Aborto em quadrinhos (ou: desenhando pra quem ainda não entendeu) [#AgoraÉQueSãoElas]

por Carolina de Assis*

Nunca fiz um aborto. Sou mulher (cisgênero, ou não trans, portanto tenho útero) e costumo me relacionar com homens (todos, até hoje, cisgênero, ou não trans, e que portanto têm testículos) e, por sorte, nunca fiquei grávida. Sorte, mesmo: já fiz sexo sem proteção (como a enorme maioria das pessoas que conheço) e já fiz sexo usando camisinha e/ou tomando pílula e, por força de Pachamama, não engravidei em nenhuma ocasião. Porque, mesmo com camisinha e mesmo com pílula (anticoncepcional ou do dia seguinte), poderia ter acontecido. Me espanta como tanta gente parece não saber, mas não existe nenhum método contraceptivo 100% seguro. É sério, não existe mesmo. Sexo vaginal, com penetração e gozo dentro, carrega sempre o risco de gravidez (e de DSTs também, é bom não esquecer).

Comecei falando de aborto porque é o que eu teria feito caso tivesse ficado grávida em algum momento, e é o que acontece quando mulheres ficam grávidas e não querem permanecer grávidas: elas abortam. No Brasil, nos Estados Unidos, no Uruguai, na França, na Argentina, na África do Sul, na Polônia, no raio que nos parta, em qualquer momento da história da humanidade: mulheres abortam. Em alguns lugares – como Uruguai, França, África do Sul – o direito delas à interrupção da gravidez está assegurado pela legislação nacional e elas podem fazê-lo livremente, com acesso ao aborto seguro garantido pelo Estado. Em outros – como Brasil, Argentina, Polônia – a interrupção voluntária da gravidez (não quero estar grávida, logo aborto) é crime. As mulheres que abortam e as pessoas que as auxiliam (equipe médica, amiga que dá a dica da clínica que realiza o procedimento de maneira segura, etc) podem ir pra cadeia caso sejam denunciadas à polícia.

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Nos Estados Unidos – assim como Uruguai, França, África do Sul – as mulheres também têm o direito à interrupção voluntária da gravidez assegurado em âmbito federal. No entanto, cada estado da federação tem liberdade para legislar sobre a prática em seu território. O que tem acontecido nos últimos anos nos EUA é que os opositores do aborto estão se aproveitando dessa liberdade para atuar em âmbito estadual para restringir o acesso das mulheres ao procedimento e até a contraceptivos. É o que chamam, por lá, de War on Women: a guerra contra as mulheres, que acabam pagando nos próprios corpos a conta de uma sociedade machista, moralista e hipócrita, e de políticos idem.

Daí que, nos EUA (como no Brasil e em quase todo lugar desse mundão, valha-nos deusa), mulheres têm batalhado não só por mais direitos, mas também pra manter o que elas conquistaram à custa de tanta luta. A defesa do direito ao aborto tem vindo de diferentes frentes e uma delas são os quadrinhos. Em agosto desse ano a Fantagraphics lançou por lá o quadrinho Not Funny Ha-Ha: A Handbook for Something Hard (“É engraçado, mas não é pra rir: um manual pra algo difícil”, na minha tradução freestyle), da artista novaiorquina Leah Hayes, que conta as histórias de duas mulheres que se descobrem grávidas e decidem abortar.

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Hayes explora o processo norte-americano do aborto legal e esclarece várias questões sobre o procedimento no país (eis porque o livro se autoproclama “manual”). Ela explica, por exemplo, a diferença entre aborto cirúrgico e aborto médico (ou farmacológico): o primeiro é realizado em clínicas de saúde ou no consultório médico e envolve anestesia local e uma intervenção cirúrgica vaginal. Já o segundo se dá pela ingestão de pílulas abortivas, em geral uma combinação de mifepristona e misoprostol, e pode ser feito pela própria mulher, em casa, sem necessidade de supervisão médica.

O objetivo de Not Funny Ha-Ha, porém, não é tanto informar sobre o procedimento, mas sim registrar em quadrinhos as maneiras diversas em que as mulheres podem viver essa experiência e fazer com que elas saibam que não estão sozinhas, nem nos questionamentos nem nas certezas de cada uma sobre o aborto. “Abortar pode ser um processo confuso, assustador e às vezes solitário. Não tinha a intenção, ao escrever este livro, de suavizar o assunto, definir o ‘certo ou errado’ sobre o tema ou torná-lo trivial. Espero oferecer algo que possa fazer com que alguém que passou por um aborto se sinta menos sozinha”, disse Hayes ao HuffPost.

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“Sentia que eu tinha algo a dizer sobre como é fazer um aborto, e desenhar é a minha maneira de contar essa história”, disse ela ao BuzzFeed. “Espero que muitas mulheres e muitos homens leiam o quadrinho: eu fiz querendo que ele fosse para todas as pessoas. Gostaria que as pessoas o vissem como a interpretação de uma ilustradora sobre algo muito complicado e muito importante.”

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A luta das mulheres nos EUA tem muito a ver com a nossa aqui no Brasil. Como eu escrevi lá em cima, aqui a interrupção voluntária da gravidez segue criminalizada, o que não significa, de maneira alguma, que mulheres não abortem quando assim desejam. Elas abortam, sim – cerca de um milhão delas, a cada ano. Porém o fazem clandestinamente e, no caso das mulheres pobres, se sujeitando a condições insalubres e arriscando a própria vida. A criminalização do aborto no Brasil, talvez você não saiba, pune especialmente mulheres pobres (e consequentemente negras): estima-se que uma mulher morra a cada dois dias no país em consequência de aborto realizado em condições precárias. Mulheres ricas (e consequentemente brancas) que têm condições de pagar cerca de cinco mil reais por um aborto realizado no ambiente seguro de uma clínica reputada seguem carregando o fardo da clandestinidade, que olha, não é pouco.

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A essa situação calamitosa somou-se recentemente o ataque de deputados conservadores ao nosso suado direito ao livre uso da pílula do dia seguinte, medicamento indicado como contracepção de emergência após a prática de sexo sem proteção e que não é abortivo. E piora, visto que eles querem negar esse direito às mulheres que mais precisam dele: as vítimas de violência sexual. O projeto de lei 5069/2013, de autoria do deputado federal, presidente da Câmara e titular de contas milionárias na Suíça e de infindáveis acusações de corrupção e apropriação de dinheiro público, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), pretende não só dificultar o acesso ao aborto legal às mulheres vítimas de estupro (a lei brasileira hoje lhes garante esse direito) como também tornar crime o mero ato de informar as vítimas de violência sexual sobre seus direitos ao aborto legal e à pílula do dia seguinte.

Amiga, amigo: se você não está sentindo um misto de desespero e revolta é porque você não entendeu.

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A cartunista Fabiane Langone, mais conhecida como Chiquinha, entendeu e desenhou. No dia 22 de outubro, após a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara aprovar o projeto de lei 5069/2013, ela publicou em sua página do Facebook o que se tornou o primeiro de uma série de cartuns com um novo e gracioso personagem, o Abortinho.

Desde então foram seis charges criticando a misoginia e a hipocrisia de deputados e ativistas antiaborto, que consideram que um feto vale mais do que a vida de uma mulher – e que depois passa a valer pouco ou nada caso venha a se tornar uma criança parida por uma mulher pobre e/ou negra.

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O que artistas como Leah Hayes e Chiquinha fazem é trazer para os quadrinhos um tema que afeta diretamente metade da população mundial, as mulheres, e indiretamente a outra metade, os homens. Porque, diferentemente do que diz a Bíblia, não existe gravidez sem sexo, sem penetração, sem gozo dentro (a historinha sobre Maria mãe de Jesus grávida do Espírito Santo é só uma metáfora, cêis sabem, né?). É a pergunta que não quer calar e que nós cantamos durante a marcha que ocupou a Av. Paulista no dia 30 de outubro em protesto a esse projeto de lei abominável: “Cadê o homem que engravidou? Por que a culpa é da mulher que abortou?” Por que ela é culpabilizada e criminalizada pela violência sexual cometida contra ela por um homem? Por que ela é criminalizada por se recusar a ter o filho do homem que a estuprou? Por que a ela é imposta a maternidade, seja a gravidez decorrente de um estupro, de uma falha no contraceptivo ou de uma trepada sem camisinha, e ao homem que a engravidou – a nenhum homem em nenhuma situação – não é imposta a corresponsabilidade pela gravidez e a paternidade do filho que ele ajudou a gerar?

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Este espaço que estamos ocupando nesta semana de #AgoraÉQueSãoElas é, na verdade, um convite à reflexão para vocês, caros homens. Leiam, ouçam, pensem e considerem o que significa ser mulher hoje no Brasil. Tentem se colocar no lugar de uma mulher, qualquer mulher. Tentem, pra ficar somente no tema deste post, imaginar o desespero de descobrir-se grávida quando se tem absoluta certeza de não querer estar grávida, de não querer este filho, de não querer filhos jamais, de não querer ser mãe, e viver sob um Estado que prefere te ver morta a reconhecer e respeitar tua autonomia e tua capacidade de decidir sobre tua vida e teu corpo.

Mulheres não são incubadoras. E, independentemente de leis restritivas e criminalizantes, mulheres continuarão abortando. Nossa luta é pra que elas passem por essa experiência da melhor maneira possível e sobrevivam a ela. A colaboração de vocês, homens, é muito bem-vinda. Mas não é imprescindível: continuaremos falando, gritando, fazendo um escândalo, ocupando as ruas, as redes sociais e até teu blog preferido pra deixar claro que em nossos corpos e em nossos direitos ninguém toca sem nosso consentimento.

*Carolina de Assis é feminista desde bem antes de saber que existia um nome pra isso. É mestre em estudos de gênero e da mulher pelas universidades de Bolonha (Itália) e Utrecht (Holanda) e escreve (sobre direito ao aborto, inclusive) no blog Transtudo.

>> O post faz parte da iniciativa #AgoraÉQueSãoElas, na qual mulheres ocupam os espaços masculinos de fala. Homens convidam mulheres para escrever no seu lugar e se colocam nesse lugar do ouvinte. Dando voz e vez a uma mulher. Reconhecendo a urgência da luta feminista por igualdade de gênero e o protagonismo feminino nesta luta. Lá no Trabalho Sujo a autora do projeto fala mais sobre a iniciativa. Outras amigas e conhecidas foram convidadas e deverão dar as caras por aqui nos próximos dias.

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

4 comentários

  1. Aeeee Carolina Assis!!!!
    Continuo orgulhosa das mulheres que estão escrevendo e do dono do blog!
    Penso que do jeito que as coisas estão no Brasil e no mundo ainda é necessário gritar muito, escrever muuuuito e desenhar muuuuuuuiiiiito pra quem
    é surdo, cego e mudo!

  2. Um aborto sempre terminará em morte! Não consigo relativizar isso. É egoista, perverso.
    Quem já tem filhos, impossível olhar para eles e pensar “ah, deveria ter te abortado”, pois soa exatamente como “devia ter te matado”…

    Tive os Meus, todos no susto, mas venci e orgulho -me deles, embora tenha custado minha vida criá-los. Mas ser pai é isso: servir!

    O egoísmo não deixará muitos entenderem.

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