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Entrevistas / HQ

Papo com Glenn Head, autor de Chartwell Manor: “Me recuso a deixar minhas experiências passadas me dominarem ou me silenciarem”

Chartwell Manson foi uma das minhas leituras mais impactantes de 2022. O álbum narra as vivências de seu autor, o quadrinista Glenn Head, durante a infância, no internato que dá título à obra, e seus traumas como uma das vítimas do diretor da institução, o predador sexual condenado Terence Michael Lynch. Entrevistei Head sobre o livro, publicado em português pela Comix Zone, com tradução de Érico Assis, e transformei a nossa conversa em reportagem para o jornal Folha de S.Paulo (você lê o meu texto clicando aqui). Compartilho abaixo a íntegra do meu papo com o artista. Saca só:

“Foi estranhamente libertador desenhar esse pesadelo de terror gótico”

Chartwell Manor não é apenas sobre o seu período no internato, mas também sobre o impacto dessa experiência na sua vida e também na vida de seus colegas. Você já se pegou pensando em quem poderia ter sido, quem os seus colegas de Chartwell Manor poderiam ter sido, caso não tivessem passado pelos abusos que passaram?

É claro, ao olhar para trás, você sempre se pergunta sobre essas coisas, sobre o passado e como você poderia ser diferente caso não fossem certas experiências – especialmente aquelas mais traumáticas, como um abuso.

Uma coisa que foi muito positiva (uma das únicas coisas!) em ter passado por Chartwell foi que me ajudou a forjar a minha identidade como artista. Eu tinha um professor de inglês que me encorajava muito em relação à minha produção artística. Então, o que quero dizer é: por pior que Chartwell tenha sido, para todos nós que fomos lá, a vida é complicada! Por mais infernal que aquele lugar fosse, eu realmente saí de lá com algo bom. Um amor por desenhos que dura até hoje. Isso também aconteceu em Chartwell.

Mas, na verdade, Chartwell traumatizou todos nós. Todo mundo que eu conheci que passou por lá acabou com problemas de vícios em drogas. Alguns foram para a prisão ou cometeram suicídio. Alguns se tornaram abusadores. Mas também acho que na vida existem pessoas que são ‘jogadas debaixo do ônibus’ pela sociedade. Às vezes quando jovens. Se eles tiverem sorte, se eles não morrerem no caminho, eles saem apenas feridos, mas continuam. Assim como eu.

Eu sempre quero saber sobre o ponto de partida das obras que leio, sobre a inspiração do autor por trás de sua obra. Mas o seu livro é, essencialmente, sobre as motivações para a produção dele. Então eu gostaria de saber: o que significou para você publicar Chartwell Manor?

Publicar Chartwell Manor significou muitas coisas. Acima de tudo e mais importante, significou pegar essa experiência profundamente perturbadora e transformá-la em uma história em quadrinhos divertida e fascinante! Uma história que emociona, assusta e se prende a você… É motivo de orgulho para mim que muitas pessoas leiam Chartwell Manor em uma sentada só. Talvez pareça estranho falar sobre uma história de abuso dessa maneira, mas acredite em mim quando digo: se uma história em quadrinhos (graphic novel, sei lá) não diverte, está morta! E Chartwell não está morta.

A publicação de Chartwell também significou algo mais profundo: que me recuso a deixar minhas experiências passadas me dominarem ou me silenciarem. Quem tentar desenhar um livro como este ouvirá muitas vozes dizendo: ‘Não! Não desenhe isso, você não pode!!’. Bem, eu posso. E desenhei. 

“Nem todo mundo teve a saída criativa dos desenhos que eu encontrei”

Página de Chartwell Manor, obra de Glenn Head publicada pela editora Comix Zone (Divulgação)

Você pode contar um pouco por favor sobre seus sentimentos ao reviver todas as suas experiências em Chartwell Manor? Aliás, não só as suas, aquelas que seus colegas também viveram por lá, como crianças. Como o Glenn, hoje, aos 65 anos, se sentiu ao retratar todos esses crimes cometidos contra crianças?

Como eu me senti desenhando e revivendo essas experiências? Bem, digo que é estranho voltar no tempo e fazer essa viagem pela minha infância… Mas foi estranhamente libertador desenhar esse pesadelo de terror gótico. Colocar isso tudo no papel… Eu gostei! De verdade, foi a experiência mais divertida que já tive fazendo uma história em quadrinhos. Mas é bom esclarecer essa afirmação: não quis minimizar o sofrimento de ninguém que passou por Chartwell Manor. Nem todo mundo teve a saída criativa dos desenhos que eu encontrei. Vejo essas memórias como uma farpa que precisava sair. Foi muito libertador para mim encarar esse material da forma que encarei.

Também me fez sentir mal pelos meus amigos da época. Sinto como se fôssemos todos crianças rejeitadas. Crianças que os pais queriam largar em outro lugar.

Também queria saber sobre os seus métodos durante a produção do livro. Você chegou a finalizar um roteiro todo antes de começar a desenhar? O quanto de pesquisa esse livro exigiu além das suas memórias sobre os eventos ligados a Chartwell Manor?

O roteiro é de longe a coisa mais importante. A história inteira tem que estar muito bem resolvida antes de qualquer lápis. Eu vejo todo o processo como se estivesse fazendo um filme. Todos os bons filmes têm bons roteiros… É a mesma coisa com os quadrinhos. Escrever é fundamental!

 Minha esposa é uma ótima editora, então ela vê os rascunhos, as ‘falhas’ do livro, capítulo por capítulo, antes dos desenhos e da tinta. Eu ouço os conselhos dela. Ela é a melhor editora que já tive.

A maior parte da pesquisa tinha a ver com estudar crianças, não é como desenhar adultos, protagonistas da maior parte dos meus desenhos como cartunista. Tive que estudar as proporções para fazer direito. Também trabalhei com fotos quando necessário. Chartwell Manor é essencialmente realidade em quadrinhos, então tem que parecer o mais real possível!

No livro, você demonstra uma certa relutância inicial em contar a sua história em um quadrinho autobiográfico. Por que essa relutância? Aliás, o que você acha que faz um bom quadrinho autobiográfico? Você tem uma obra preferida desse “gênero”?

Minha relutância em fazer Chartwell Manor foi importante porque mostrou a dificuldade inerente em enfrentar o passado, especialmente os momentos mais dolorosos. Sinto que isso precisa ser ressaltado – que este é um material difícil. Não é fácil e não entrei nessa levianamente.

O que faz um bom quadrinho autobiográfico? Para mim tem que ter o que qualquer bom quadrinho tem: bom desenho, uma história bem escrita, algum humor, com a óbvia adição de ser profundamente tocante e pessoal. Não gosto de abordagens jornalísticas ou dia-a-dia-aqui-é-minha-vida-em-tempo-real para autobiografia, isso é chato! Olha, como eu disse antes, os quadrinhos são sempre entretenimento. Eles também podem ser muitas outras coisas, mas….

Meu quadrinho autobiográfico favorito é do Art Spiegelman, com o título Spiegelman Moves to New York Feels Depressed!. É uma história em quadrinhos de uma página, mas mergulha profundamente no isolamento e na ansiedade da vida urbana. Para mim é o quadrinho mais pessoal dele, é ele extremamente vulnerável.  Vulnerabilidade, aliás, é a chave para uma boa autobiografia. É óbvio.

“Os quadrinistas underground exigiam a liberdade para desenhar o que quisessem”

Página de Chartwell Manor, obra de Glenn Head publicada pela editora Comix Zone (Divulgação)

Chartwell Manor tem várias referências a quadrinhos underground dos anos 1970, principalmente aos trabalhos de uma geração quem tem no Robert Crumb seu maior expoente. O que mais te atrai, o que você vê de mais especial nos quadrinhos dos autores dessa geração?

As vozes individuais. A primeira coisa que realmente me impressionou, junto com as temáticas malucas, eram as singularidades de seus traços. Estranhos, idiossincráticos, primitivos, grosseiramente desenhados ou mais polidos (como Crumb), esses eram artistas que seguiam seu próprio caminho. A palavra-chave aqui: autonomia. Os quadrinistas underground exigiam a liberdade, o espaço, para desenhar o que quisessem. Essa liberdade, como a liberdade dos próprios artistas, era radical. Essa recusa em ser censurado, diluído, tornado respeitável, era muito parecida com outras formas de arte que me atraíam na época (na música e no cinema).

O ponto real, porém, é que o que esses quadrinistas underground fizeram foi seguir em frente. Eles abriram portas para outros artistas, como eu. Para levarmos as coisas ainda mais longe, se quisermos.

Aliás, você apresenta quadrinhos e música como grandes escapes para você em meio às suas vivências em Chartwell Manor e também em outras fases de sua juventude. Qual a importância de quadrinhos, música e artes em geral na sua vida? Ou melhor, o que quadrinhos, música e artes significaram para você durante essas experiências traumáticas da sua juventude?

Bem, o rock and roll é usado quase como trilha sonora de Chartwell Manor! A canção Jumpin’ Jack Flash [dos Rolling Stones] tem uma frase sobre ser ‘educado com uma alça nas costas’ – ela se encaixa perfeitamente no mundo do internato britânico em que eu estava no livro.

A cultura pop era muito importante para mim porque eu não gostava do mundo em que cresci:  internato e subúrbio, eu odiava tudo isso, então algum tipo de escapismo era necessário. De certa forma, não mudei… Acho que 90% do que acontece na vida é besteira, tento evitar a maior parte disso tudo me apegando ao que amo: quadrinhos, filmes, música, arte, livros e fotografia.

Eu fico curioso, quais são os seus sentimentos ao ver seu trabalho chegando no Brasil?

Bem, eu ainda não vi a edição brasileira, mas estou ansioso… Espero que alguém me envie uma cópia! Mas é claro, é muito emocionante ver meu trabalho traduzido. Chartwell Manor está em toda a Europa, e isso também é uma grande motivação para mim! Para um quadrinista, fazer seu trabalho e ser visto pelo maior número possível de pessoas, todos nós almejamos isso, né?

“Criminosos brincalhões, carismáticos, intimidadores e mentirosos parecem cada vez mais presentes na política”

Página de Chartwell Manor, obra de Glenn Head publicada pela editora Comix Zone (Divulgação)

Eu fiquei pensando sobre a figura de Terence Michael Lynch e ele me pareceu muito semelhante, em seus discursos e técnicas, com lideranças com discursos religiosos de extrema direita que parecem estar se proliferando ao redor do mundo. Você também vê esse paralelo? Como você acha que podemos não nos deixar enganar por figuras como ele?

Eu vejo esse paralelo, é claro! Criminosos brincalhões, carismáticos, intimidadores, maiores que a vida e mentirosos parecem cada vez mais presentes na política agora e, sim, Lynch também era uma força da natureza. E como ele, esses políticos são muito perigosos porque podem ser absurdos, até engraçados, mas o que eles fazem não é brincadeira. A única maneira das pessoas não serem enganadas por figuras assim é pensando por si mesmas, não se deixando enganar. Mas sempre haverá pessoas sendo enganadas.

Eu sempre fui bastante questionador. Eu tinha treze anos quando comecei em Chartwell. Se eu fosse mais jovem, teria sido pior para mim. De certa forma, consegui ver através de Lynch, quem ele realmente era. Com Lynch, aprendi sobre líderes carismáticos. Essencialmente, o que eles querem é que você seja o combustível em seu tanque no caminho para a glória. Eles ficam felizes em usar você e qualquer outra pessoa para chegar onde querem. A verdade é que mundo está cheio desse tipo de coisa. Nem precisa ser sexual. Mas sempre acaba sendo predatório.

Você pode recomendar algo que tenha visto, ouvido ou lido recentemente?

A graphic novel Maverix and Lunatix: Icons of Underground Comix, do Drew Friedman e recém-lançada, é uma das minhas favoritas do momento. Ele captura esse mundo louco dos quadrinhos dos anos 1960 com belos retratos de todos os artistas dessa época. Eu recomendo. É maravilhosa!

A capa de Chartwell Manor, obra de Glenn Head publicada pela editora Comix Zone (Divulgação)
Entrevistas / HQ

Papo com Joe Ollmann, autor de Pai de Mentira: “É melhor não olhar muito atentamente para a vida de seus heróis”

Pai de Mentira é uma das minhas leituras preferidas de 2022 até o momento. A obra recém-publicada em português pela editora Comix Zone, com tradução de Érico Assis, é a primeira do quadrinista Joe Ollmann lançada no Brasil. Entrevistei o autor e transformei esse papo em matéria para o site Revista O Grito! Contei por lá sobre as origens do livro, a trama da obra e a produção da HQ. Você lê o meu texto clicando aqui. Compartilho agora a íntegra da minha conversa com o autor. Saca só:

“Tiras de jornal sempre estiveram presentes na minha vida”

Quadros de Pai de Mentira, obra de Joe Ollmann publicada pela Comix Zone (Divulgação)

Pai de Mentira é uma história em quadrinhos sobre a relação entre um pai e seu filho e também sobre quadrinhos. Você poderia me contar um pouco sobre sua relação com seu pai e sobre a presença dos quadrinhos em sua vida? Qual é a sua lembrança mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?

É engraçado, ninguém tinha perguntado sobre mim e meu pai. Nós nos dávamos muito bem. Eu sinto falta daquele cara todos os dias. Então, não há paralelo entre Jimmi Wyatt e o meu pai. Acho que um livro sobre um bom relacionamento entre pai e filho seria chato. Quando meu pai estava doente, eu ia visitá-lo e ele foi um leitor de jornais a vida toda, incluindo os quadrinhos, e como ele tinha opiniões! Ele me fez voltar a ler tiras de jornais, e ele estava sempre certo sobre quais eram os bons.

Minha memória mais antiga dos quadrinhos é de quando eu tinha cerca de nove anos, meu pai e eu estávamos no carro esperando minha mãe e ele me mandou para a loja com um dólar. Comprei dois quadrinhos, um Homem-Aranha e um Capitão América do [Jack] Kirby, o que me deixou maluco. Mas aqueles quadrinhos eram como um relâmpago, eu não entendia nada do que estava acontecendo, mas queria saber tudo. A partir daquele momento, fiquei obcecado, gastei cada centavo que consegui ganhar, emprestar ou roubar em quadrinhos. Eu memorizava quem escrevia, desenhava e letreirava cada edição, as minhas irmãs me interrogavam sobre elas. Eu desperdicei o resto da minha vida em quadrinhos.

Também fico curioso sobre sua relação com tiras de jornais. Você teve alguma rotina específica de leitura de tiras de jornais durante sua infância? Quais foram as suas favoritas? Você ainda as lê?

Tiras de jornal sempre estiveram presentes na minha vida. Minhas favoritas eram Peanuts e Family Circus. Mais tarde, senti vergonha por gostar de Family Circus, mas Peanuts ficou comigo, funciona em tantos níveis que cresce com você, é apenas uma tira engraçada quando você é criança, e quando você é mais velho parece uma tipo de humor mais sofisticado, você entende melhor a compreensão de [Charles M.] Schulz sobre a natureza humana e eu suspeito que quando eu for ainda mais velho e mais sábio vai me parecer um koan zen [narrativa budista com o propósito de levar à iluminação espiritual]. É uma tira muito perfeita. Meu sonho sempre foi ter a série inteira de Peanuts em volumes idênticos e então a Fantagraphics publicou Peanuts Completo. Acho que posso morrer agora. Eu ainda leio tiras de jornal todos os dias. Eles são muitas vezes horríveis, mas ficarei muito triste se desaparecerem.

Como você diz em Pai de Mentira, a mídia impressa está em crise, cada vez menos gente lê jornais e o espaço destinado a tiras é cada vez menor. Como você analisa esse cenário? Tiras de jornais estão fadadas à extinção? A internet é a saída para esse tipo de formato?

Eu acho que é uma forma de arte antiquada, então é subvalorizada. Ironicamente, eles estão tornando os jornais fisicamente menores, o que torna, tanto os jornais quanto os quadrinhos, mais difíceis de ler para o público-alvo, que são os idosos. Quero dizer, os jornais estão lutando para sobreviver. Suspeito que, à medida que os baby boomers se extinguem, provavelmente também chegarão ao fim todos os meios de comunicação impressos. Eu sou mais velho, então não gosto de ler na tela do computador, mas há todo um outro mundo de quadrinhos diários sendo feitos na web, então os quadrinhos diários sobreviverão, apenas de outra forma. É interessante quando a web pega uma obra antiga e faz algo completamente novo com ela, como Olivia James fez com Nancy. Ela está desbravando novos caminhos e mantendo-se fiel ao espírito do original. Isso é raro, na maioria das vezes “atualizam” quadrinhos antigos adicionando elementos modernos, mas os criadores são velhos demais para entender as nuances da sociedade moderna. Seria mais digno permanecer em um passado clichê e antiquado.

“Também é uma carta de amor aos quadrinhos”

Página de Pai de Mentira, obra de Joe Ollmann publicada pela Comix Zone (Divulgação)

Gostaria de saber um pouco sobre o ponto de partida do Pai de Mentira. Você teve algum momento ou incentivo em particular para começar a desenvolver esta série?

Fui co-curador de uma grande exposição de galeria de arte de quadrinhos canadenses em 2019. Começamos a trabalhar nessa mostra quase dois anos antes da abertura, então por muito tempo eu estive completamente imerso em quadrinhos e pesquisas sobre quadrinhos. Eu visitei muitos estúdios de cartunistas, olhando seus originais e falando sobre quadrinhos e eu realmente percebi o quão sortudo eu sou por fazer parte deste mundo. Então eu acho que isso me fez pensar em fazer um livro sobre quadrinhos. Por mais que o livro seja sobre um pai e um filho, também é uma carta de amor aos quadrinhos em geral.

Você poderia me contar sobre sua rotina de criação de Pai de Mentira? Você teve alguma rotina específica ao criá-la?

Minha rotina é sempre a mesma. Foco com tudo na escrita. Eu escrevo e planejo e edito e reescrevo e imagino o que os visuais serão por meses antes de começar a realmente fazer os primeiros rascunhos. Eu sou um cara de texto e planejamento. Penso no que [Alfred] Hitchcock disse sobre seus filmes, sobre a diversão estar na escrita e no storyboard, sendo a filmagem um exercício mais técnico. Eu sinto isso, mas ainda gosto muito desse processo de desenho. Uma vez que começo a desenhar, trabalho todos os dias, de oito a 12 horas por dia. Embora eu tenha ficado um pouco preguiçoso durante os lockdowns da COVID e parasse muito cedo para ler quadrinhos e ouvir discos, o que provavelmente foi mais saudável. Essa merda toda de trabalhar até a morte por quadrinhos é loucura. Fique chapado e ouça discos!

Você poderia me falar um pouco sobre as técnicas e materiais que você usou em Pai de Mentira?

Desenho inteiramente à moda antiga, tinta no papel. Eu uso principalmente bico de pena Hunt 107. Anos atrás tomei uma decisão consciente de que era velho demais para aprender novas tecnologias, então abracei completamente uma abordagem manual para meus livros. Geralmente desenho tudo em meus livros, logotipos, etc., tudo exceto o código de barras. Com este livro sendo o meu primeiro em cores – e como mencionei na introdução, sou daltônico – então usei um sistema simples usando tintas de cores primárias e teoria básica das cores e pintei os livros dessa maneira. Alguém me disse, ‘eu gosto de como você fez as sombras do rosto ficarem verdes’, e eu fiquei tipo, ‘ah, eu fiz isso?’.

Pai de Mentira é tanto sobre história dos quadrinhos quanto a linguagem das HQs. O que mais te interessava em quadrinhos quando você começou a criar Pai de Mentira? Qual é o seu principal interesse em quadrinhos atualmente?

Como sempre, meu principal interesse está em histórias sobre pessoas. Eu gosto de coisas que estão enraizadas na realidade e se são meio tristes, ah cara, isso me deixa feliz. Há exceções para mim, às vezes leio coisas de gênero e gosto, mas sou atraído principalmente por coisas de gênero que estão arraigadas nos personagens. Finalmente comecei a ler Junji Ito durante a pandemia e estou obcecado. Eu amo essas coisas, mas, novamente, são personagens fortes em meio a todo aquele horror. 

“É melhor não olhar muito atentamente para a vida de seus heróis”

Página de Pai de Mentira, obra de Joe Ollmann publicada pela Comix Zone (Divulgação)

Fico curioso sobre suas pesquisas e estudos para criar Pai de Mentira. Você menciona especificamente a biografia de Charles M. Schulz do David Michaelis. Quais dos livros que você leu e usou como referência foram mais importantes para você?

Eu tinha lido o livro de Michaelis assim que ele saiu e o usei algumas vezes como referência enquanto escrevia, mas a maioria das coisas de quadrinhos em Pai de Mentira é apenas meu próprio conhecimento adquirido de uma vida desperdiçada obcecada por quadrinhos e cartunistas. A exceção foi o material de Dennis, O Pimentinha, como mencionei na introdução. Quando decidi incorporar isso na história, li muito, principalmente na internet e artigos de revistas antigas. Li muitos livros sobre o Schulz ao longo dos anos, mas não li profundamente sobre muitos outros cartunistas. Muitas dessas coisas vieram de fofocas de cartunistas que ouvi ao longo dos anos. Descobri que aprendo muito com aquelas longas entrevistas que o Comics Journal faz com quadrinistas. É uma chance real de entrar no processo de pensamento de um artista.

E de todas essas leituras e estudos (e também da experiência de escrever um livro inteiro sobre o tema), você vê algum padrão ou comportamento comum entre autores de quadrinhos em suas vidas pessoais? Quero dizer, eu ouço e leio muito sobre como pode ser solitário trabalhar como autor de quadrinhos e as condições profissionais nem sempre são as melhores… Não parece ser o melhor ambiente para a saúde mental, certo?

Não sei, a maioria dos quadrinistas que conheço não são diferentes dos contadores que conheço. Quando você diz às pessoas que você é um quadrinistas, às vezes há uma expectativa como, ‘ah caramba, esses caras vão ser um motim de risadas!’. Mas muitas vezes nem tanto. É definitivamente uma profissão solitária, não há feedback do público. É por isso que escrevo tantas cartas para quadrinistas, só para dizer que eles fazem um ótimo trabalho. Às vezes, um tapinha nas costas de um camarada é a única recompensa nessa coisa toda. Eu acho que as pessoas mais saudáveis ​​nos quadrinhos são aquelas que reduziram suas expectativas e apenas fazem quadrinhos porque amam fazer quadrinhos, porque financeiramente, pode ser muito sombrio na maior parte do tempo. Os quadrinistas muitas vezes ficam deprimidos com a falta de recepção de seu trabalho e se tornam amargurados. Eu apenas tento fazer meu trabalho e não penso na recepção. Só pode ser ruim para o trabalho se você começar a calcular o que vai chamar mais atenção e o que será melhor para o mercado. Quando você começa a antecipar a recepção do público, o trabalho vai perder.

Pai de Mentira mostra o passado pessoal deste autor famoso extremamente ausente como pai. Jimmi Wyatt é esse personagem repulsivo, mas seus fãs não o veem da mesma maneira. Ler e estudar sobre as origens dos autores de quadrinhos de alguma forma mudou a forma como você os percebe e percebe as obras deles?

Eu definitivamente sou uma daquelas pessoas que têm dificuldade em separar o artista da obra. Às vezes, é melhor não olhar muito profundamente para a vida de seus heróis, eles provavelmente o decepcionarão. Eu não acho que valha a pena tolerar o comportamento de nenhum “gênio”, em nenhuma arte, sabe? Fico chateado de verdade quando penso em Stanley Kubrick levando a pobre Shelley Duvall a quase um colapso mental no set de O Iluminado. Tudo isso para fazer um filme de terror medíocre com alguns cenários realmente memoráveis? Vale a pena? Provavelmente não. Quero dizer, pergunte à Shelley Duvall.

“Não posso acreditar na minha sorte com os quadrinhos”

Página de Pai de Mentira, obra de Joe Ollmann publicada pela Comix Zone (Divulgação)

Pai de Mentira foi bem recebido pela crítica, mas que tipo de retorno você teve de seus leitores? Existe alguma resposta particular à história de Caleb que de alguma forma chamou sua atenção?

Bem, os quadrinistas gostaram muito do livro, o que foi gratificante. Mas tiveram muitas entrevistas e cartas de pessoas discutindo o alcoolismo do Caleb e se relacionando de verdade com isso. Eu mesmo tive alguma experiência com bebida e sobriedade também, então acho que foi um pouco de escrever o que você sabe em um cenário ficcional. Mas fiquei grato que as pessoas acharam que isso foi bem tratado.

O que você pensa quando seu trabalho é publicado em um país como o Brasil? Você tem alguma curiosidade sobre como um livro que você fez será lido e interpretado em um ambiente tão diferente do seu?

Eu fui uma criança criada em uma fazenda. Toda vez que um dos meus livros é publicado em outro país e outro idioma, ou quando sou levado para algum evento de quadrinhos para falar sobre meus quadrinhos, sou como um caipira que acabou de cair de um trator. Não posso acreditar na minha sorte com os quadrinhos. Então, estou sempre animado em ser publicado em um novo país e em outro idioma. O mais interessante para mim na tradução é a arte de transferir piadas para algo que faça sentido em outra língua e cultura, dentro de outro contexto moral, com outra formação cultural. Fico sempre admirado com a arte de um bom tradutor. O Érico [Assis], que fez a tradução, me escreveu com perguntas e o nível de cuidado e detalhes que ele colocou foi surpreendente. Eu não leio português, mas tenho certeza que será uma ótima tradução!

Você poderia recomendar algo que você tenha lido/assistido/ouvido recentemente?

Acabei de reler toda a série Crickets, do Sammy Harkham, e precisei escrever uma carta para ele tarde da noite, fiquei muito impactado com tudo. Ele está fazendo coisas incríveis nessa série. Stone Fruit, de Lee Lai; Nod Away, de Josh Cotter; The Shiatsung Project, de Brigitte Archembault; e Keeping Two, de Jordan Crane, são coisas incríveis que li ultimamente. Tudo o que ouço hoje em dia é R&B dos anos 1970. Roberta Flack, Donnie Hathaway, Marvin Gaye, Isley Brothers, meu Deus, tão bom.

Você está trabalhando em algum novo projeto em particular no momento?

Contra todo o bom senso, estou trabalhando em uma coletânea de quadrinhos curtos. É sempre impopular, mas é o que eu tenho vontade de fazer, então estou seguindo meu próprio conselho e não pensando no mercado, risos. Mas estou me mantendo animado para descer as escadas e ir trabalhar nisso diariamente. 

A capa de Pai de Mentira, obra de Joe Ollmann publicada pela Comix Zone (Divulgação)


HQ / Matérias

Joe Ollman fala sobre “gênios”, família, tiras de jornal e Pai de Mentira

Conversei com o quadrinista canadense Joe Ollman sobre Pai de Mentira, obra recém-lançada em português pela editora Comix Zone (com tradução de Érico Assis). Uma ficção, o álbum conta a história de um suposto “gênio” do mundo dos quadrinhos Jimmi Wyatt, criador da tira Chapa & Chapinha, amado por várias gerações de leitores, mas ausente e abusivo entre seus familiares. A obra é narrada pelo ponto de vista do filho de Jimmi, Caleb Wyatt, artista frustrado e assombrado pela fama do pai.

Transformei esse papo com Ollman em matéria para o site Revista O Grito!, com algumas falas do autor sobre “gênios”, família, tiras de jornal e Pai de Mentira. Você lê o texto clicando aqui.