que era isso que gostaria de ser.
“Sempre procuro que a entrevista pareça uma conversa”

O que significou para você essa oportunidade de conversar com a Eliane Brum?
Para ter uma ideia, eu já vinha planejando ir para a Altamira antes da pandemia. Planejava entrevistar pessoas da cidade e tentar encontrar a Eliane. Não seria fácil. Eu não tinha ninguém para me apresentá-la. Quando recebi uma mensagem da editora Arquipélago, que também edita os livros da Eliane, em abril de 2022, dizendo que gostariam de conversar comigo sobre um projeto que unisse o meu trabalho com o dela, fiquei sem acreditar. Era ainda mais do que eu estava me permitindo sonhar. Era um trabalho direto com a Eliane. Ainda não estava certo sobre como seria esse projeto, então fiz uma proposta para eles: e se eu fosse até Altamira, no Pará, conversar com a Eliane Brum na casa dela? E eles toparam!
Encontrar a Eliane significou a realização de um sonho e ouvir dela que o meu trabalho era importante e que ela gostou de conversar comigo me fizeram acreditar ainda mais nos quadrinhos que eu faço.
Eu fico curioso em relação aos seus métodos de trabalhos. Como são os seus preparativos antes de uma entrevista? Você grava as suas entrevistas? Você tira fotos?
No caso da Eliane, eu pensei bastante que perguntas fazer e no dia levei um roteiro escrito no bloco de desenho. Mas sempre procuro que a entrevista pareça uma conversa, para que ela flua naturalmente com perguntas que façam sentido na sequência. Me guio muito pela minha curiosidade, e as perguntas que anoto previamente eu uso só caso eu não consiga pensar em nenhuma questão. Paralelo às perguntas, eu tiro muitas e muitas fotos, e faço vídeos também durante a conversa. Sempre com um gravador ligado, claro, porque a minha memória é péssima.
Acho entrevistas ao vivo, sejam pessoalmente ou por telefone, mais interessantes, mas confesso que odeio transcrever. Me fala também, por favor, sobre suas rotinas pós-entrevistas? Você transcreve tudo? Você tem algum método pessoal para selecionar os “melhores momentos” de cada conversa?
É chato mesmo transcrever, mas eu transcrevo tudo ainda. Acho importante ouvir tudo de novo, sabe? Porque para mim, quando estou em casa transcrevendo, acabo ouvindo com mais atenção. Sem distrações. Vou transcrevendo, sentindo tudo de novo e já pensando no que foi importante na nossa conversa. Depois de transcrita a entrevista, eu imprimo (a transcrição da Eliane deu 14 páginas) e vou destacando com o lápis as partes que eu considero mais importantes. Depois imagino como vai ser a narrativa da história e começo a montar, como um mosaico, as falas da pessoa no quadrinho.
“O meu objetivo é que o leitor tenha a experiência mais próxima possível da que eu tive”

Como você e os seus editores chegaram no recorte desse livro com a Eliane Brum? Em qual momento você determinou que o foco na obra seria nesse seu almoço com ela?
Foi lendo o livro Banzeiro Òkòtó, da Eliane Brum, publicado pela Companhia das Letras, que eu tive essa ideia. Na página 371 ela fala: “Cozinhar feijão é como elaboro magicamente a minha vida. Em fogo lento, tirando o máximo de sabor daquilo que a terra me dá, usando temperos e ervas como bruxa.”
Quando li isso, pensei que seria muito bonito se eu tivesse a oportunidade de conhecer e desenhar esse lado caseiro da Eliane e ao mesmo tempo conversar sobre assuntos tão importantes para ela. Esse momento na cozinha, onde ela reflete sobre a vida, me pareceu ideal. E felizmente ela aceitou.
Mas o livro acabou indo além só do preparo do feijão, e virou um livro em que ela prepara todo o almoço. O feijão, o arroz, a salada, o suco de cupuaçu… Como foi no nosso encontro. E cada um desses elementos acabou virando um capítulo do livro.
São muito comuns obras de jornalismo em quadrinhos com jornalistas se colocando como personagens. Por que a sua opção por não se retratar na HQ?
Eu adoro livros e quadrinhos onde o repórter se coloca como personagem. A própria Eliane faz isso. Mas nos meus quadrinhos eu fiz uma escolha narrativa diferente. Procuro criar a impressão de que o entrevistado esteja conversando com o leitor, e não comigo. O meu objetivo é que o leitor tenha a experiência mais próxima possível da que eu tive, por isso desapareço e coloco ele no meu lugar.
“Cada palavra escolhida diz muito sobre a personalidade da pessoa”

Eu gosto de uma reflexão proposta pelo Joe Sacco no livro Reportagens que ele questiona “como conciliar a subjetividade inerente aos desenhos com a verdade objetiva que se aspira em uma matéria jornalística?”. Eu repasso a pergunta para você: como?
Pois é, acredito que o resultado dessa conciliação entre a subjetividade e a verdade objetiva deva ser um trabalho em que a pessoa entrevistada se reconheça na criação. O trabalho que eu faço tem que ser sobre quem eu escutei, não sobre mim. E algo que me ajuda nesse processo de produção é montar um quadrinho respeitando as falas da pessoa. Respeitando a sintaxe e a linguagem utilizada, sem sinônimos, porque cada palavra escolhida diz muito sobre a personalidade da pessoa, e se eu alterasse estaria ficando distante de quem ela é. É claro que o quadrinho dá espaço também para criações, no caso da Eliane, por exemplo, quando fui pela primeira vez na casa dela e fiz a entrevista não havia quatro gatinhos, e sim dois… mas durante a minha estadia em Altamira a Eliane adotou mais dois gatos e não quis excluí-los da obra. Queria que toda a família da Eliane estivesse nesse registro. Foi uma criação, que o quadrinho possibilita, que acredito que ajudou a entender mais quem a Eliane é, não o contrário.
Algo que gosto muito no seu trabalho é o contraste entre o minimalismo do seu traço e as muitas nuances das falas e dos gestos dos seus entrevistados. E eu fico com a impressão que você investe cada vez mais nesse contraste. Procede essa minha impressão?
Eu percebo que estou cada vez tentando olhar com mais atenção a pessoa que entrevisto. Os gestos, a forma como sorri, como fica triste, como é a casa onde ela mora, os sons… Acredito que quanto mais detalhes eu trouxer, mesmo com o meu traço minimalista, melhor a pessoa vai se enxergar no meu trabalho.