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Posts por data novembro 2018

HQ

Thiago Souto e a Av. Paulista – Parte #4: “Um quadrinho com um título imenso”

Agora é oficial: a nova obra do quadrinista Thiago Souto tem o título Por tanto tempo tentei me convencer de que te amava, será publicada pela Balão Editorial e terá seu lançamento durante a Comic Con Experience 2018. O álbum conta com a minha participação no papel de editor e narra um passeio pela Avenida Paulista aos domingos, com a via fechada para carros e aberta para pedestres, ciclistas e skatistas.

Enquanto você não tem o quadrinho em mãos, recomendo a leitura da série Thiago Souto e a Av. Paulista. Publicada semanalmente aqui no blog, sempre às quintas-feiras, a série consiste na transcrição de uma série de conversas que tive com o autor, com ele falando sobre as origens do projeto, suas inspirações e o desenvolvimento da obra. No post de hoje, Souto adianta alguns detalhes do enredo do quadrinho e comenta a dinâmica de produção da HQ ao longo de seus pouco mais de dois meses de desenvolvimento.

Incluo no final do post de hoje, como material bônus, a entrevista dada por Thiago Souto ao jornalista Carlos Neto, responsável pelo canal Papo Zine. A seguir, aspas do quadrinista:

Thiago Souto e a Av. Paulista – Parte #4: “Um quadrinho com um título imenso”

“Tudo pelas tangentes”

“O que é Por tanto tempo tentei me convencer de que te amava? É um quadrinho com um título imenso (risos) É um livro que fala muito sobre a minha relação com a Avenida Paulista e com a cidade de São Paulo, sem ser exatamente o relato de uma experiência pessoal pela qual eu tenha passado, embora estejam presentes no quadrinho várias coisas que têm uma relação muito próxima com experiências que eu vivi”.

“É um livro que trata desse relacionamento que eu sempre tive com a Paulista e o que esse relacionamento se tornou depois que a avenida começou a abrir para pedestres aos domingos. Tem uma série de exageros no meio da história, mas esses exageros servem pra contar coisas que de fato ocorrem naquele lugar, sobre a relação das pessoas com a Paulista e com a cidade e sobre a forma como as pessoas se relacionam”.

“O livro não trata nenhum desses elementos muito diretamente, de forma específica, é tudo meio pelas tangentes. Ele conta a experiência de um personagem pra falar sobre aquele assunto, mas sem ser muito explícito. Talvez exija uma dose de imaginação e interpretação por parte de quem estiver lendo”.

“Só me liguei qual seria o visual enquanto desenhava as páginas”

“Esse quadrinho foi muito desenvolvido durante o processo de produção… Como eu posso explicar melhor? Ele não foi tão planejando, não teve um início muito pré-definido, com designs de personagens, estudos de cenário ou estudos de composição de páginas. Só durante o processo de produção eu fui descobrindo essas coisas. Só me liguei qual seria o visual enquanto desenhava as páginas”.

“Acho que a única coisa que foi mais trabalhada antes do início da produção foi o roteiro, um texto que eu tinha escrito de uma vez só. Aí eu fiz essa leitura com você. Eu falo com você ou digo que fiz essa leitura ‘com o Ramon’? (risos) Enfim, fiz uma leitura com o meu editor e a partir dessa leitura tivemos alguns insights, algumas ideias que serviram como um guia bem genérico do que se tornaria a história. Depois eu comecei a desenhar e essas ideias serviram só como um ponto de partida que acabou se transformando muito no decorrer do processo de produção”.

“Ao contrário do Labirinto, onde tudo foi mais planejado – o roteiro, o visual dos personagens, os thumbnails e tudo mais – dessa vez foi tudo acontecendo enquanto eu fazia. Isso foi interessante para mim, foi um outro jeito de enxergar o processo de fazer quadrinhos”.

“Autobiográfica até a entrada na Paulista”

“A primeira coisa que fiz no meu texto original foi a introdução, as páginas iniciais da história. Quando escrevi aquela introdução eu estava muito focado ainda na minha experiência. Dá pra dizer que o quadrinho é autobiográfico até o momento em que o personagem entra na Paulista. É a minha experiência enquanto o personagem fala da infância dele, aquilo é real, é como eu via a Paulista durante a minha infância. Essa introdução foi a primeira coisa que escrevi, depois deixei meio que guardada por uns dias”.

“Fui escrever o percurso da Paulista em outro momento e a partir daí já começou a descolar um pouco da minha realidade. Quando comecei a escrever essa segunda parte eu já passei a ver o personagem como um personagem, não era eu andando pela Paulista, embora ainda tivesse muito da minha experiência. E essa parte eu escrevi meio que de uma tacada só, fui pensando como um passeio da Paulista, passando por tal lugar, depois o seguinte, até chegar no final”.

Quando terminei fui colocando e tirando uma coisinha ou outra, mas o roteiro foi escrito dessa forma. Um primeiro momento em que eu achava que ia escrever uma história 100% pessoal e autobiográfica e o seguinte, descolado da minha experiência, vendo a coisa como uma narrativa ficcional.

“Prefiro escrever sem pensar em como eu vou desenhar

“Talvez eu tenha feito mais um guia do que um roteiro propriamente dito. Boa parte do texto inicial que eu escrevi está na história. Talvez 80% do que escrevi no meu texto inicial esteja na história. Se aquilo não for chamado de roteiro, então eu acho que não cheguei a fazer um roteiro (risos) Ou então, talvez o roteiro tenha sido feito quando nós dois sentamos pra conversar, decupar aquilo e estruturar de uma forma um pouco mais organizada”.

“Eu não tento imaginar a imagem enquanto eu tô escrevendo. Se eu ficar imaginando as coisas, eu tento impor algumas limitações que estão relacionadas à técnica do desenho. E como desenhista eu ainda me vejo tendo limitações na hora de retratar uma ideia. Se na hora que eu estivesse escrevendo fosse ficar pensando nas imagens, no enquadramento e nessas coisas, eu provavelmente iria me limitar. Eu acabaria mudando o roteiro pra tentar fazer caber dentro do que eu enxergava e poderia resultar em uma limitação técnica de desenho. Então eu prefiro escrever sem pensar em como vou desenhar”.

“Nesse quadrinho eu lidei com várias limitações pessoais. Era muito cenário e muita gente andando junta, tive que encontrar algumas soluções. De repente, se eu ficasse pensando nas soluções visuais que eu fosse dar pro roteiro, talvez eu acabasse limando coisas do roteiro por achar que eu não iria conseguir desenhar aquilo depois. Então eu escrevo sem pensar muito pra só depois me virar”.

“Em tão pouco tempo você não procrastina”

“Eu escrevi no final de setembro, nós dois sentamos para conversar na primeira quinzena de outubro e eu desenhei em um mês, no máximo. Foi desenhado em pouco menos de um mês. Foi um projeto que ocupou uns dois meses, dois meses e pouquinho”.

“Em tão pouco tempo você não procrastina, né? Você tem que fazer. É preciso resolver a coisa de alguma forma. O problema de ter muito tempo é que você acaba revisitando coisas que já estão resolvidas. Se eu fosse reler o roteiro agora talvez eu quisesse mudar uma coisa ou outra. Se eu fosse ver o desenho agora, talvez eu quisesse acertar alguma coisa ou outra”.

“Com pouco tempo você desiste de rever as coisas e segue em frente. Não é nem que você se conforma com o que foi feito, você apenas não olha pra trás por falta de tempo. Não é nem uma questão de conformidade com o que foi produzido. Você segue adiante ou não acaba o trabalho”.

“Esse processo tá sempre te empurrando e isso é bom. No Labirinto, no qual eu trabalhei por muito tempo, há algumas páginas que hoje eu acredito que poderiam ter ficado bem melhores. Mas é isso. O projeto grande é assim também, no final ele é curto porque você vai ter que correr um monte pra entregar e toda aquela procrastinação do começo precisará ser resolvido em um período reduzido de tempo. O projeto curto só não tem esse tempão antes em que você fica lá viajando, tentando mudar coisas já resolvidas”.

BÔNUS:

CONTINUA…

ANTERIORMENTE:

>> Thiago Souto e a AV. Paulista – Parte #3: “Experimento voltado para a desconstrução”;
>> Thiago Souto e a Av. Paulista – Parte #2: “É muita gente diferente compartilhando o mesmo espaço”;
>>Thiago Souto e a Av. Paulista – Parte #1: “Parecia coisa de ficção científica”.

HQ

Por muito tempo tentei me convencer de que te amava: confira a capa e a sinopse da nova HQ de Thiago Souto

O título da nova HQ do quadrinista Thiago Souto é Por muito tempo tentei me convencer de que te amava. O álbum será publicado pela Balão Editorial, terá 48 páginas, custará R$ 30 e será lançado na Comic Con Experience 2018. O livro conta com a minha participação no papel de editor e é o primeiro trabalho do artista em seguida à fantasia Labirinto (Mino) – indicada ao prêmio HQMix 2018 em quatro categorias: Edição Especial, Arte Finalista, Colorista e Desenhista. Confira a sinopse do quadrinho e outras informações sobre a obra no anúncio oficial enviado pela Balão Editorial à imprensa:

“O quadrinista Thiago Souto declara seu amor por aquilo que São Paulo tem de melhor a oferecer em uma ode à diversidade e à convivência. Primeiro projeto do artista em seguida ao sucesso de crítica e público Labirinto (Mino), a HQ Por muito tempo tentei me convencer de que te amava narra em quadrinhos um passeio de domingo pela Avenida Paulista, quando a via mais famosa da maior metrópole brasileira é fechada para carros e tem suas vias tomadas por pedestres, artistas, ciclistas e skatistas.

Ao longo de 48 páginas em preto, branco e magenta, Souto explora uma espécie de realidade paralela sem os carros, as buzinas e o ritmo frenético da capital em uma jornada na qual pessoas, sons, cheiros, sabores e ideias se mesclam e interagem sem restrições. ‘A minha intenção era trabalhar com algo novo para mim dentro da linguagem dos quadrinhos’, conta o artista em relação ao estilo proposto por ele nessa nova HQ, com imagens e palavras mesclando-se de forma fluida”.

[[Você ficando sabendo mais sobre Por muito tempo tentei me convencer de que te amava na série Thiago Souto e a Av. Paulista, publicada semanalmente no Vitralizado, sempre às quintas-feiras. Nos posts, o autor fala sobre o tema da HQ, o desenvolvimento da obra e as reflexões tidas por ele enquanto desenvolvia esse novo projeto. Disponível para leitura aqui]]

HQ

Thiago Souto e a Av. Paulista – Parte #3: “Experimento voltado para a desconstrução”

Estamos a poucos dias do anúncio do título, da editora e da sinopse do próximo quadrinho do artista Thiago Souto. Estou trabalhando no projeto como editor e tenho publicado por aqui nas últimas três semanas a série Thiago Souto e a Av. Paulista, na qual o quadrinista fala sobre suas inspirações e o desenvolvimento da HQ. O álbum tem como foco a via mais famosa da maior cidade brasileira e a dinâmica de seu funcionamento aos domingos, quando é fechada para carros e aberta para pedestres, skatistas e ciclistas.

Após falar sobre suas memórias antigas relacionadas à Avenida Paulista e lembrar de suas primeiras idas ao local com ele aberto para os pedestres, hoje o autor trata da origem de seu novo quadrinho e das reflexões que o inspiraram a desenvolver esse novo projeto e faz um comparativo com sua obra prévia, Labirinto (Mino). Recomendo o seu retorno ao blog nos próximos dias para novidades sobre a HQ. Enquanto isso, aspas de Thiago Souto:

Thiago Souto e a Av. Paulista – Parte #3: “Experimento voltado para a desconstrução”

“Bolhas sociais”

“No começo íamos à Paulista pra a Alice brincar e eu e a minha esposa darmos uma andada. Nesse início eu não tinha essa percepção do monte de coisa que acontecia ao mesmo tempo. O sentimento na época era mais de encantamento com o espaço, aquele centro de comércio e negócios agora aberto para pessoas, convívio e interação. Era isso que me impressionava quando fomos pelas primeiras vezes. Conforme o tempo foi passando, fui observando outras coisas e superando esse sentimento de deslumbramento. Eu passei a me perguntar: ‘Como pode tanta gente? Como tem tanta gente e tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo?’. Eram muitas coisas contrastantes. A música das bandas, por exemplo, você entrava na Paulista e estava tocando forró, dois passos depois era rock, três passos e você ouvia funk,… ‘Cara, como tá acontecendo tudo isso junto?'”.

“Você via uma família ‘comportada’ e ‘tradicional’ andando ao lado do cara loucaço. E todo mundo fechado no seu próprio rolê, sem se dar conta de que tudo aquilo estava acontecendo no mesmo espaço”.

“Quando comecei a perceber isso, pensei que talvez fosse possível fazer alguma coisa… Talvez uma história que não precisasse de um roteiro tradicional. Não precisava ser sobre o personagem que começa a história de tal jeito, passa por toda uma saga e acaba diferente. Talvez o movimento da história não precisasses ser sobre os conflitos de um personagem ou sobre o que acontece com ele, mas mais sobre o fluxo de um determinado lugar. As coisas estariam acontecendo e ele percebendo aquilo tudo. Seria uma experiência meio estranha – no bom sentido, para quem gosta de coisas estranhas (risos) Seria chamar atenção para as coisas que ninguém tá ligando muito, do que está acontecendo enquanto estão todos fechados em suas próprias histórias”.

“Jornadas diferentes”

“Como eu acabei de sair de um trabalho com uma estrutura narrativa bastante tradicional, o Labirinto, eu tava afim de fazer uma coisa que fugisse disso, pra poder continuar em movimento. Eu não achava que estaria indo pra frente se fizesse uma história igual à anterior, no sentido da forma. Não que eu não vá fazer novamente uma história naqueles moldes, mas me permitir algo diferente, em relação ao uso da linguagem, é uma forma de romper um pouco a inércia, de propor uma experimentação. Não uma experimentação no sentido pretensioso da palavra, a ideia não era tentar fazer algo diferente de tudo o que já foi feito, não. Digo experimentação no sentido de tentar algo me desafiasse de alguma maneira”.

“Acho que há algumas formas de fazer essa experimentação. Antes do Labirinto eu tinha tido um processo de experimentação muito relacionado ao aprendizado. Era o meu contato com a produção de um quadrinho, então eu estava descobrindo, tudo era novo. Até então eu compreendia o processo como um leitor que gostaria de fazer quadrinhos, mas não como alguém que produzia já há algum tempo e parou pra pensar na linguagem e tudo mais. Era mais uma experimentação por parte de alguém descobrindo a linguagem. Isso é muito legal, você tem muita liberdade e não está preso a nenhum tipo de amarra”.

“O Labirinto foi história muito longa, um processo de produção mais fechado dentro de uma estrutura tradicional no sentido do uso da linguagem. Que me fez aprender muito sobre esses elementos. Mas quando acabei o Labirinto, comecei a ter vontade de experimentar coisas diferentes, desta vez uma experimentação mais voltada para a desconstrução do que pro aprendizado, como havia sido antes. Eu já compreendia um pouco melhor da linguagem e queria experimentar com o que havia aprendido nesses processos”.

“No caso de um personagem principal, por exemplo. Um protagonista geralmente é trabalhado de determinada forma, ele tem suas relações de conflito e vão surgindo tensões crescentes até chegar em um momento de clímax. Quando pensei a história da Avenida Paulista concluí que não precisava trabalhar o personagem principal exatamente dessa forma. Pensei que ele poderia ter uma jornada diferente. Da mesma forma, também optei por trabalhar o desenho de forma diferente, removendo os requadros, por exemplo. É uma experimentação distinta da qual me propunha no começo. Então foi isso, a intenção era trabalhar algo novo para mim com quadrinhos”.

“Todo mundo no seu próprio microcosmo”

“E a ideia era expressar isso tudo tratando desse lugar democrático, que permite livremente toda forma de manifestação, sejam lá quais forem as bandeiras… Às vezes com a borracha da polícia, né? (risos) Então não tão livremente assim, mas mesmo assim você tem todo tipo de pessoa lá, do cara mais conservador ao mais progressista”.

“É engraçado… Eu lembro que no começo algumas pessoas evitavam ir à Paulista por essa abertura aos domingos ser muito associada à gestão do Haddad e do PT. Mas o espaço de convivência acabou se mostrando maior do que isso, as pessoas conseguiram até deixar isso de lado. O que é impressionante quando você leva em conta essa aversão tão gigantesca que existe ao PT . Mas todas as pessoas tomaram aquele espaço como sendo delas e assim foi realizado o objetivo de fato da proposta: ser um espaço democrático. É isso que é o melhor, mesmo sendo um espaço meio esquizofrênico, também frequentado por pessoas que flertam com o fim desse espaço democrático”.

“E é isso, você tem lá o cara pedindo intervenção militar e pessoas manifestando as causas mais progressistas, contra o racismo, contra a homofobia… Enfim, a Paulista sempre foi esse espaço democrático. É o palco da Parada do Orgulho LGBT, por exemplo, mas o movimento Cansei também usou a Paulista de palco. Quando você abre aos domingos, tudo isso é ainda mais potencializado. Todo tipo de gente convivendo, todos mais ou menos fechados no próprio microcosmo, mas as pessoas estão lá e na maioria das vezes de forma pacífica”.

CONTINUA…

ANTERIORMENTE:

>> Thiago Souto e a Av. Paulista – Parte #2: “É muita gente diferente compartilhando o mesmo espaço”;
>>Thiago Souto e a Av. Paulista – Parte #1: “Parecia coisa de ficção científica”.

Entrevistas / HQ

Papo com Felipe Portugal, o autor de Granizo: “Uma piada consegue ridicularizar a agonia humana e colocar a nossa crise de ansiedade de lado”

As 16 páginas em preto e branco de Granizo narram a jornada dos soldados Pipo, Zeca e Raimundo tentando sobreviver à chegada de um inverno cruel nos últimos instantes de uma guerra que eles não têm consciência que chegou ao fim. A publicação é assinada pelo quadrinista Felipe Portugal, em seu primeiro trabalho impresso em seguida à coletânea de tiras Narigudo. Também autor de Espiga e da HQ da sexta edição da Série Postal 2017, Portugal teve como principal inspiração para seu trabalho mais recente as histórias do escritor norte-americano Kurt Vonegut. Também é explícita sua influência pelas narrativa e pelos designs de página do quadrinista Chris Ware.

Publicado pela editora Ugra Press em formato tabloide e impresso em papel jornal, Granizo tem como temas principais a efemeridade da vida e a fragilidade dos seres humanos. Sem dúvida, uma das HQs mais singulares e interessantes lançadas no Brasil em 2018. Bati um papo rápido por email sobre o quadrinho com Portugal. Ó:

“Eu trabalho misturando elementos que considero complementares. Política e emoção, autobiografia e poesia. Agora comédia e guerra”

Você lembra do instante em que teve a ideia de criar Granizo? Você pode falar um pouco sobre a origem desse projeto?

Pra mim não existem histórias criadas num instante. Elas geralmente são uma amálgama de vários elementos que o autor observa e, depois de dias de reflexão, ele consegue chegar a uma síntese daquilo tudo. Nossa mente não trabalha muito bem com graduações. Pra você eu simplesmente criei Granizo, mas ao dar um zoom no processo artístico de qualquer pessoa você percebe que suas experiências diárias vão ajudando a juntar as peças que fazem o quebra-cabeça da obra final.

Eu trabalho misturando elementos que considero complementares. Política e emoção, autobiografia e poesia. Agora comédia e guerra. Não fui o primeiro a fazer isso, definitivamente. Meu autor de referência foi Kurt Vonnegut, um satirista norte-americano. Descobri seus livros em 2011 e desde então sou um grande fã da forma como o autor contava suas histórias.

Quando assisti o Dr. Strangelove, em 2016, fui criando na minha cabeça essa pequena ‘janela estética’ pra um universo parecido como o da história. Fiz uma curta série pro Instagram chamada Dr. Arrependimento, uma alusão direta ao filme. Vonnegut e Strangelove são as maiores referências pro que eu pretendia fazer.

Como eu te falei, histórias são criadas ao longo de um processo que envolve muitas coisas, não tem exatamente um estalo. Partindo dessa ideia, eu pretendo continuar trabalhando nesse universo do Granizo. Quem sabe um dia refazer a história, como o Chris Ware vive refazendo suas histórias, também. Só me sinto satisfeito quando sinto que consegui contar o que queria.

“O tema central do Granizo acaba sendo a banalidade da vida humana e, convenhamos, é um tema muito mais comum em nossas cabeças do que homens que vestem a cueca por cima da calça”

Por que uma história sobre a guerra? Quero dizer, esse não é um tema muito próximo da nossa realidade. Ou melhor, há várias cidades, bairros e contextos da realidade brasileira que encontram-se em guerra. Mas a nossa ficção não está habituada a retratar confrontos bélicos nos moldes como você retratou, concorda?

Achei curiosa a pergunta. Existem um milhão de quadrinhos por aí que abordam temas distantes da nossa realidade, ainda assim eles não geram espanto. Me perguntaram mais de uma vez o motivo de fazer uma história sobre ‘guerra’ – se é que dá pra resumir assim.

A guerra suscita dois debates que acho fundamentais para entendermos o homem moderno: a banalidade da vida contra a ideia do indivíduo portador de direitos inalienáveis. Você já reparou que existe uma disparidade entre o ideal e o real? É comum defendermos máximas como direito à vida, propriedade e liberdade, porém somos esmagados por instituições que violam esses princípios constantemente e temos em nossos genes um comportamento animal, que prima pela sobrevivência e o egoísmo – e aqui eu não estou fazendo um juízo de valor de nada disso.

Ou seja: racionalmente nós nos sentimos indivíduos, cidadãos, mas na realidade você estouraria os miolos de qualquer um que colocasse a sua vida em risco. Isso não é contraditório. É legítimo que você se defenda e preserve sua vida, mas ao mesmo tempo parece assustador enxergar os seres humanos na forma crua que eles são.

Este não é um tema restrito. Ele é universal. Eu só o ‘vesti’ de fuzis e capacetes. Então, como tratar de temas tão pesados de uma forma sutil? Comédia. Uma piada consegue ridicularizar a agonia humana e colocar a nossa crise de ansiedade de lado. Então o tema central do Granizo acaba sendo a banalidade da vida humana e, convenhamos, é um tema muito mais comum em nossas cabeças do que homens que vestem a cueca por cima da calça.

O quadrinho é curto e você acaba conseguindo desenvolver um pouco de cada um dos seus três personagens. Foi desafiador administrar a história que você queria contar e desenvolver os seus três protagonistas dentro de um espaço tão restrito?

O ‘desenvolvimento de personagens’ é um clichê narrativo, daqueles de livros sobre ‘como escrever roteiros em 10 lições’. Nós temos esses bordões e muitas vezes nem paramos pra pensar no que significa ‘desenvolver um personagem’. Pra mim, narrativas são vidas possíveis e desenvolver o personagem é tornar aquela história cada vez mais multilateral, aproximando a história da realidade. Nesse quesito, foi realmente algo novo pra mim.

Se foi desafiador? Não. Eu considero que uma tarefa é desafiadora se, ao terminar de fazê-la, você aprimora suas habilidades e ‘sobe um nível’. Francamente, eu não vejo muita diferença do Felipe do dia 1 de Granizo pro Felipe que terminou a última página. Infelizmente.

Um artista deve se desafiar para aprimorar sua técnica, estilo e até seu espírito. Porém o mais importante é saber como aprimorar. Não adianta, Ramon, desenhar mil páginas do mesmo jeito. Você não vai melhorar quase nada. Vale mais escolher os desafios certos do que se desafiar toda hora.

Acho explícita a influência do Chris Ware nesse trabalho, principalmente nas soluções visuais com ares de infografia e na disposição de alguns quadros. Eu quero saber como você construiu essa estrutura visual. Você chegou a finalizar um roteiro e só depois desenhou? Enfim, como foi o desenvolvimento dessa HQ?

A primeira etapa de produção é o texto corrido. Minha percepção sobre ideias é linguagem é a seguinte: temos sentimentos e palavras tentam traduzi-los. Você pode traduzir bem ou traduzir mal. Quando você traduz mal não consegue expressar seus sentimentos corretamente e isso gera angústia. Partindo desse princípio eu sempre escrevo a história num texto corrido antes de fazer um roteirinho desses que a gente aprende formalmente. Isso ajuda a entrar no clima da história e enxergar possíveis aberturas que você não achou que a história geraria.

A segunda é a produção do roteiro. Entendo a página como unidade mínima narrativa do quadrinho. Logo, cada página tem uma ‘mensagem singular’ que faz sentido no todo. Escrevo mais ou menos por páginas e vou marcando apenas as falas dos personagens. É a coisa mais simples do mundo.

No terceiro momento é a hora de fazer os rascunhos. É a parte mais chata, insuportável, laboriosa e desanimadora. Uma coisa é traduzir sentimentos com palavras, outra é traduzir com imagens. Não é à toa que bons pintores são coisa rara. É um baita problemão. Um artista narrativo resolve problemas. Ele é um idiota: inventa uma história da sua imaginação, como por exemplo: ‘mulher é encontrada morta num hotel’, e a partir daí tem que resolver esse problema que ele mesmo criou. Não é um trabalho de maluco?

Pensar sobre ângulos, disposição de quadros, formas de contar a mesma cena… tudo isso dá uma baita dor de cabeça. Já passei horas pra terminar uma maldita página rascunhada com bonecos palito. Ao final é só desenhar. Pra mim é uma etapa relaxante. Geralmente eu finalizo as páginas ouvindo música ou podcasts.

“Nossos alicerces são muito frágeis e nada como a guerra para nos lembrar que a morte está batendo na porta constantemente, esperando qualquer frestinha pra entrar”

Me fala também, por favor, sobre o narrador? Eu gosto como ele tem uma voz muito própria, como se tivesse contando a história pra alguém que não seria apenas nós, leitores. Quem é esse narrador pra você?

O narrador é quem faz a comédia. Me parece que, pra inserir algumas ‘metalinguagens’, seria necessário um narrador onipresente e onisciente. Um ‘Deus’ da história. Ele que faz os julgamentos morais, ele que comenta tudo que acontece. Então ele não só conta história, mas também oferece uma ‘moral’ pra tudo aquilo. Daí que vem essa sensação estranha de que ele não estaria só narrando.

Eu fiquei pensando no título da história, como Granizo dialoga com a banalidade e fragilidade da vida em vários aspectos. Esse quadrinho também é sobre isso? Sobre como as coisas podem ser fugazes, banais e passageiras?

Definitivamente. Como afirmei, a sociedade urbanizada que tem facilitações tecnológicas pra todas as atividades, talvez esqueça a banalidade da vida. Conceitos como liberdade, felicidade, realização pessoal, são o topo da pirâmide, não a base. Isso é importante pra quem já tem conforto, comida. Pra quem trabalha com arte, jornalismo, ciência. Qualquer mendigo trocaria a sua liberdade de expressão por uma casa quentinha.

Imaginemos a seguinte situação: todos os policiais desaparecem. Pronto, você acabou de nos transportar de volta para a pré-história. Nossos alicerces são muito frágeis e nada como a guerra para nos lembrar que a morte está batendo na porta constantemente, esperando qualquer frestinha pra entrar.

“O formato dos quadrinhos me parece a única coisa que tem blindado as HQs de terem o mesmo destino dos livros: a digitalização”

O formato do quadrinho é demais. Eu adoro a possibilidade de ler algo legal e barato. Me fale como você chegou nesse formato? Como você acha que o quadrinho e a leitura dele ganham por ter sido impresso em papel jornal, nesse formato tabloide?

Não foi uma ideia minha, foi do editor, Douglas Utescher. De repente ele me mandou uma mensagem falando dessa ideia de imprimir num formato de ‘jornal’ e a princípio eu estranhei. Posteriormente vi que a ideia se encaixava perfeitamente. O formato dos quadrinhos me parece a única coisa que tem blindado as HQs de terem o mesmo destino dos livros: a digitalização. Portanto talvez seja interessante apostar em formatos não convencionais para explorar essas possibilidades. Ainda assim, sou daquela ideia que muitos discordam que ‘divulgação’ pode sim ajudar a pagar as contas. Quadrinistas iniciantes deveriam cobrar o mais barato possível pelos seus quadrinhos. Isso é competição. Se eu for gastar mais de 40 reais num quadrinho, por que raios eu compraria o gibi de um autor desconhecido e não do Grant Morrison?

Quais são os seus próximos projetos? Quando veremos um novo quadrinho seu?

Que perguntinha difícil, viu? Uma HQ pela Balão Editorial está por vir e bem… De resto eu preciso primeiro entender o que eu quero fazer da minha vida em relação a arte e depois te dou uma resposta. Estou cheio de dúvidas e nessas condições não é prudente prometer nada.

Entrevistas / HQ

Papo com Wagner Willian, o autor de O Martírio de Joana Dark Side: “Me pareceu o momento ideal para contar essa história de resistência”

O quadrinista Wagner Willian lança na Comic Con Experience 2018 a HQ O Martírio de Joana Dark Side. A obra do autor dos álbuns Bulldogma e O Maestro, O Cuco e a Lenda tem como foco os instantes finais de vida da mártir e heroína francesa Joana d’Arc, executada na fogueira aos 19 anos, em 1431. Ao narrar o julgamento e a condenação da personagem em 76 páginas de histórias em quadrinhos, Willian adaptou livremente o filme mudo A Paixão de Joana d´Arc (1928), dirigido pelo cineasta dinamarquês Carl Th. Dreyer e protagonizado pela atriz Maria Falconetti. “O filme foi considerado ousado na época por algumas ângulos inéditos e ser quase todo feito em closes dos atores”, conta o autor ao blog.

“Investigando a obra, acabei descobrindo que essa escolha pelos closes não foi rigorosamente por uma questão estética e genial do diretor, mas um jeito de driblar os abusos que cometera com a atriz”, explica Willian. “Dreyer a confinou pelos cinco meses de gravação para que ela não tivesse influência dos outros atores em suas encenações. E ainda a obrigava a se ajoelhar em pedregulhos para ele poder captar o rosto da dor, por isso o close. Renée virou Joana para mim. A simbologia de tudo isso confluiu para que não houvesse dúvidas sobre o que eu estava fazendo. Por tudo o que Renée passou, cabia uma metalinguagem ali”, diz.

Publicado pela editora Texugo (pertencente a Willian), O Martírio de Joana Dark Side é um dos principais lançamentos da imensa leva de HQs que deve chegar às lojas especializadas até o fim do ano, em seguida à Comic Con. Vencedor do Prêmio Grampo 2017 por seu trabalho em Bulldogma e finalista do Prêmio Jabuti por dois anos consecutivos por seus dois títulos mais recentes, o autor dá uma nova roupagem e rumos inesperados a uma das histórias mais conhecidas da história da humanidade. Além da arte e dos designs de páginas belíssimos que já lhe são característicos, o quadrinista ainda cria laços e conexões entre uma trama ambientada no século XV e o conservadorismo da sociedade brasileira contemporânea.

Na entrevista a seguir, Wagner Willian fala sobre as origens de O Martírio de Joana Dark Side, comenta o desenvolvimento do projeto, apresenta as técnicas utilizadas por ele e trata das conexões de seu trabalho com a realidade nacional. Ele ainda adianta alguns de seus próximos planos para a Texugo e deixa no ar a possibilidade desse seu novo álbum ser apenas o primeiro de uma coleção. A seguir, Wagner Willian:

“Estou insistindo nessa coisa de ‘terror’ mas nem sei se posso classificar O Martírio da Joana Dark Side assim. Um drama com final aterrorizante talvez?”

Qual a memória mais antiga que você tem do nome Joana D’Arc? Você lembra da primeira vez em que ouviu falar ou leu sobre ela?

Não lembro exatamente de quantos anos eu tinha na primeira vez em que ouvi a história de Joana d’Arc. Não sei se foi através de um filme, livro, conversa ou daquela série Acredite Se Quiser, mas consigo lembrar do quanto me envolvi por ela, pela trajetória de quem se entrega obsessivamente a uma causa, em que todo gesto dizia ter prerrogativas sublimes. Claro que na época não foi nenhum desses motivos que me prendeu a atenção, mas a lenda de que no final, quando as últimas brasas estalavam a madeira, e o seu corpo já havia desintegrado, seu coração continuava intacto.

Por que Joana D’Arc? Qual a origem desse projeto?

Joana Dark Side. Tinha esse trocadilho na manga há muito tempo, como também a vontade de adaptar algum filme que já houvesse caído em domínio público para a linguagem dos quadrinhos, subvertendo a história ou mesmo criando outra em cima. Lembra da Feira da Fruta e MTV Classics? Mas sem necessariamente fazer algo cômico. As imagens já estavam ali, prontas, então a coisa prometia ser mamão com açúcar. E a Joana, bem, ela foi uma das primeiras feministas (começo do século XV), além de peitar a igreja e seus inimigos.

“A versão que escolhi tem esse viés mais realista (jamais fotorrealista), para causar um impacto mais ‘convincente’ (será?) na parte que toca ao terror”

Você poderia falar, por favor, sobre as técnicas que utilizou no quadrinho? Como você definiu o estilo que queria desenvolver nessa obra?

No começo, eu cogitava fazê-la em nanquim. Algumas páginas depois, percebi o que eu já sabia, ia demorar mais do que gostaria pra terminar isso. Resolvi partir para o digital. Fiquei em dúvida quanto ao estilo, até lancei uma enquete com quatro variações de uma mesma página na rede social. No final, acabei desenvolvendo uma versão diferente daquelas. É óbvio que isso, de fazer enquetes e deixar o leitor escolher as cores de uma capa, tem uma função marqueteira. O leitor não tem apenas conhecimento de seu novo trabalho, como também se sente fazendo parte do seu projeto. A versão que escolhi tem esse viés mais realista (jamais fotorrealista), para causar um impacto mais “convincente” (será?) na parte que toca ao terror. Em todo caso, o terror diz muito mais respeito a narrativa do que a estética. Estou insistindo nessa coisa de “terror” mas nem sei se posso classificar O Martírio da Joana Dark Side assim. Um drama com final aterrorizante talvez? Ainda no estilo, mesmo sendo digital, quis passar a impressão de algo “artesanal”, com as manchas que o Juscelino Neco tanto gosta, um gestual mais solto como se eu fosse daqueles desenhistas tribunais que capturam as cenas de um julgamento.

“Resolvi trazer as visões de Joana para dentro do tribunal, sem deixar claro o limite que separa realidade e delírio”

Esse livro é a sua versão da história da Joana D’Arc, correto? Ainda assim, ele foi construído a partir de várias pesquisas e estudos seus tendo como referência outras obras protagonizadas pela personagem. Como você estabeleceu qual seria a trama que queria contar e como aplicaria as suas referências no quadrinho?

Não é a versão da história dela mas de seu julgamento e condenação. Parti do filme mudo A Paixão de Joana d´Arc de Carl H. Dreyer que é de 1928, protagonizado por Renée Falconetti. O filme foi considerado ousado na época por algumas ângulos inéditos e ser quase todo feito em closes dos atores. Com muito pouco texto, as expressões ditam as cenas. Investigando a obra, acabei descobrindo que essa escolha pelos closes não foi rigorosamente por uma questão estética e genial do diretor, mas um jeito de driblar os abusos que cometera com a atriz. Renée foi uma Joana d´Arc para esse filme, seu primeiro e último. Dreyer a confinou pelos cinco meses de gravação para que ela não tivesse influência dos outros atores em suas encenações. E ainda a obrigava a se ajoelhar em pedregulhos para ele poder captar o rosto da dor, por isso o close. Renée virou Joana para mim. Ela até mesmo morou no Brasil e Argentina. Como Joana, foi cremada. A simbologia de tudo isso confluiu para que não houvesse dúvidas sobre o que eu estava fazendo. Por tudo o que Renée passou, cabia uma metalinguagem ali.

Criei também diálogos para entender melhor o que estava sendo julgado no processo e preencher a lacuna das cenas mudas. O filme se baseou nos registros oficiais de seu julgamento. Fui atrás e achei alguns trechos aqui e outros ali, até cair em outra película, focada também sobre a condenação, e este mais completo que o do Dreyer no que tangem as questões processuais: Le Process de Jeanne d’Arc, de Robert Bresson, de 1965. A essa altura já tinha ido atrás de outros filmes sobre ela. O de 1945, de Victor Fleming, mostrava uma estética incrível também e alguns rostos caricatos. Roubei-os para mim. E aqui entra a questão do sobrenome Dark Side. Como mencionei acima, não me interessava fazer a simples adaptação de um filme e subverti seu final. Vale dizer que tinha enviado o pdf da primeira versão ao diletante Zé Oliboni. Ele sugeriu me aproximar dos delírios que o Luc Besson realizou em seu filme, aquele da Milla Jovovich, dando corpo às vozes que Joana ouvia. Era uma coisa delicada essa porque não só dar corpo mas também tecer as palavras de uma voz ‘divina’ poderia mundanizá-la, e é o que acontece no filme do Besson. O do Fleming mostra a Ingrid Bergman conversando com essas vozes, mas sem mostrar o interlocutor e sem mesmo se fazer ouvir, há apenas uma conversa em forma de monólogo. Estava muito mais inclinado a isso, essa coisa do subentendido, do subliminar (pra variar..). Então resolvi trazer as visões de Joana para dentro do tribunal, sem deixar claro o limite que separa realidade e delírio.

“O Brasil caminha para um lugar nebuloso, e quem escolheu esse caminho parece também não entendê-lo”

Eu não quero entrar muitos nos detalhes da trama, mas vejo um diálogo imenso desse trabalho com a nossa realidade, principalmente no questionamento de figuras de autoridade e no protagonismo feminino. Esses são temas caros para você?

Sem dúvida. O Brasil caminha para um lugar nebuloso, e quem escolheu esse caminho parece também não entendê-lo, mas torna-se claro ali o exercício da Igreja e do exército. Me pareceu o momento ideal para contar essa história de resistência, tendo uma mulher à frente, uma mulher enfrentou a Inquisição, o Estado, questionou a teologia e a moral. Uma mulher dessas não merecia morrer na fogueira. Esse foi o estalo! E a Gabriela Franco ter aceito meu convite para escrever o prefácio foi algo que me deixou extremamente feliz. Ela é a criadora do MinasNerds, site sobre cultura Geek/Nerd e cultura Pop, e uma resistência dentro desses cenários.

Ainda sobre esse diálogo da obra com a nossa realidade: qual você acredita ser o papel potencial de histórias em quadrinhos para inspirar questionamentos em tempos tão conservadores como os que estamos vivendo?

Diferente de um filme, um quadrinho não precisa se preocupar com vetos da produtora por conta de saldo orçamentário para se narrar uma história, e, principalmente, está cagando para a opinião dos acionistas e empresas de merchandising. Acho que essa é a potência da linguagem, ela é absurdamente livre. E espero que continue sendo.

Os seus três quadrinhos mais conhecidos são trabalhos muito distintos. As tramas e os temas de Bulldogma, de O Maestro e agora de Joana Dark Side são completamente diferentes. Você se propõe a investir nessas abordagens e temas distintos ou isso é algo natural pra você?

Que bom ouvir isso, meu velho. Não gostaria de me ver preso a uma única forma e tema, se bem que costumo achar quase toda obsessão linda. Sobre a questão, acho que nenhum nem outro. O que tenho são histórias. Não sou eu quem decide se elas serão parecidas ou não. Deixo elas seguirem o caminho que quiserem. E por isso mesmo não vou dizer que é algo natural porque é o diabo até resolver como será a forma final da próxima história que irei contar.

Você revelou que o livro faz parte de uma coleção chamada Cine Qua Non. Do que se trata essa coleção?

Tirei o nome da coleção do termo usado em ambiente jurídico: Sine Qua Non. Significa imprescindível. Tenho uma lista extensa de filmes que para mim foram e continuam sendo imprescindíveis. Como essa adaptação/subversão do filme A Paixão de Joana d´Arc, pretendo fazer outras. Filmes como o primeiro Nosferatu; Ivan, o Terrível; O Vampiro de Dusseldorf, cara, são tantos, estão na minha linha de tiro. Nosferatu, por exemplo, existe toda uma esfera estranha sobre o primeiro ator do filme. Há até um filme com o Willem Dafoe, retratando isso. Daria para adaptar o Nosferatu, mesclando com a história do ator e subverter tudo para mostrar um vampiro político e brasileiro da atualidade.

Posso estar completamente equivocado aqui mas até onde eu sei, depois de setenta anos, uma obra cai em domínio público. Confere produção? Então é isso. A mão chega a coçar. Ainda mais percebendo que eu consigo fazer essas subversões a toque de caixa, rs.

“Tirando o percentual da agente literária, os direitos autorais pela cessão às editoras de fora são todos meus”

Joana Dark Side é apenas seu segundo lançamento pela Texugo, mas o livro anterior, O Maestro, já foi indicado ao Jabuti e ganhou edições estrangeiras. Como tem sido a sua experiência com a editora até aqui?

Tem sido ótima. Em menos de um ano estou perto de esgotar a tiragem inteira. O pessoal fala que o que ferra é a distribuição. A Texugo está sendo distribuída pelas principais comic shops do país e por duas grandes livrarias, porque as demais estão dando calote, e pelo famigerado site de venda online. Ou seja, o livro chega em qualquer lugar do país. Outro ponto vantajoso: tirando o percentual da agente literária, os direitos autorais pela cessão às editoras de fora são todos meus. Algumas editoras nacionais cobram além do agente, uma parte em cima (ui!). A parte vantajosa de se publicar por uma grande editora quando você não é conhecido é a divulgação, uma vez que é tiro certo, já existe um catálogo definido, esquemas com mídia e booktubers. Mas a parte que realmente me pega, sendo editora de um só funcionário, é a logística das feiras de quadrinhos. O Maestro, o Cuco e a Lenda é um livro de capa dura, 208 páginas, pesado pacas. Uma caixa com 22 livros pesa 15kg. É tenso levar mochila, pegar metrô, saca? O transporte às feiras gera um custo a mais e um custo e esforço que fazem diferença. Diferente de quando a equipe de uma editora assume o controle e ao autor só lhe basta chegar à mesinha, cambaleante, para soltar autógrafos e sorrisos amarelos. Lição aprendida. O Martírio de Joana Dark Side será um livro de brochura com 76 páginas. Nem sei quantos conseguirei levar nas costas dando risada. Que frase!

Quais são seus próximos planos para a Texugo? Você já tem algum novo quadrinho em vista?

Irei voltar ao lugar onde a humanidade é o melhor disfarce, a HQ Silvestre. Que, talvez, saia pela Texugo. Estamos analisando todas as possibilidades. Mas nem só de autopublicações viverá a editora. Estou negociando os direitos de um quadrinho belga da pesada (o que já era para ter acontecido e, ao que parece, vai miar – deusqueiraquenão), de olho em outros deste mundão sem porteiras.

HQ / Matérias

Jeff Smith e as cinco décadas de desenvolvimento do universo Bone

Bone: O Vale ou Equinócio Invernal é a primeira das três coletâneas prometidas pela editora Todavia reunindo a íntegra da versão colorida da série Bone em português. A obra do quadrinista Jeff Smith é um dos maiores clássicos das HQs mundiais e o autor é dono de uma das carreiras mais singulares da história dos quadrinhos norte-americanos. Eu conversei com Smith sobre essa versão de seu trabalho que acaba de chegar às livrarias brasileiras e o papo virou matéria no jornal Folha de São Paulo. Ele falou sobre a criação de Bone durante sua infância, comentou o desenvolvimento da saga ao longo dos anos e a decisão de relançar a obra em cores. Você lê o meu texto por aqui.