Escrevi pra revista Rolling Stone sobre o trabalho do quadrinista Alcimar Frazão no álbum O Diabo & Eu. Fiz uma longa entrevista com o autor antes de produzir meu texto. O foco do papo estava, principalmente, na origem da HQ, nas inspirações do gibi e em algumas leituras possíveis para a obra. No entanto, a conversa foi bem além. Frazão me falou sobre seu esforço em transformar em narrativa gráfica e sequencial diferentes elementos da linguagem musical e também abordou o diálogo entre a realidade do protagonista do quadrinho e o atual contexto político brasileiro. Em um dos momentos mais tristes da democracia brasileira, é encorajador ler/ouvir as palavras de esperança de Frazão. Reproduzo a seguir o texto publicado na revista e a íntegra da entrevista com o quadrinista. Ó:
Pacto sinistro
As 64 páginas em preto e branco de O Diabo & Eu (editora Mino) adaptam para os quadrinhos os 27 anos de vida do músico Robert Johnson (1911-1938). Diz a lenda que o artista teria dado a alma ao demônio em troca de seus dotes musicais, em pacto feito em uma encruzilhada no interior do Mississippi. A obra do quadrinista Alcimar Frazão, lançada em tiragem limitada em 2013, ganha edição com páginas extras. Nelas, nomes fortes dos quadrinhos nacionais propõem mais de uma interpretação à suposta relação entre o tinhoso e o maior bluesman de todos os tempos.
Sem qualquer fala ou onomatopeia, O Diabo & Eu conta com a força dos traços e dos contrastes para contar a versão de Frazão para diversos momentos da vida de Johnson. O objetivo, explica o autor, foi ressaltar os aspectos dramáticos da vida de seu personagem.
“Era importante para mim que o drama estivesse colocado a partir das imagens, de alguma forma fosse apenas o eco do que é narrado nas músicas dele”. A HQ aborda a morte do pai de Johnson, os abusos de seu padrasto e passagens de sua carreira como artista itinerante.
A obra também serviu como espaço de experimentação para o autor. Músico amador, Frazão diz ter investido em um elemento usualmente pouco explorado da linguagem dos quadrinhos. “O tempo é o princípio menos controlável das HQs, mesmo sendo fundamental. Fiquei pensando como o tempo de uma música poderia me influenciar. Utilizei a relação de proporção entre os quadros, as viradas e a composição das páginas e o tamanho de uma cena para tentar influenciar esse tempo de leitura”.
Por que contar a história do Robert Johnson?
Sempre desenho ouvindo música, não é uma regra, mas é natural. Nunca fui músico profissional, mas é a arte que mais dialoga comigo. Uma música que eu gosto consegue me colocar pra cima muito rapidamente. Quando tá tocando uma música que eu não gosto, posso fico numa situação muito horrível (risos). Me toca. No processo de criação isso está muito presente. De alguma forma, fazer essa história do Robert Johnson parte, em um primeiro momento, de pagar um tributo pelas coisas que ele me deu. A outra é que acho uma história bonita de ser contada do ponto de vista do drama existencial, de olhar para um cara que virou um mito, dentro da cultura pop de uma forma geral, não só da música, mas talvez não pelas razões concretas do que está no trabalho dele.
Historicamente, tendemos a não entender o que a história do pacto com o diabo representa do ponto de vista de uma estrutura social bastante opressora e do Blues ser considerado uma “música do diabo”. A coisa do pacto, que surgiu com um blueseiro, amigo do Robert Johnson nos primeiros ano de carreira dos dois, dialoga com uma estrutura de classe e com uma sociedade extremamente preconceituosa. Eu queria resgatar o mito do Robert Johnson pro contexto da luta de classes, de uma disputa política onde existia a dominação dos brancos em relação à maioria negra, com uma estrutura machista e com problemas sociais estabelecidos em um país que havia abolido a escravidão sem muita convicção do que estava fazendo, que até a década de 50 ainda tinham separações raciais dentro de um ônibus.
Do Brasil, olhando os direitos que os negros conquistaram nos Estados Unidos, a gente tende a não entender o que isso representa. Primeiro, por não termos esses avanços e, segundo, por não termos uma estrutura de segregação tão explícita. A nossa segregação existe, mas não nunca foi uma política de estado assumida, como foi nos Estados Unidos. Então eu tinha o desejo de trazer esse universo pra discussão, contar uma história dentro desse cenário. Não sei se consigo, mas a minha intenção inicial era essa. Até por isso, a história não tem texto: era importante para mim que o drama estivesse colocado a partir das imagens, de alguma forma fosse eco do que está na música.