por Vanessa C. Rodrigues*
1.
Ontem aprendi um novo sentido para a palavra lapidar. A notícia dizia assim: “Rebeldes taliban e senhores da guerra de uma zona montanhosa do Afeganistão lapidaram até à morte uma jovem afegã acusada de adultério.” Eles enterraram a mulher, Rokhsahana, “que teria entre 19 e 21 anos” deixando só a cabeça dela para fora. E começaram a apedrejá-la. Até a morte. Alguém achou uma boa filmar o ato. O vídeo tem corrido pela internet. Não vi, obviamente. Ela, Rokhsahana, “que teria entre 19 e 21 anos”, se casou contra sua vontade e quis fugir com outro homem, talvez aquele que ela amava e com quem gostaria de ter se casado. Ele não foi condenado à mesma pena.
2.
Minha vó casou aos 14 anos contra sua vontade. Ela nunca tinha namorado. Talvez já tivesse se apaixonado por algum rapaz do sítio onde morava, mas é provável que não, já que era dela a responsabilidade de cuidar da casa. Todas minhas tias casaram com os primeiros namorados. Uma delas, apanhava do marido porque não fake hublot replica blue leather strap sapphire mirror engravidava. Outra passou a vida toda sofrendo pela violência com um homem com quem fugiu aos 15 anos porque tiraram dela na época o direito de reclamar de qualquer coisa. Minha mãe casou aos 17. Acho que para sair da casa onde trabalhou como doméstica desde os seis anos. Minha vó morreu aos 60 anos. Ela tomava muitos remédios e bebia escondido.
3.
O primeiro filme que assisti na Mostra deste ano foi o grego Matriarcado (Nikos Kornilios, 2014). O filme todo se passa num espaço, que corre o risco de ser destruído, em que 60 mulheres discutem seu lugar no mundo de hoje, considerando todas as formas de violência e de imposição cultural que sofrem (sofremos) nesta velha sociedade patriarcal. Patrão, padrão, pátria. Pai. Saí do cinema repensando meus gestos, minha postura, todas as vezes que abaixei a cabeça, que evitei uma briga, que evitei a violência. As tardes em que eu não podia, como meu irmão, ficar na sala vendo tevê, pelo menos não até que a louça não estivesse mais na pia, as vezes em que eu fui repreendida pela boca suja, por ter bebido, por ter fumado. Da culpa de ter sentido desejo ou de ter esquecido de pendurar a roupa da máquina. Me lembrei da minha sobrinha, que chorou um dia de medo porque derrubou um pouco de água no sofá da sala. E de quando explicaram que ela já era uma mocinha e não podia sentar de perna aberta. Nem levantar o vestido enquanto dançasse. Ela tem três anos. Seu corpo, pequenino, de outra forma sendo lapidado.
4.
Esse espaço precioso que Matriarcado apresentou era bastante politizado, um lugar de debate, que acolhia mulheres que sofreram violências excruciantes, que não tinham para onde ir. Mas de alguma maneira me fez lembrar as reuniões que a Marjane Satrapi nos apresentou em Bordados. Um espaço de liberdade, seguro. E essa sobreposição de imagens me fez pensar que esses lugares, em geral envolvidos por paredes seguras, são imprescindíveis principalmente porque a rua ainda não é nossa. Uma mulher não tem o mesmo direito de ocupar uma calçada. Porque tem que passar pelo constrangimento do assédio, todos os dias, desde os dez, doze anos. Uma vez ouvi de um policial militar que fazia a ronda na porta da escola “Que belo projeto de mulher”. Eu tinha uns treze anos. A gente precisa, como disse um dia Virginia Woolf, de um quarto todo nosso. Primeiro, antes de tudo, de um espaço todo nosso, um recorte retangular e fechado desse mundo, que é dos homens. Esse é o primeiro passo, sem dúvida. A independência, a segurança. A liberdade para falar o que quisermos. Mas queremos a rua. Por isso que na sexta, quando nos reunimos na Avenida Paulista para protestar contra o absurdo que é esse projeto de lei retrógrado e perverso, aquilo teve um poder indescritível para mim. A subversão completa do que esperam que sejamos. Padrão. Patrão. Pátria. A próxima será maior.
5.
Confesso que tive um sentimento ambíguo em relação a essa campanha. Me pareceu por uns momentos um desses “admiráveis” gestos cavalheirescos, como abrir a porta do carro, como segurar a porta do elevador. Como olhar para qualquer mulher numa roda de amigos com uns olhos galantes, como amenizar os assuntos porque tem mulheres na mesa, como fazer questão de dizer que aquele vestido, que aquele batom, que aquelas pernas, que aquelas unhas, estão ou não aprovados.
Mas reconsiderei. É importante. Nesses nossos dias em que, ao contrário do que parece, tagarelamos em uma comunidade praticamente de iguais, é uma oportunidade de nos Bomuld kugle e cigaret infiltrarmos em outros espaços, ainda que não seja de todo nossos. E se esse texto servir para que você, querido leitor, passe a olhar para qualquer mulher como olha para os demais seres humanos com quem convive, já será um grande avanço. Às vezes tenho vontade de dizer para uns amigos: apesar de todas as inseguranças e das doenças que precisarei curar simplesmente porque nasci mulher, apesar da dificuldade em me sentir completamente independente e de ser tão difícil caminhar, escolher, decidir, amar, amigo, apesar desse corpo lapidado aqui na tua frente, isso, olhe para os meus olhos e me ouça, me ouça como você ouve esse cara aqui do meu lado.
*Vanessa C. Rodrigues é escritora. Anunciação, seu primeiro romance, sairá ainda este mês pela editora Oito e Meio. vanrodrigues.wordpress.com | @van_rodrigues
>> O post faz parte da iniciativa #AgoraÉQueSãoElas, na qual mulheres ocupam os espaços masculinos de fala. Homens convidam mulheres para escrever no seu lugar e se colocam nesse lugar do ouvinte. Dando voz e vez a uma mulher. Reconhecendo a urgência da luta feminista por igualdade de gênero e o protagonismo feminino nesta luta. Lá no Trabalho Sujo a autora do projeto fala mais sobre a iniciativa. Outras amigas e conhecidas foram convidadas e deverão dar as caras por aqui nos próximos dias.
Não posso deixar de comentar:
Vanessa, que bom que você teve a dúvida, pois isso lhe permitiu reconsiderar e se fazer ouvir. Que orgulho ler mais um texto brilhante escrito por uma mulher e que orgulho ter muito próximo a mim esse homem, que abre espaços e pode escutar, um pouco, essa voz.
Crishina