Eu conheci o trabalho do escritor e jornalista anglo-canadense Tom Rachman em 2011, logo que Os Imperfeccionistas foi lançado no Brasil. O romance narra a rotina de um grupo de jornalistas da redação de um diário internacional com sede em Roma. Em 2014, eu tive a oportunidade de entrevistar o autor pessoalmente em Londres, logo em seguida à publicação de seu segundo livro, The Rise & Fall of Great Powers e o papo acabou impresso no jornal O Globo. Voltei a entrevistá-lo agora, em seguida ao lançamento de The Italian Teacher, seu mais recente trabalho. Essa conversa nova também virou matéria pro Segundo Caderno do Globo. Pro jornal eu escrevi um pouco mais sobre a trama do livro e alguns dos temas dos quais ele trata – e você confere esse conteúdo por aqui. A seguir, reproduzo a íntegra dessa conversa:
(Crédito da foto em destaque: Rasmus Schou)
Eu fiquei com a impressão de estar lendo um livro no qual o personagem principal não é o personagem principal, o Pinch não parece ser o protagonista nem mesmo da vida dele. Como foi criar um personagem principal que parece evitar o tempo todo qualquer tipo de protagonismo?
O que você está descrevendo é, de certa forma, o quebra-cabeça principal desse personagem. Ele não é o protagonista nem mesmo da própria vida dele, como você disse, mas ele está enfrentando as consequências disso, de ser um personagem secundário para o pai dele de forma tão devastadora – sem entregar nenhuma surpresa do livro -, até ele acabar se libertando disso e encontrando uma forma de ter uma existência própria. Mesmo assim, durante grande parte de sua juventude, ele acabou sendo oprimido por esse personagem grandioso.
Essa é uma pergunta muito interessante por ser uma questão criativa e literária, mas por também ser a questão vivida pelo personagem. Como ele pode descobrir quem realmente é? Como ele pode se afirmar? Coisas que eventualmente ele acaba conseguindo fazer.
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“O quanto estamos dispostos a aceitar de artistas e o quanto faz sentido aceitar e ceder pelo bem das artes e em nome de bens culturais?”
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Por que as pessoas amam o Bear? Por que amamos artistas com posturas e posicionamentos tão questionáveis?
Bem, essa é uma boa pergunta. Para essa pergunta pode estar a resposta para vários dos grandes artistas da nossa época e alguns do nosso passado também. Mas não apenas artistas, também para pessoas extremamente carismáticas mas hostis àqueles ao seu redor. Há várias dessas pessoas por aí. Provavelmente todo mundo conhece alguém assim ou tem uma pessoa desse tipo na própria família. Ou talvez mais de uma. Alguém que é muito atraente de algumas formas, mas também muito prejudicial de outras e é incapaz de ajustar-se àqueles ao seu redor e assim, com o tempo, acaba fazendo com que todos se adaptem a ele a um grande custo.
Mas por que apreciamos, aceitamos, admiramos e nos afeiçoamos a esse tipo de pessoa? Não deixa de ser um fardo da natureza humana. Esse tipo de pessoa é incrivelmente atraente. É a mesma pergunta feita de maneira diferente: por que as pessoas continuam em relacionamentos abusivos? É fácil para alguém de fora dizer ‘bem, essa pessoa é abusiva e horrível e seu parceiro deveria dar o fora’, mas é muito mais difícil na vida real. Por causa das conexões que são feitas, da forma como uma personalidade pode ser moldada e até mesmo destruída em função de outra pessoa e de como é possível ceder mais e mais apenas por um pouco mais de contato e conexão com alguém. Esse é um componente psicológico muito, muito perigoso disso. Há um tipo de vulnerabilidade psicológica bem estudada para seres humanos conhecida como Condicionamento Operante: se alguém é legal com você o tempo todo, então essa pessoa é menos atraente, mas se ela é legal com você apenas de vez em quando e de forma aleatória, ela pode ser extremamente viciante. Se você sente um pouco de prazer por qualquer coisa, seja uma personalidade, uma droga ou qualquer coisa, mas de forma irregular, então você vai querer mais dessa fonte desesperadamente. É a mesma razão pela qual as pessoas estão constantemente checando seus emails. Você pensa: ‘talvez agora eu vá receber um que fará o meu dia’, mas 99% deles só farão você se sentir pior. É esse mesmo aspecto sedimentado da psicologia humana que nos faz tão vulneráveis para esse tipo de pessoas.
A segunda parte dessa resposta está relacionada a personalidades artísticas. Por que a sociedade é tão suscetível a aceitar artistas que agem de forma horrenda? Isso é obviamente algo que percorre todo o livro, o quanto estamos dispostos a aceitar de pessoas consideradas especiais na criação de algo particularmente valioso como arte? É algo que a sociedade e o mundo das artes têm se perguntado bastante ao longo dos últimos seis meses, desde o crescimento do movimento #MeToo e de tantas revelações de comportamentos abismais de homens pertencentes ao mundo das artes. As pessoas estão se perguntando algo que ignoraram por séculos: o quanto estamos dispostos a aceitar de artistas e o quanto faz sentido aceitar e ceder pelo bem das artes e em nome de bens culturais? É uma pergunta ainda sem resposta, que veio à tona na época do lançamento do livro, mas que venho pensando há muitos anos.
Nós tendemos a fazer vista grossa para artistas com comportamentos questionáveis para que possamos admirar seus trabalhos?
Com certeza. Muitas das revelações expostas por movimentos como o #MeToo não são completamente novas. O caso do Roman Polanski, como você sabe, ocorreu em 1974, há 44 anos. Todo mundo sabia que esse homem foi condenado por estuprar uma menor de idade e fugir da justiça. Nesse meio tempo ele recebeu um Oscar. Eu não vou fazer um julgamento simplório de que isso é certo ou errado, acho que é uma questão muito mais complexa e difícil do que isso. O meu ponto, o que acho extraordinário, é por quanto tempo temos ignorado essas questões e por quanto tempo temos estado dispostos a sacrificar pessoas em prol da cultura.
O Roman Polanski é um caso, mas veja o Pablo Picasso, o Gauguin, o Lucien Freud – e esses são só alguns nomes das artes visuais que vêm à minha mente – e tantos outros da televisão e do cinema que acabaram de ser expostos. Durante um longo período, nós apenas não queríamos saber e estávamos dispostos a acreditar que havia algo como uma ‘personalidade artística’ que fazia deles um pouco diferentes. O que queremos de artistas é que eles sejam pouco ortodoxos e que façam algo que ninguém mais irá fazer, que eles façam coisas corajosas e inesperadas, que eles quebrem com normas sociais e sejam corajosos o suficiente para conceber algo realmente original que mudará para sempre a nossa sociedade e nos enriqueça de alguma forma. Ao mesmo tempo, essa inconvencionalidade está muito próxima de coisas que ofendem a sociedade, seja um artista dos anos 20 tendo um relacionamento homossexual ou vivendo com amantes ou outro nos anos 60 usando muita droga.
Pelo menos nos últimos 100 anos há exemplos infinitos de artistas associados à quebra de normas sociais. O que chama atenção agora é que estamos em um momento de exceção a isso que sempre predominou. A pergunta então não é porque estávamos dispostos a aceitar, mas por que nós não estamos aceitando mais? E também: até onde estamos dispostos a ir? Eu acho que muitos dos casos que vimos são tão repulsivos que queremos simplesmente esquecer das artes dessas pessoas. Mas o que é interessante é que isso não tem se aplicado a obras do nosso passado. Hoje funciona assim: se você está vivo e fez algo ruim, ninguém quer ter nenhuma ligação com você e nem quer mais saber da sua arte. Mas se você está morto e fez algo ruim, descobriram que você é um pedófilo nazista e sei lá o que mais, então eles farão vista grossa.
Há muita inconsistência interessante no momento. Imagine que alguém te desse o seguinte cenário: a arte da nossa geração deve ser decidida em parte pela moralidade do artista. A maioria das pessoas ficaria muito perturbada por essa ideia. Hoje, as pessoas vivas pegas em atitudes horrendas são alvos fáceis, pois elas não morreram como heróis que viraram santos após à morte. Essas pessoas nos fazem nos sentirmos bem moralmente por não permitirmos que elas escapem e não consigam tirar mais proveito. Mas acho que também não estamos chegando no cerne da questão: o quanto a sociedade vai aceitar em prol de sua arte? E por quê? Por que ela deve aceitar qualquer coisa? Por que essas pessoas são consideradas especiais? Elas devem ser consideradas especiais? Durante séculos nós estivemos dispostos a sacrificar pessoas pela arte, mas agora talvez não estejamos mais. É um momento interessante.
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“Se o mundo não se importa ou despreza a sua arte, esse pode ser um retorno devastador em relação a quem você é”
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Mas como conhecemos a moral de cada artista? O Banksy, por exemplo, nos conhecemos sua ideologia, mas não sabemos quem ele é. Pode ser que o nosso interesse esteja maior no artista do que na própria arte?
Sim. Mas eu acredito que o Banksy não é anônimo, apesar da identidade real dele não ser conhecida. Se ele fosse anônimo seria muito difícil vendê-lo, seria muito difícil para ele conseguir a fama que tem. Outra coisa sobre a qual falo no livro é como há muito mais na grandiosidade do artista do que na própria arte e como temos uma noção falsamente idealista de como arte funciona, imaginamos que grandes obras de arte acabam legitimando grandes artistas, mas eu acho que isso é uma imensa besteira. É tudo muito muito mais complicado e corruptível do que isso, tudo isso não passa da consequência de seres humanos falhos e frágeis tomando decisões e esses artistas não pertencem a nenhuma classe de espíritos superiores a todos nós.
No caso do Banksy, se ele fosse anônimo, ele não teria sucesso, pois é preciso personalidade para vender arte. Isso é algo que penso bastante em termos de escrita: quando eu escrevo um livro novo e saio por aí para falar sobre ele, eu fico com a impressão que todo escritor sente que tudo o que eles querem expressar de mais importante está presente no livro. Mas é óbvio que isso não é o suficiente para convencer alguém a ler o livro. Para que a pessoa leia, você precisa apresentar uma história por trás da história e isso normalmente está relacionado à sua personalidade, à sua vida, aos seus pensamentos sobre coisas. Quanto mais maluco, inesperado e pouco convencional for isso tudo, mais você vai vender. Se você for uma pessoa maluca e esquisita, vão escrever mais sobre você, em detrimento da qualidade do seu trabalho, seja você um pintor, um escultor, um ceramista, um escritor ou um músico. Se você estiver usando drogas, namorando modelos, tiver tentado cometer suicídio e feito qualquer tipo de coisa maluca, então você é um artista melhor, você satisfaz melhor a fantasia das pessoas.
Nós não sabemos o nome do Banksy, mas ele tem uma personalidade muito explícita. Nós sabemos seus posicionamentos políticos, mesmo sem conhecê-lo. Há algo muito chic e descolado nesse cara, se escondendo dessa forma. Se ele fosse realmente anônimo, então como saberíamos que ele existe? Como teríamos alguma noção mínima de quem ele é? As coisas dele são vendidas, ele está em galerias, as pessoas sabem quem ele é e sabem como fazer publicidade com ele como se ele tivesse uma identidade e uma história. Ele não é anônimo.
Quando nós conversamos em 2014 você me disse algo sobre o que considera ser a força mais poderosa da humanidade: ‘a crença irracional de que você é a pessoa mais interessante viva’ e como a ideia de meritocracia constrói essa ideia de que qualquer um pode ser famoso e caso contrário você é um perdedor. Fiquei pensando como o Pinch, o protagonista, é incapaz de conectar com pessoas e falar com um público. Nesse aspecto, vender arte, pensar arte como produto e encontrar essa conexão pode ser algo muito doloroso e frustrante, certo?
Sim, esse é definitivamente um aspecto central da história. É verdade que obras de arte, geralmente, são frutos de uma combinação que envolve a paixão pela produção daquele tipo de arte, seja ela qual for. Mas também envolve a busca por reconhecimento, seja apenas por amigos, pela sua comunidade local de artistas ou pelo mundo inteiro. As pessoas estão fazendo arte porque querem comunicar seus sentimentos interiores de alguma forma, expressar suas essências, algo que seja intrínseco a você. Isso tudo em um mundo no qual é fácil passar décadas da uma vida com a sensação de que você é apenas mais uma unidade vivendo seu dia sendo que está na natureza de cada pessoa, desde o seu nascimento, sentir-se a coisa mais importante do mundo, mesmo que todas as experiências estejam explicitando exatamente o contrário. Eu acredito que há um desespero no impulso artístico profissionalizado por produzir algo que faça com que as pessoas vejam como você é ligeiramente diferente, que você tem algo em particular que talvez permita que você dure para sempre e continue a existir.
Mas o outra lado disso é que se você fizer esse esforço e o mundo for indiferente, como ele costuma ser, então essa resposta pode ser terrivelmente devastadora. Você pode trabalhar em um banco, vendendo sorvete ou fazendo qualquer coisa pela qual se importa, mas sendo apenas o seu trabalho e não a representação de quem você é, como a arte é. Ela vai sempre expor a sua vida pessoal e estará sendo sempre julgada por um público. Se esse julgamento for positivo, é algo extraordinariamente gratificante, faz um bem imenso ao ego, e é essa a razão pela qual as pessoas fazem arte. Por outro lado, se o mundo não se importa ou despreza essa arte, esse pode ser um retorno devastador em relação a quem você é.
Eu acredito que esses altos e baixo desse tipo de trabalho explicam, em parte, o motivo de tantos artistas serem maníaco-depressivos. Eles ficam entre esses extremos, entre aprovação e indiferença social, sendo sempre jogados de um lado para o outro. E talvez, como no caso do Pinch, nunca sendo descoberto e sendo ignorado e menosprezado durante grande parte de vida e lutando para compreender a razão de estar fazendo tudo aquilo. Você pode amar pintar, mas se está pintando e ninguém quer exibir as suas pinturas, ninguém se interessa por vê-las, quando são vistas ninguém quer comprar, elas não geram nenhuma comoção e o mundo das artes das artes dá a entender que elas podem ser ignoradas ou até mesmo queimadas, essa experiência pode ser devastadora. Assim como foi para o Pinch.
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“Eu ainda amo e admiro vários artistas, mas não tenho mais o desejo de conhecê-los, porque eu acredito que a melhor e maior expressão do que eles fazem é o que eles estão produzindo”
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E o quanto dessas ideias vieram das suas experiências como escritor? Você também está em busca de conexões com seus leitores por meio de seu trabalho, certo?
Sim. Muita coisa. Em parte, escrever sobre artes visuais foi uma forma para que eu refletisse sobre alguns aspectos das artes em geral. Não apenas no que diz respeito do meu envolvimento como consumidor de arte, música, pinturas, cinema e por aí vai, mas como alguém que também produz arte. Por um lado, eu estava curioso por olhar atentamente para esse mundo de pessoas criativas. Por outro, eu estava empolgado por tentar analisar algumas das coisas que eu havia vivenciado nos últimos anos trabalhando no mundo literário e visto como o que eu esperava de pessoas não era real, como a fantasia de uma grandeza artística era um mito. Então foi uma tentativa de escrever sobre algumas dessas reflexões, mas eu não queria que fosse apenas sob o meu ponto de vista. Eu queria expor algumas dessas experiências, mas apresentá-las sob outra perspectiva, levando em conta que artes visuais são diferentes de literatura, mas explorando algumas dessas ideias.
Imagino que como jornalista e escritor você tenha tido a oportunidade de conhecer alguns ídolos e pessoas que admirava. Esses encontros também afetaram a forma como você vê e lida com essas pessoas?
Sim, com certeza. Essa tem sido uma experiência interessante. Uma das melhores coisas de ser um jornalista é encontrar a desculpa para entrar em contato e conversar com pessoas que você considera muito interessantes artisticamente, é um grande privilégio. Outro dia eu estava pensando quem eram as pessoas com quem eu gostaria de conversar e eu realmente sofri para chegar em alguém. Eu ainda amo e admiro vários artistas, mas não tenho mais o desejo de conhecê-los, porque eu acredito que a melhor e maior expressão do que eles fazem é o que eles estão produzindo. Digo isto tendo conhecido um número vasto de pessoas famosas, incluindo alguns dos meus heróis literários, tanto como jornalista, mas também participando de festivais literários nos quais conheci e conversei com essas pessoas e, no meu caso, costuma ser uma decepção. É raro que uma pessoa incrivelmente talentosa faça jus a esse talento sendo incrivelmente agradável ou particularmente genial para se conversar. Pode ser que um aspecto fundamental para que essas pessoas consigam criar seus trabalhos é que elas sejam incrivelmente auto-centradas. Isso quer dizer que elas são realmente péssimas para se passar um tempo em termos humanos, mas esse mesmo egocentrismo é o que permite que elas foquem imensamente em seus próprios trabalhos. Então sim, eu acho que todo esse trabalho, entrevistando pessoas e estando com elas em outros contextos me deu uma perspectiva diferente e me fez questionar quais são os ingredientes e o que faz desses artistas tão grandiosos – e até mesmo se há algo assim.
O livro também trata muito sobre paternidade e legado. Você agora tem um filho. O quanto o nascimento do seu filho pesou durante a produção do livro?
Esse foi um aspecto central para mim. Eu comecei a escrever o livro também porque estava lidando com a perspectiva de ser um pai. Eu estava muito focado na minha escrita, isso estava me tomando muito tempo e cansando demais. Eu pensava na possibilidade de começar uma família, mas cogitava se ter um filho arruinaria a minha escrita ou se a minha escrita arruinaria o meu filho. Eu fiquei muito preocupado com esses cenários e congelei, eu não sabia o que fazer. Eu não queria arriscar perder a existência de alguém que eu pudesse amar um dia, mas também estava aterrorizado com a ideia de me tornar uma pessoa horrível em nome do meu trabalho. Foi um grande dilema para mim e comecei a escrever esse livro como um método de tentar descobrir o que eu queria fazer, compreender melhor a situação e imaginar um artista, o personagem do Bear Bavinsky, que é completamente auto-centrado e tão determinado a alcançar o que queria com sua arte que todos ao seu redor não passam de matéria. Eu não queria escrever sob a perspectiva dele, eu queria escrever sob a perspectiva da pessoa que poderia ser mais abalada por ele. Durante esse processo de escrita eu senti que a minha questão havia sido resolvida, eu decidi que queria ter um filho e queria ser um pai, o melhor pai que eu conseguisse ser com a esperança de continuar escrevendo. A minha vida mudou muito desde o nascimento do meu filho, eu passo muito tempo com ele, cuidando dele e sinto muito prazer nisso. Eu me preocupo muito com ele. Então o livro começou como um dilema e terminou com um filho de dois anos.
Você falou sobre a forma como o Bear Bavinsky vê tudo ao redor dele como matéria e acho que isso diz muito sobre o estilo das pinturas dele. Você não é pintor, como você definiu qual seria o estilo e o padrão dos trabalhos dele?
Definir esse estilo particular foi pensar nele vendo as pessoas ao redor dele como matéria, mas também como algo que o fizesse sofrer em frente ao quadro em branco. A ironia disso é que ele não está pintando autoretratos, mas retratos de outras pessoas que ele gostaria que fossem sobre ele. Da mesma forma, se você pensar nos retratos do Picasso, eles sempre foram sobre o Picasso, nenhum deles é sobre a pessoa que ele estava retratando. Nós não olhamos para um dos quadros e dizemos ‘Oh, é a Marie-Thérèse Walter’, nós dizemos: ‘É um Picasso retratando uma pessoa qualquer’. Até mesmo o Lucien Freud, outro desses pintores de retratos talentosos e famosos por seus comportamentos questionáveis, os títulos dos trabalhos dele são muito reveladores, são títulos como ‘Menina’ ou ‘Homem com o Cachecol Azul’, ninguém nunca é identificado. A menina pode ser, por exemplo, a esposa ou a filha dele. O homem pode ser um amigo ou uma pessoa famosa, mas são todos apenas objetos físicos para ele. Estão todos lá apenas para o engrandecimento do trabalho dele, das intenções dele e mesmo assim eles precisaram passar horas sentados, enlouquecendo enquanto ele não acabava. O que eles ganharam com essa experiência? Nada, na verdade. No final das contas é apenas um quadro do Lucien Freud ou do Bear Bavinsky, não da pessoa retratada. Isso é ainda mais verdade nos trabalhos do Bavinsky porque as pessoas não são nem ao menos identificadas. Ele nunca pinta os rostos, ele pinta apenas versões engrandecidas de pequenas detalhes, ele está representando apenas a percepção dele, a leitura dele, a forma como ele vê. Em determinado trecho ele diz que séculos e gerações passarão e as pessoas continuarão vendo a partir dos olhos dele. É uma forma de ir além da própria mortalidade, a ideia de que se alguém vê o que ele vê, quando alguém estiver vendo por essa perspectiva dele é o ponto de vista dele que estará sendo incorporado.
Eu gostaria de saber mais sobre o crítico e jornalista especializado em arte. Ele me soou como uma crítica da sua parte em relação à crítica e aos críticos de arte.
Sim, definitivamente. É sempre divertido escrever personagens jornalistas por eu ter familiaridade com eles. No caso desse personagem, eu também vi uma oportunidade de expressar um pouco da minha irritação com a forma como matérias sobre arte são escritas, principalmente artes visuais, sempre repletas de absurdos, pretensão e arrogância. É enlouquecedor quando você gosta desses assuntos e vê a quantidade de besteira que é escrita. Basta você tentar ler algumas coisas escritas sobre artes em revistas muito proeminentes. Dá vontade de gritar. Não vou nem entrar no mérito daqueles textos impressos em paredes que você encontra em galerias. Eu me diverti ridicularizando um pouco isso tudo e mostrando como todo esse processo é muito corrupto. Todas essas revistas são voltadas para pessoas que querem comprar arte, que tem muito dinheiro e têm seus focos em galerias que querem vender arte. Esses artigos estão sempre servindo a esses dois propósitos e não à clareza, ao esclarecimento, à compreensão ou a qualquer outra coisa além da pretensão social desse joguinho.
Além de críticos aparentemente interessados em falar mais deles do que de seu próprio objeto de análise…
Sim, com certeza. Alguns casos são piores do que outros. Acho que uma das piores formas de crítica são aquelas feitas por pessoas de dentro da indústria sobre a qual estão escrevendo. Por exemplo, crítica literária feita por escritores. É algo extremamente perigoso, porque há muito em jogo ao se promover ao invés do foco em se escrever sobre alguma coisa. Haverá constantemente alguma espécie de perspectiva estética que eles vão querer impor, impedindo o despertar de qualquer outro estilo, a menos que seja de um amigo. É por isso que geralmente prefiro críticos profissionais ao invés daqueles de meio expediente, os críticos profissionais também tem seus vícios e seus preconceitos mas com o tempo você acabará tendo a oportunidade de descobrir quais são eles.