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Entrevistas / HQ

Papo com Afonso Andrade, coordenador do FIQ: “O FIQ, como um evento calcado nas artes, na educação, na diversidade e na liberdade de expressão, acaba por se tornar um ato de resistência”

Escrevi na terceira edição da coluna Sarjeta sobre os dois principais eventos de quadrinhos do Brasil em 2020, o FIQ, em Belo Horizonte, e a Bienal de Quadrinhos de Curitiba. A 11ª edição do evento na capital de Minas Gerais está marcada pra rolar entre os dias 27 e 31 de maio, sempre com entrada gratuita. Bati um papo com o coordenador do FIQ, Afonso Andrade, para saber mais sobre seus planos e expectativas para o evento.

Você lê o meu texto para a Sarjeta #3 ali no site do Instituto Itaú Cultural. Compartilho a seguir a íntegra da minha entrevista com o responsável pelo FIQ, na qual também conversamos sobre o impacto da crise econômica, social e política pela qual passa o país e o papel do mais tradicional evento de quadrinhos do país em um contexto de conservadorismo aflorado. Ó:

“A proposta do FIQ é apresentar um recorte da produção de quadrinhos no Brasil e no mundo”

Registro da edição de 2018 do FIQ (Divulgação/Glenio Campregher)

O FIQ é hoje o maior e mais importante evento de quadrinhos do Brasil, mas a proporção e a relevância do evento foi algo construído com o tempo. Qual balanço você faz hoje do que o FIQ era quando surgiu, em 1999, e hoje, como esse grande marco bienal das HQs nacionais?

O FIQ surge em 1999 a partir da realização, em Belo Horizonte, no ano de 1997, da 3ª Bienal Internacional de Quadrinhos. Então podemos dizer que, de 1999 a 2005, o FIQ segue a linha da Bienal, muito focada em exposições e  convidados. É também um período de transição no mercado de quadrinhos. As publicações começam a migrar das bancas de revistas para as livrarias e a auto-publicação. A partir de 2007 o festival sofre várias mudanças que levam a sua consolidação como um grande evento para o mercado de quadrinhos e  para a cidade:

-Mudança para  a Serraria Souza Pinto: local com melhor estrutura, maior e que por sua localização gera mais visibilidade;
-Comunicação do evento: o festival passa a ter um foco maior em dialogar com a cidade e pensar no festival como um espaço de formação de leitores e difusão dos quadrinhos para um público além do habitual; 
-Ampliação da participação dos quadrinistas independentes através da  criação de um canal de diálogo direto com quadrinistas de BH e do Brasil e  da participação destes como convidados e expositores;
-Visitação escolar: abertura do festival para a visitação e participação em atividades  de escolas e grupos, como parte da política de formação de leitores. 

A partir daí o FIQ fortalece sua posição como um evento importante no calendário cultural da cidade, sendo, inclusive, sua realização objeto de lei municipal, em 2017. 

O número de exposições diminui, cedendo espaço para quadrinistas que podem apresentar suas publicações e interagir com o público. Mas atividades interativas e de formação crescem, como a rodada de negócios.   O festival tem tido cada vez maior a participação de quadrinistas de todo Brasil, como expositores e/ou convidados. Em 2018 foram mais de 500, vindos de 19 estados e do Distrito Federal. 

Uma das marcas do FIQ está na abertura aos mais diversos estilos e gêneros, na recepção à diversidade das HQs nacionais. Você consegue definir a linha editorial-curatorial do FIQ indo além desse filtro? Como você define o recorte que o FIQ faz e apresenta hoje em termos de autores e publicações?

A proposta do FIQ é apresentar um recorte da produção de quadrinhos no Brasil e no mundo. São duas linhas de “curadoria”, a escolha de convidadas e convidados e temas dos debates e a seleção para a ocupação do “artist alley” e estandes. A curadoria indica quem será convidado, a partir de alguns parâmetros definidos em conjunto com a coordenação do evento: equilíbrio de gênero; representatividade racial e LGBTQ; diversidade de estilos e propostas artísticas; diversidade regional; Mix de quadrinistas veteranos  e novatos; Atenção especial a quadrinistas de Belo Horizonte. A seleção para o artist alley e estandes também segue essa linha. Com isso conseguimos apresentar um painel bem interessante de autores e publicações. Em 2018, somando convidos e expositores, tivemos cerca de 500 quadrinistas presentes, apresentando suas publicações e trabalhos, com o lançamento de, aproximadamente, 300 publicações inéditas ou recentes. 

“Com tanta instabilidade no país, a estratégia é fazer o planejamento e ir lidando com as ‘crises’ na medida do possível”

Registro da edição de 2018 do FIQ (Divulgação/Glenio Campregher)

Quais são as suas expectativas para o FIQ de 2020? Tem alguma novidade ou informação inédita que você já pode adiantar sobre essa 11ª edição?

A expectativa é boa, temos o respaldo institucional e financeiro Prefeitura de Belo Horizonte  realizadora do evento através da Secretaria Municipal de Cultura e Fundação Municipal de Cultura Estamos na fase de planejamento inicial do festival, mas já anunciamos a data do festival que será de 27 a 31 de maio de 2020.

Belo Horizonte é um dos principais pólos das HQs nacionais por conta do FIQ, mas há na cidade uma cena crescente de feiras e eventos de quadrinhos e publicações independentes, vários deles inclusive bancados por editais públicos e leis de incentivo. Você nota essa movimentação crescente em BH? Se sim, o que você acha que impulsiona essa agitação?

Sim, tem crescido o número de feiras dedicadas aos quadrinhos, publicações independentes  e artes gráficas. A cidade já tem uma tradição de feiras livres de artes que vem de muitos anos. Porém, acredito que seja um fenômeno nacional, uma vez que vemos acontecer em outras cidades do país. As feiras são um espaço alternativo aos meios  tradicionais de comercialização das publicações e produtos gráficos. Elas permitem um contato direto entre o artista e o público, proporcionando um diálogo e uma troca, que vai além da simples observação do objeto. Além disso, eliminam um gargalo que é a distribuição, um grande dificultador para quem produz sem um aporte de uma grande editora ou distribuidora. 

“O país vive um retrocesso civilizatório”

Registro da edição de 2018 do FIQ (Divulgação/Glenio Campregher)

Como a crise econômica, social e política que assola o país, somada à crise do mercado editorial, tende a impactar a realização do próximo FIQ?

A curto prazo o impacto maior é econômico. Com a crise, os municípios arrecadam menos e, consequentemente, o orçamentos de todos os órgãos e projetos tem que ser revisto. Além disso, o patrocínio privado também é impactado, assim como as leis de incentivo à cultura. 

O mercado editorial já vive em crise há alguns anos, especialmente por conta do esgotamento do modelo de grandes redes de livrarias. 

Porém é muito difícil prever como estará o país em maio de 2020 e se teremos mais alguma crise no caminho até lá. Com tanta instabilidade no país, a estratégia é fazer o planejamento e ir lidando com as “crises” na medida do possível. 

Desde o dia 1º de janeiro de 2019 o Brasil é governado por um presidente de extrema-direita, militarista, pró-tortura, fascista, misógino, machista, xenófobo, homofóbico e racista que reflete muito do que é a nossa sociedade hoje. Qual você considera o papel de um festival como FIQ dentro desse contexto? 

O país vive um retrocesso civilizatório.  Assistimos a diversas tentativas de censura à produção artística e ao livre pensamento, baseadas em preconceitos, ideias autoritárias e anti-científicas. O FIQ, como um evento calcado nas artes,  na educação, na diversidade e na liberdade de expressão, acaba por se tornar um ato de resistência nessa conjuntura. 

Registro da edição de 2018 do FIQ (Divulgação/Glenio Campregher)
HQ / Matérias

Sarjeta #3: 2020 é ano de FIQ e Bienal de Quadrinhos de Curitiba

Está no ar a terceira edição da Sarjeta, minha coluna mensal sobre quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural. Aproveitei a proximidade de 2020 para escrever sobre os dois grandes eventos de quadrinhos marcados para o próximo ano no país, o Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), em Belo Horizonte, e a Bienal de Quadrinhos de Curitiba.

Conversei com os responsáveis por cada um dos festivais, Afonso Andrade, coordenador do FIQ, e Luciana Falcon, coordenadora do evento paranaense. Falo um pouco sobre o que o público pode esperar de cada evento e apresento as expectativas dos organizadores dos dois festivais. Na entrevista que fecha a coluna, bati um papo com o quadrinista Batista, autor da HQ Máquina de Lavar.

Você lê a terceira Sarjeta clicando no link a seguir: Sarjeta #3: 2020 é ano de FIQ e Bienal de Quadrinhos, os principais eventos do calendário nacional de HQs.

(crédito da imagem que abre o post: Divulgação/Glenio Campregher)

Entrevistas / HQ

Papo com Dave McKean, o capista de Sandman e autor de Black Dog: “A arte é uma máquina de empatia, ela permite que enxerguemos pelos olhos de outras pessoas – algo importante como nunca”

O quadrinista britânico Dave McKean veio ao Brasil para o lançamento da edição nacional de Black Dog: Os Sonhos de Paul Nash. O livro foi publicado pela editora DarkSide Books e terá uma sessão de autógrafos com a presença do autor na próxima quinta-feira, dia 7 de junho, no Rio de Janeiro (você confere outras informações sobre o evento por aqui). Dias antes da chegada de McKean ao país e de sua passagem pelo Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) em Belo Horizonte, fiz uma longa entrevista por email com o autor. O papo virou matéria para o UOL, que você lê aqui.

Reproduzo a seguir a íntegra da nossa conversa. Um papo sobre Paul Nash, Black Dog, extremismos, tecnologias, super-heróis, música e arte. Saca só:

Você se lembra da primeira vez que ouviu falar do Paul Nash? Você se lembra das suas primeiras impressões sobre o trabalho dele?

Eu cresci próximo de Cookham, local no qual o Stanley Spencer viveu e pintou durante toda a vida. O Spencer estava no Slade com o Nash e um grupo importante de jovens artistas que se tornaram os primeiros modernistas britânicos. Inspirados por influências vanguardistas da Europa, eles abordavam temas referentes aos século 20 e brincavam com Expressionismo, Vorticismo, Surrealismo e todas as outras escolas que estivessem por perto, tentando dar sentido a um mundo moderno mecanizado. Então eu soube sobre o Nash quando ainda era muito jovem, e ele também nasceu perto do local onde eu cresci, por isso eu conhecia muito bem as paisagens e as árvores que ele pintava. Eu acredito que provavelmente preferia outros artistas quando era mais jovem – com trabalhos mais estilizados e obviamente com imagens mais surrealistas. Foi apenas muito tempo depois que eu comecei a apreciar o poder simbólico e a objetividade de suas pinturas da Primeira Guerra Mundial.

Como veio o convite para você criar esse livro? Você teve alguma reserva em criar um livro sobre um artista sendo você também um artista?

Eu fui procurado pela 14-18 Now Foundation de Londres para propor uma graphic novel e um projeto de performance com algum foco na Primeira Guerra Mundial. Eles encomendaram cerca de 20 obras de arte de diferentes mídias a cada ano entre 2014 e 2018 para marcar o centenário da Grande Guerra. Eu imediatamente pensei que gostaria de concentrar na experiência de um homem, nada na escala da guerra ou relacionado a aspectos geo-políticos, tecnológicos ou de batalhas, mas apenas pensar em em alguém indo àquele contexto, a primeira guerra mundial e industrial moderna. Eu achei que seria interessante ver isso tudo sob a perspectiva de uma pessoa criativa, fosse um escritor, um poeta ou um artista. O Nash me pareceu o mais poderoso desses artistas da Primeira Guerra Mundial. Não o melhor tecnicamente, também não era o mais extrovertido e nem um homem que viveu uma guerra dura, mas por algum motivo ele foi aquele que conseguiu encontrar uma linguagem para expressar a brutalidade e o niilismo não apenas da Primeira Guerra Mundial, mas de qualquer guerra – as imagens dele ainda são relevantes nos dias de hoje. E ele encontrou a própria voz nas trincheiras. Ele foi a Ypres como um simbolista romântico em crise e retornou para a Inglaterra transformando, raivoso, socialista e motivado por mostrar seus conterrâneos o que era passar por aquele inferno. Então foi uma escolha inteiramente minha e não tive qualquer preocupação em relação a representar a vida de outro artista. Foi quase o contrário, eu senti uma conexão intensa com o Nash por causa do passado da família dele e por ele ter vivido e trabalhado em lugares que eu conheço muito bem, além do desejo dele de expressar a própria consciência em seu trabalho. Nenhuma das paisagens dele eram realmente realistas, elas são sonhos ou interpretações psicológicas do mundo real mescladas com os sentimentos dele.

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“Eu sempre vou ao roteiro e pergunto o que ele deseja. Eu não tenho um estilo, eu apenos uso qualquer coisa que a história pedir”

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E foi difícil criar um diálogo entre a sua arte e a do Paul Nash? Aliás, foi desafiador criar esse diálogo e não se limitar a ser uma homenagem ao trabalho dele?

É realmente um diálogo. Eu li tudo o que poderia encontrar do Nash e fui ver vários dos trabalhos dele nas salas do acervo do Imperial War Museum. Então eu tive uma impressão bem completa do homem, como ele pensava e como escrevia para outras pessoas – ele era um pródigo escritor de cartas. Quais eram os demônios internos dele, suas ansiedades e como eles expressava todas essas coisas em seu trabalho. Já que já existia muito material biográfico e autobiográfico sobre o Nash, eu decidi estruturar o livro como uma série de sonhos. As pinturas do Nash são cenários de sonhos – são espaços construídos a partir de de diferentes observações e depois misturados com as ansiedades problemáticas dele. Pensei que cada capítulo poderia ser uma sonho sobre um momento crucial da vida dele durante esses anos de formações, desde pouco antes da guerra até alguns anos depois. Eles podiam ser uma terra de ninguém na qual eu poderia falar com ele e fazer perguntas e tentar compreendê-las às minha maneira – por exemplo, por que ele nunca mais desenhou ou pintou pessoas após encerrar as encomendas que recebeu focadas na guerra?

Você tem um estilo muito característico, mas as suas técnicas e a sua arte variam bastante de livro para livro. Como você definiu as técnicas e os estilos que utilizaria em Black Dog? Você poderia falar um pouco sobre como define suas técnicas e estilos de trabalho pra trabalho?

Eu sempre tento encontrar um tom de voz favorável à atmosfera, ao clima e ao panorama emocional de cada livro. Cada capítulo e cada sonho de Black Dog são muito diferentes. Alguns tratam das brincadeiras de infância dele com o irmão John, imaginando árvores como gigantes e guardiões. Outros capítulos envolviam a passagem enevoada das docas de Southampton para a França, a vida nas trincheiras, o cumprimento de ordens e a busca por alívio nos detalhes da natureza em meio a um campo de batalho desolado. Cada um desses cenários é um espaço físico e emocional específico, então eu realmente precisava encontrar a forma certa de apresentar visualmente cada capítulo, capturar o clima e expressar as emoções. Um porto sujo e com neblina parece como acrílico e grafite em papel de aquarela amassado. o barulho de um grupo de estudantes em Londres em um pub parece mais detalhado, com linhas de caneta e traços mais bem definidos nos copos e nas decorações do lugar. Então eu sempre vou ao roteiro e pergunto o que ele deseja. Eu não tenho um estilo, eu apenos uso qualquer coisa que a história pedir.

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“Não podemos esquecer que liberdades que tomamos como garantidas na verdade vieram sob um custo imenso. A arte é uma máquina de empatia, ela permite que enxerguemos pelos olhos de outras pessoas – algo importante hoje como nunca”

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Você pode descrever cada etapa da criação de Black Dog?

Eu fiz muita pesquisa e várias anotações e depois reuni todas essas anotações em pequenos arcos narrativos que iriam compor cada capítulo. Cada parte precisava apresentar um ponto importante da vida do Nash durante esses anos de guerra. Eu comecei escrevendo a narração e os diálogos sempre que parecia apropriado, tirando frases das cartas dele e imaginando uma conversa em fluxo dentro dessas circunstâncias. Parte da narração eu pensei que poderia refletir os hábitos inicias dele de escrever versos poéticos em seus desenhos. Esse texto virou letra das músicas para a parte de performance desse projeto. Quando tinha um capítulo já mais bem desenvolvido, eu rascunhava como as páginas ficariam e depois as desenhava ou pintava. Algumas dessas páginas eu precisava refazer enquanto buscava o estilo certo que o roteiro pedia. Mas uma vez que já tivesse um ou dois painéis bem resolvidos, o resto fluia muito bem. Eu mantive o processo muito aberto e improvisei até o final. Eu ainda estava reescrevendo e reformatando o final do livro até os últimos dias. Isso me permitiu fazer todo tipo de conexão que eu tenho certeza que teria deixado passar se tivesse tudo fechado logo no início do processo.

De quais aspectos de Black Dog você tem mais orgulho?

De vários na verdade. Eu acho que pode ser o livro do qual tenho mais orgulho. Eu acho que o tema dele valeu o meu investimento e o Nash é um artista que merece ser mais conhecido – ele é completamente desconhecido fora da Inglaterra. Eu gosto de várias das artes e acho que o padrão das ilustrações e da narrativa são bons. Eu amei ter escrito e me senti estimulado a continuar escrevendo os meus próprios livros e também fiquei muito feliz por ser parte de um projeto tão forte envolvendo outros artistas. A apresentação ao vivo ocorreu no Tate, no memorial Somme em Amiens e também repetimos em vários festivais desde então. Esse lado do projeto tem sido maravilhoso e, outra vez, muito estimulante a continuar compondo e escrevendo músicas.

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“A terra é uma bagunça cada vez maior, precisando de soluções globais. Nacionalistas não acreditam em soluções globais, então não acreditam em problemas globais, por isso eles ignoram as evidências e contorcem a verdade para que ela fique coerente com a perspectiva insular de mundo que possuem”

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O Paul Nash parecia muito atormentado pelos tempos de guerra nos quais ele viveu, principalmente pelo que testemunhou no exército. Estamos vivendo um período muito belicoso da humanidade. Quais lições você acredita que podemos tirar das artes e das vivências do Paul Nash?

Que guerras precisam ser evitadas. Há falcões no poder no momento que nunca viveram em períodos de guerra e estão começando a sentir que esse possa ser uma forma legítima de lidar com desentendimentos. Após à Segunda Guerra Mundial, tivemos um senso social crescente de que deveríamos nos ajudar e oferecer apoio uns aos outros – o nascimento do NHS e outros programas sociais no Reino Unido e o empenho para unificação da Europa. Estamos começando a esquecer essas coisas e as pessoas estão novamente se escondendo sob argumentos nacionalistas e egoístas. É por isso que memoriais, comemorações e o hábito de contar essas histórias desses períodos são tão importantes, não podemos esquecer que essas liberdade que tomamos como garantidas na verdade vieram sob um custo imenso. A arte é uma máquina de empatia, ela permite que enxerguemos pelos olhos de outras pessoas – algo importante hoje como nunca.

Sobre esse mesmo período atual de extremismos: os cidadãos do Reino Unido estão testemunhando um crescimento de ideias conservadoras e xenófobas – aliás, algo que parece estar ocorrendo no mundo inteiro. Você é otimista em relação ao nosso futuro?

Não muito. Isso é algo em certo nível geracional. Eu fico emocionado que a geração dos meus filhos esteja muito mais tranquila em relação a questões de identidade cultural, identidade sexual e mudanças tecnológicas. A maior parte deles votou (se tiver votado) para que continuássemos na Europa e continua a votar por iniciativas e partidos mais responsáveis socialmente. Então os reacionários egoístas e cegos vão desaparecer e espero que uma geração mais esclarecida fique com o poder. No entanto, pode ser que não estejamos vivos para testemunhar isso. A terra é uma bagunça cada vez maior, precisando de soluções globais. Nacionalistas não acreditam em soluções globais, então não acreditam em problemas globais, por isso eles ignoram as evidências e contorcem a verdade para que ela fique coerente com a perspectiva insular de mundo que possuem. Eu acredito que as distorções decorrentes da internet em tudo são as questões mais alarmantes do momento. Sem dúvida tivemos muitos benefícios com a conectividade, mas estamos recusando a lidar com o impacto negativo da perda de confiança e compreensão do mundo real. Trump, Putin e outros são as criaturas de um mundo incapaz de separar realidade de ficção. Isso me fez mais determinado do que nunca para ficar do lado que acredito ser o certo. Eu costumava achar que a fantasia e ficção eram benignas, agora eu acho que são mais insidiosas do que isso.

Você tem muitos trabalhos em parceria com escritores, pensadores e artistas incríveis. Black Dog é um trabalho solo. É muito diferente para você criar algo individualmente e em parceria com outra pessoa?

É maravilhoso passar alguns períodos no universo de outra pessoa, mas é muito mais recompensador ilustrar meus próprios roteiros. Eu tenho a liberdade de ir aonde o roteiro me levar.

Sobre essas parcerias: imagino que sejam experiências muito interessantes, poder criar e dialogar com autores como Neil Gaiman, Richard Dawkins, Tori Amos, Alice Cooper, Alan Moore, Iain Sinclair… Como você define essas experiências? Alguma específica dessas teve algum impacto maior em particular em você?

Elas são todas muito diferentes. Foi maravilhoso trabalhar durante um ano com o Richard Dawkins e ele teve um impacto enorme no direcionamento do meu trabalho em relação à ciência e à realidade. No ano seguinte eu passei com a Wildworks e o Michael Sheen dirigindo The Gospel of Us e participando do projeto Passion of Port Talbot, uma reconstrução secular da história da Páscoa. Trabalhar com o Bill Mitchel na Wildworks mudou completamente a minha forma de trabalhar, longe da busca obsessiva por controle total e em busca de uma abordagem mais divertida e improvisada no desenvolvimento de um projeto.

Você fez capas para CDs e também é músico. Como é para você o trabalho de criar esse tipo de capa? Que tipo de diálogo você tem com as bandas e os artistas antes começar a criar?

Também são todos muito diferentes. Alguns gostam de me deixar trabalhar sozinho e aí eu crio o que considero o que melhor captura o clima da música. Alguns gostam de ser mais participativos, oferecendo ideias que eu possa desenvolver. Eu não me incomodo com nenhuma das duas formas. São geralmente projetos curtos, então fico feliz em explorar uma atmosfera durante um ou dois dias antes de retornar ao meu próprio mundo.

Alguns de seus trabalhos mais famosos foram as capas de Sandman. O quanto esses trabalhos foram importantes para a sua carreira? Você pode falar um pouco da dinâmica da sua parceria com o Neil Gaiman?

Elas acabaram se tornando um diário de sete anos, enquanto eu explorava ilustração, fotografia, colagens, designs, desenhos e ferramentas digitals. Era ótimo ter uma janela inteira todo mês para experimentar algo novo, ilustrando um arco longo de histórias aberto à minha interpretação. Quando começamos eu tinha acesso às páginas internas, mas no final eu só tinha uma ou duas linhas de descrição do que aconteceria nos meses seguintes. É surpreendente como as capas acabaram casando tão bem com as páginas internas, principalmente por eu ter poucas referências com as quais trabalhar.

E qual você considera a principal diferença de criar a capa de um livro, de um disco e de um quadrinho?

Elas são semelhantes por serem todas janelas para o conteúdo da obra, o primeiro ponto de conexão entre um consumidor potencial e o conteúdo. Elas servem como filtros pelos quais ouvimos as músicas ou começamos a ler um livro. Eu acho que elas funcionam melhor quando são abertas e simbólicas, ao invés de pedantemente descritivas.

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“Eu ainda faço trabalhos para um mundo físico e não estou interessado em adaptar o que eu faço para o que me parece ser uma experiência virtual muito limitada”

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Estamos vivendo em tempos muito digitais. Ebooks, webcomics e arquivos de músicas ainda têm capas, mas é uma relação distinta entre esses produtos e seus consumidores. Essa diferença é muito grande pra você, não apenas como um criador, mas também como leitor, ouvinte e consumidor?

Eu ainda sou um grande consumidor dos objetos físicos. Eu compro CDs, blu-rays e livros. Eu não leio em tablets e não faço download de música. Eu prefiro música que tenha contexto, que seja parte de um corpo de trabalho de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, de uma localização geográfica específica, de um período histórico específico e que seja conectado a outros criadores em uma rede de conexões e forças sociais – música é uma forma de aprender sobre o mundo, não apenas uma amontoado aleatório de sons. Eu prefiro livros que venham com espíritos, cheiros e artisticamente trabalhados. Eles crescem e envelhecem comigo. Eu tenho consciência que gerações mais novas que não tenham crescido tão apegadas em um mundo de objetos físicos não tenham essas mesmas conexões emocionais, mas temo que é assim que me sinto sobre isso. Então eu ainda faço trabalhos para um mundo físico e não estou interessado em adaptar o que eu faço para o que me parece ser uma experiência virtual muito limitada. Eu acredito que a realidade virtual é um meio imensamente promissor, mas precisa ser explorado como uma linguagem independente, não como a adaptação de um filme ou livro. São linguagens completamente diferentes – um livro ou um filme são formas narrativas, realidade virtual não, ela tem uma natureza exploratória.

Você pode falar um pouco sobre as principais diferenças e semelhanças entre criar uma ilustração, fazer um quadrinho, escrever uma música e gravar um filme?

Apenas observe as qualidade intrínsecas de cada um desses formatos. Ilustrações são expressões curtas de ideias estáticas, um quadrinho expande isso para sequências narrativas, para que você possa explorar emoções e ideias de forma muito mais extensas. Música é abstração, é provavelmente a forma de arte mais poderosa por ultrapassar todas as lógicas e despertar conexões emocionais instantâneas. Filmes são massivamente complexos e estão constantemente comprometidos, mas quando funcionam podem recriar versões do mundo em formar extraordinariamente vívidas – talvez o mais próximo que existe de um sonho.

Você tem todas essas áreas de interesse e atuação. Você consegue definir o que você faz em uma única palavra? Qual você considera ser a sua profissão?

Eu tento não fazer isso. Os italianos têm uma palavra, ‘creativo’. Fico feliz com ela.

O seu trabalho ficou famoso nos Estados Unidos principalmente por conta de suas parcerias com o Neil Gaiman em Sandman e Orquídea Negra e com o Grant Morrison em Asilo Arkham. Como foi para você essas primeiras experiências no mercado editorial norte-americano? Foi um período muito produtivo para você e seus colegas britânico, correto?

Foi um grande momento para entrar nessa área, os editores estavam em busca de novas vozes e nós trouxemos um frescor europeu e uma arrogância juvenil para o mercado. A maioria dos meios têm esses momentos de ouro, quando estão afundando e precisam de rejuvenescimento, e se você tiver sorte pode encontrar um lugar para brincar, se divertir e começar uma carreira. Mas esses momentos nunca duram. Eventualmente, as companhias acabam definindo seus trabalhos por termos financeiros e esse momento de liberdade e anarquia criativa chega ao fim. Eu gostei de fazer esse trabalho e de conhecer essas pessoas, mas eu precisei seguir com a minha vida depois de alguns anos – fazer esses trabalhos deixou de ser um interesse real para mim.

Você não fez muitos quadrinhos de super-heróis, mas ilustrou muitos livros publicados por essa indústria. O que você acha da indústria norte-americana de quadrinhos e seus super-heróis nos dias de hoje?

Eu acho que são uma imensa porcaria – um veneno que destruiu o meio dos quadrinhos nos Estados Unidos e agora arruinou a indústria de cinema. São fantasias de poder de crianças para uma cultura infantilizada e amedrontada. Muito deprimente.

O que mais te interessa em artes gráficas e no mundo dos quadrinhos hoje? Há algum tipo particular de trabalho ou algum artista que te interessa mais atualmente?

Com exceção dos quadrinhos mainstream da Marvel e da DC Comics, os quadrinhos estão passando por uma era de ouro de criatividade. Todas as novas vozes estão sendo ouvidas ao redor do mundo e sendo expressas em estilos sem qualquer peso nostálgico de quadrinhos antigos. Eu continuo encontrando novos artistas para exaltar, de Mattotti a Jorge Gonzales, do Pedrosa ao Auladell.

O que você pensa quando um trabalho seu é publicado em um país como o Brasil? Somos todos ocidentais, mas vivemos culturas muito diferentes. Você tem alguma curiosidade em relação à forma como um trabalho seu será lido e interpretado por pessoas de um ambiente tão diferente dos seu?

Óbvio, é maravilhoso ver como os livros serão recebidos. E também incrível ver como livros estão sendo criados em outros trabalhos. Eu sempre tento encontrar uma loja local de CDs em qualquer lugar que eu vá e pergunto por recomendações de lançamentos musicais locais.

No que você está trabalhando atualmente? Você tem algum livro novo nos seus planos?

Eu estou finalizando um livro de pinturas e ilustrações inspiradas em filmes mudos, eu acabei de terminar um livro com o escritor americano Jack Gantos, eu estou para começar uma graphic novel que escrevi sobre natureza, luto e monstros (da espécie política). Eu ainda estou trabalhando em Caligaro, minha graphic novel inspirada em O Cabinete do Dr. Caligari. E também tenho algumas outras coisas em andamento, incluindo um novo filme chamado Wolf’s Child.

A última! Você pode recomendar algo que esteja lendo/assistindo/ouvindo no momento?

Eu tenho lido muitos textos sobre viagens e natureza, principalmente do Patrick Leigh Fermor e Robert Macfarlane. Eu costumo assistir a documentários ao invés de assistir a dramas na TV, então deixei passar várias das séries mais populares. Eu tenho gostado de séries escandinávas noir como The Bridge. O meu gosto por filmes mudou muito, estou cada vez mais impaciente com coisas mainstream pré-digeridas e formatadas. Todos esses filmes me parecem a mesma coisa para mim. Então eu tendo a buscar vozes singulares como Herzog, Enyedi e Svankmajer, e é ótimo encontrar vozes originais em filmes como Três Anúncios Para Um Crime e um favorito recente, The Mountain. Música? Praticamente qualquer coisa, me principalmente música ambiente e orquestras. Jazz europeu e escandinavo, a música folk contemporânea está passando por um renascimento no Reino Unido no momento.

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Um vídeo sobre a importância do FIQ para a cena brasileira de quadrinhos

No auge da tensão sobre a possível não realização do FIQ em 2017, o pessoal da Pulo Comunicação criou uma campanha de financiamento coletivo para a produção de um vídeo ressaltando a importância do evento para a cena brasileira de quadrinhos. Mesmo com o anúncio recente do retorno do Festival à programação da Prefeitura de Belo Horizonte, os responsáveis pela campanha fizeram muito bem em dar continuidade à produção da obra.

O vídeo tá finalmente no ar. Um trabalho excelente e essencial, com depoimentos de gigantes como Shiko, Pedro Cobiaco, Jão, Rafael Coutinho, Dandara Palankof, Janaina de Luna e Paulo Floro. Assistam e compartilhem por aí:

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Ajude a bancar a produção de um vídeo para registrar a importância do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ)

O pessoal da Pulo Comunicação lá de Belo Horizonte colocou no ar uma campanha de financiamento coletivo para a produção de um vídeo com depoimentos de vários agentes culturais do Brasil, para registrar a importância do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) – pra você que pegou o bonde andando, o evento corre risco de não rolar em 2017.

O crowdfunding é iniciativa das duas cabeças da Pulo, a jornalista Helen Murta e o quadrinista Jão. Os dois estarão na CCXP Tour em Recife e vão aproveitar a deixa pra recolher alguns desses depoimentos por lá. Acho uma sacada bem boa e uma investida bem massa. Ter uma manifestação como essa registrada em vídeo pode ampliar bastante o apelo pela continuidade do FIQ. Eles tão pedindo R$2 mil pra tirar a ideia do papel. Eu já investi. Quem mais topa? Clica aqui.

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Proteste a favor do FIQ na página da Prefeitura de Belo Horizonte no Facebook

O professor e jornalista Paulo Ramos deu o alerta: está ameaçada a edição de 2017 do FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos), o maior festival de quadrinhos da América Latina. Segundo o relato compartilhado na noite de ontem por Ramos, a Prefeitura de Belo Horizonte não incluiu o evento na verba de cultura do município para este ano. “Apesar de constar na programação das atividades culturais de 2017, o evento não foi incluído na relação de itens a serem custeados pelo município, divulgada em audiência pública, realizada na capital mineira nessa quarta-feira (05.04). Não por coincidência, data do festival, um dos mais importantes do país, ainda não foi confirmada pela organização. O FIQ ocorre a cada dois anos, sempre no segundo semestre”, explica o pesquisador.

A reação por parte de quadrinista, editores e leitores foi imediata. A principal ação até o momento é uma série de questionamentos publicados no espaço de comentários de um post na fanpage da Prefeitura de Belo Horizonte. As críticas são enfáticas e extremamente fundamentadas, ressaltando o absurdo de não investir em um dos mais relevantes eventos de cultura do país. Deixe aqui o seu protesto.