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Entrevistas / HQ

Papo com Marcelo D’Salete, autor de Mukanda Tiodora: “Não podemos imaginar um governo contra as populações negras, quilombolas, indígenas, pobres e mulheres, novamente assumindo o poder”

Como escrevi na minha reportagem sobre Mukanda Tiodora, é provável que o novo quadrinho de Marcelo D’Salete seja a grande HQ brasileira de 2022. O álbum de 224 páginas recém-lançado pela editora Veneta é uma ficção histórica sobre os esforços reais de uma mulher escravizada em busca de sua liberdade na cidade de São Paulo do século 19.

A obra é baseada na história de Teodora Dias da Cunha, Tiodora, mulher escravizada originária das terras de Angola. Com auxílio de um homem escravizado alfabetizado, ela escreveu sete cartas, para diferentes destinatários, entre autoridades e familiares, tendo em vista sua alforria. D’Salete criou ficção a partir de uma das cartas, construindo uma trama envolvendo a jornada da mensagem até seu destinatário. Você lê o meu texto sobre a HQ clicando aqui.

Compartilho agora a íntegra da minha entrevista com D’Salete. Ele fala sobre o desenvolvimento de seu novo trabalho, mas também expõe suas expectativas para o governo Lula a partir de 2023, reflete sobre os rumos de suas técnicas de desenho e revela sua saudade de desenhar cidades e centros urbanos modernos. Papo massa, saca só:

“Espero realmente que possamos superar esses últimos quatro anos”

Quadro de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Hoje é 4 de novembro de 2022, cinco dias depois da vitória do Lula nas eleições presidenciais. Queria começar sabendo como você recebeu esse resultado? Quais expectativas você tem em relação a esse novo governo?

Foi com grande esperança, alívio e alegria que veio a notícia da última eleição, no domingo, em relação à Presidência. Imagino que romper esse ciclo destrutivo e extremamente prejudicial ao Brasil, ao mundo, aos trabalhadores, da política atual, do Bolsonaro, é algo urgente e necessário. Creio que teremos o desafio, nos próximos meses e anos, de criar formas de lutar contra essa desinformação praticada de modo extremamente devastador pelo bolsonarismo. Não podemos imaginar um governo contra as populações negras, quilombolas, indígenas, pobres e mulheres, novamente assumindo o poder de uma forma tão desastrosa. Teremos desafios muito grandes para que isso não volte a ocorrer. Haja visto o número de votos que eles conseguiram na última eleição.

Agora, por outro lado, não deixa de ser extraordinário ver, mesmo com tantas empresas gastando muito dinheiro para eleição do atual presidente, utilizando a máquina pública para isso, a gente tenha o Lula sendo eleito presidente. É uma vitória popular muito grande contra o interesse dessas oligarquias endinheiradas. Espero realmente que possamos superar esses últimos quatro anos, mas também criar estratégias para que isso não volte a acontecer. Isso é possível com muita organização popular, com a população negra, indígena, de mulheres, LGBTI e outros grupos, se fazendo ouvir. Precisamos de diálogos efetivos com esses grupos.

Em meio aos vários retrocessos do governo Bolsonaro, quais são aqueles que você acha que devem ser encarados com maior atenção a partir de 1º de janeiro de 2023?

Olha, são muitos os retrocessos do atual governo. Não tem como você pensar no futuro do país tendo cortes tão bruscos nas áreas da educação, saúde e cultura. Eu acho que qualquer sonho de um país possível, com menos desigualdade e, de fato, por uma outra sociedade, passa necessariamente pela formação, pela instrução e por melhores condições para sua população. Diria que esses são apenas alguns dos temas que precisam ser tratados a partir do próximo ano. Mas é claro, é uma realidade muito complexa, de enormes problemas, que iremos enfrentar. Com certeza. Principalmente em relação ao discurso negacionista e extremamente conservador da extrema direita, diferente daquele de 20 anos atrás.

Superar a política da indiferença e do negacionismo é algo fundamental. Nós precisamos realmente colocar em pauta, novamente, uma política de solidariedade e de mudança social, que é urgente e necessária no Brasil.

Você pode me falar, por favor, sobre o seu primeiro contato com a história da Tiodora? Quando você soube pela primeira vez da existência dela? O que mais te impactou na história dela?

O meu novo livro trata da história da Tiodora. Ela foi uma mulher, negra, escravizada que em 1866 escreveu algumas cartas com ajuda de outro escravizado, o Claro. Eu tive contato com os registros dessas cartas a partir do livro Sonhos Africanos, da Cristina Wissenbach. Ele trata de São Paulo no século 19 e principalmente da população negra naquele período. É um livro incrível. Ele revela uma São Paulo, no século 19, com uma presença forte da população negra, com pessoas escravizadas e livres. As cartas da Tiodora foram enviadas para diversas pessoas. Uma era para o “senhor”, outra para um irmão do “senhor”, outra para seu esposo – Luís, que estava no interior de São Paulo – e outra para o seu filho, Inocêncio. A Tiodora queria ter contato com seus parentes e ter ajuda para conseguir a sua carta de alforria.

Elas revelam muito também sobre a própria trajetória da Tiodora. Ela vem das terras de Angola, chegou no Brasil e foi vendida no interior de São Paulo. Foi para a cidade de São Paulo, morando na Rua da Liberdade, por volta de 1860. Sendo que o seu esposo e filho ficaram no interior. É preciso entender que o interior de São Paulo e a cidade de São Paulo, ambos escravistas, formavam uma sociedade extremamente desigual e violenta. Mas havia formas diferenciadas de escravidão. E o livro tenta trazer um pouco disso.

Foi um impacto enorme ler as cartas da Tiodora. Eu lembro que chorava ao ler as cartas dela, porque ela é muito contundente. Ela é muito direta em mostrar ali as suas emoções e também o seu interesse de conseguir a sua alforria. E claro, de ter esse contato com pessoas de quem ela foi separada. Este conjunto de cartas, com certeza, como considera a historiadora Cristina Wissenbach, é algo único para pensar na cidade de São Paulo nesse período.

“Pensei que poderia até mesmo ser um livro juvenil”

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Você definiu para mim Angola Janga como “uma ficção que dialoga com fatos históricos”. Você também vê Mukanda Tiodora dentro desse mesmo “gênero”?

Eu vejo Mukanda Tiodora, assim como meus outros livros, como ficção. Mas há aproximações em relação à história, em relação a essa tentativa de imaginar São Paulo no século 19 e, principalmente, sobre a população negra nesse período. Ele é uma forma de aproximação, uma forma de investigação poética e ficcional sobre aquele momento, trazendo diferentes personagens para entender aquele contexto. Não considero um livro de registro apenas histórico, mas é uma tentativa de imaginar a história criando novas formas de interpretar aqueles fatos a partir da ficção.

Você faz uso de várias referências bibliográficas, mas construiu a HQ a partir das sete cartas de Tiodora. São cartas curtas, mas com muitas informações sobre a realidade da personagem e também sobre as origens e a personalidade dela. Como foi criar a trama dessa HQ tendo essa base como ponto de partida?

O livro da Tiodora passou por diversos estágios. É um livro atualmente com 224 páginas. Mas no início, quando comecei a elaborar o roteiro, pensei que poderia até mesmo ser um livro juvenil, falando da população negra, de cartas, de escrita, um livro quase sem texto. Seria um livro bem menor, com cerca de 40 ou 60 páginas. Aos poucos essa ideia foi crescendo, cada vez mais, como é bem comum de acontecer com meus trabalhos. E foram entrando ali novos personagens, novas ideias e isso fez com que eu tivesse que aprofundar um pouco mais em algumas pesquisas sobre o período.

As cartas da Tiodora são um ponto de partida, um documento potencial que serviu como um grande gerador de novas imagens, de novos personagens, de narrativas possíveis. Aos poucos eu fui pensando na Tiodora e como trazer esses personagens todos para narrativa, tudo inspirado no que tem ali nas cartas da Tiodora.

Aos poucos eu fui tentando entender, também, o Brasil e São Paulo em 1866. E aí nós temos a Guerra do Paraguai; a Guerra Civil nos Estados Unidos, que já tinha acabado nesse período. Nós temos um momento em que as pessoas estão sendo pegas, principalmente pobres e negros, e sendo mandados para morrer na guerra. Por isso foi muito importante dialogar também com outros historiadores e quadrinistas – como o André Toral, que me deu dicas excelentes para pensar nesse contexto. A guerra do Paraguai é um dos temas muito bem discutidos pelo André Toral em diversos livros.

Nesse período, nós temos uma confluência de intelectuais e artistas que atuam juntos na criação de alguns jornais importantes em São Paulo. Nós temos o Luís Gama, que é uma pessoa que vem de Salvador, um jovem que foi escravizado, passa pelo interior e depois fica na cidade de São Paulo. Ele consegue a sua liberdade e se torna um escritor. Além disso, se torna também advogado, tendo lutado em diferentes causas e participado da libertação de mais de 500 pessoas. Enfim, o Luís Gama é uma pessoa que teve conhecimento do processo da Tiodora. Porque as cartas dela foram apreendidas pela polícia depois que o Claro, quem escreveu as cartas, é suspeito de um crime. E o Luís Gama foi uma das pessoas que relatou todo esse caso da Tiodora, então ele tinha conhecimento do que estava acontecendo ali. Inicialmente ele não estaria na história, mas depois ele foi se impondo. Porque a relação do Luís Gama com o Ferreira Menezes, que também era um jornalista e escritor abolicionista, começa em São Paulo, quando o Ferreira Menezes vem estudar na Faculdade de Direito. Ele conhece o Luís Gama e eles trocam diversas cartas ao longo da vida deles, até 1880. Então esses dois personagens entraram. 

Nesse período, 1860, aqui em São Paulo também estava o Ângelo Agostini. Ele publicou jornais em São Paulo junto com o Luís Gama, dentro do contexto de luta abolicionista também de luta pela República. Enfim, tem todo esse contexto político contra os poderosos. O Luís Gama fazia uma crítica acirrada, extremamente forte, contra o poder instaurado naquele momento, contra os grandes fazendeiros e contra a igreja. Se por um lado você tinha os fazendeiros, que possuíam o dinheiro, o poder para manter essa estrutura, por outro lado, você tinha a igreja, que infelizmente dava apoio moral ao regime da escravidão. O Luís Gama nunca foi condescendente com esses abusos e com essa “distorção”, vamos dizer assim, dos ensinamentos que vem da própria igreja em relação à igualdade e tudo mais.

O que essas cartas trouxeram de mais revelador para você sobre o Brasil do século 19?

É muito interessante pensar que, nas primeiras décadas de 1800, no interior de São Paulo, assim como no Rio de Janeiro, havia uma população enorme de pessoas africanas escravizadas. Chegava a ser 50% em alguns locais, durante algumas décadas foi maior do que a população livre. Isso chamava atenção de muitas pessoas que viajavam, que vinham para o Brasil também.

Havia uma produção de café enorme no interior do Rio e essa produção, depois, passa pelo interior de São Paulo, região de Campinas, Limeira. Há um fluxo enorme de pessoas escravizadas da África, de Angola principalmente, vindo para o Rio de Janeiro e depois indo diretamente para o interior de São Paulo. Campinas e região era o local mais brutal do escravismo nesse período. No início de 1800, muitos países estão abolindo o tráfico no Atlântico. Inglaterra, França, Estados Unidos e vários outros países aqui na América Latina, quando se tornam independentes, acabam com a escravidão. Isso não acontece no Brasil. O Brasil se tornou independente e reforçou a instituição cruel da escravidão. Existe um verdadeiro pacto das elites para que a independência aconteça, mas com a continuidade e o incremento da escravidão, trazendo ainda mais pessoas para cá.

A primeira lei sobre a abolição do tráfico no Atlântico aconteceu em 1831. Só que a lei virou uma letra morta. Inicialmente há, sim, um momento de fiscalização e de interrupção do tráfico no Atlântico de escravizados africanos. Mas logo depois os poderosos da época, grandes fazendeiros, apoiadores do escravismo, acabam fazendo com que a lei seja ignorada e o tráfico continue acontecendo de modo ilegal.

Então, é muito interessante compreender esse período e o Luís Gama foi uma das pessoas que mais soube perceber e lutar contra isso. Ele sabia: quem vinha para o Brasil a partir de 1831 era a partir do tráfico ilegal. Essas pessoas não poderiam ser escravizadas. O Luís Gama é provavelmente uma das primeiras pessoas a utilizar esse termo naquele período: ‘libertos escravizados’. Ele compreendia que pela lei, aquelas pessoas já deveriam ser consideradas livres quando chegavam aqui. Mas, de acordo com o conluio entre os grandes fazendeiros e também a polícia da época, todo aparato jurídico e criminal daquele período não tornavam aquilo um crime hediondo.

“Tiodora nos ajuda a compreender um momento crucial da história do Brasil”

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

E você vê diálogo entre a realidade da Tiodora e o Brasil contemporâneo?

Olha, acho que a Tiodora nos ajuda a compreender um momento crucial da história do Brasil. Ela serve também para a gente relacionar com outras personalidades à margem da sociedade brasileira em diferentes períodos. Eu sempre lembro da história da Tiodora e, 100 anos depois, na história da Carolina de Jesus, por exemplo. E nós poderíamos pensar na história de muitas outras mulheres que utilizaram a escrita como uma estratégia de resistência e de sobrevivência.

Os seus primeiros livros, com ambientações mais contemporâneas, têm forte presença da realidade urbana de São Paulo. Em Cumbe e Angola Janga você se afastou desses cenários, tanto em termos geográficos quanto temporais. Em 2017, quando Angola Janga saiu, você falou como foi difícil essa transição. Em Mukanda Tiodora você volta para São Paulo, mas no século 19. Como você vê a São Paulo escravocrata dessa época influenciando a formação da cidade que existe hoje?

Imagino que as cartas da Tiodora são importantes para mostrar a São Paulo daquele período. São registros únicos para compreender certos espaços negros na cidade de São Paulo naquele período, antes de todo o processo de imigração. Por exemplo, o Bairro da Liberdade, local onde a Tiodora morou e onde ficava a forca. A Igreja do Rosário dos Homens Pretos, que inicialmente ficava na praça na Praça Antônio Prado, onde hoje existe a bolsa de valores de São Paulo. É muito emblemático que uma igreja com forte presença negra e afro-brasileira no século 19 tenha sido destruída, sobre ela, foram construídos os principais prédios da cidade naquele período, inclusive da bolsa de valores. Aquele solo foi local de grande importância negra, afro-brasileira e africana, em São Paulo no século 19.

E curiosidade minha: você sente falta de desenhar prédios e pichações e cenários mais contemporâneos?

(Risos) Sim, às vezes sim. Eu tenho alguns projetos focados no Brasil mais contemporâneo. Mas esses outros projetos, mais históricos, acabaram se impondo de uma forma muito grande na minha relação com os quadrinhos. Eram histórias que eu via e pensava “é importante que isso seja contado de algum modo”. Mas ainda espero voltar, sim, para as histórias mais contemporâneas, como fazia com Encruzilhada e Noite Luz.

Apesar de Cumbe ter saído antes de Angola Janga, você já me disse que vê Cumbe como uma extensão de Angola Janga, por um ter surgido das pesquisas do outro. Mukanda Tiodora também é desdobramento dessas pesquisas?

Olha, Mukanda Tiodora, de certo modo, acaba sendo um desdobramento, mas bem diferente para pensar na história do Brasil. Em Mukanda Tiodora eu abordo um outro momento e contexto da escravidão. Mostro outras estratégias da população negra em relação à tentativa de obter a sua liberdade ou melhores condições de vida. Essa negociação passava pela fuga, às vezes pela formação de quilombos, mas também por uma negociação tensa com os “senhores”, usando cartas, como aconteceu com a Tiodora, como aconteceu com a Esperança Garcia também. Então, a escrita, assim como a ação das irmandades negras, eram uma outra forma de tentativa de negociação com esse poder escravista, tentando melhores condições de vidas e também a liberdade.

É muito importante que a gente entenda que havia diferentes formas de resistência e negociação com o poder escravista. Todas essas formas, de certo modo, são relevantes para a gente compreender que essas pessoas buscavam melhores condições de vida, às vezes conseguindo sua alforria de fato, mas às vezes conseguindo mais tempo para os seus trabalhos, mais tempo para vender as suas coisas, para conseguir juntar dinheiro, para compra da carta de alforria, para os seus momentos festivos também. Tudo isso faz parte dessas formas de negociação e diz respeito a essa história negra de resistência, de luta contra o poder escravista.

“Desenvolvi uma outra relação com o desenho”

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Também queria saber um pouco mais sobre as suas técnicas nesse livro novo. Você usou caneta nanquim e pincel com nanquim no Angola Janga e evitou tinta acrílica, uma constante nos seus trabalhos prévios. E agora? Quais materiais você usou?

No livro Tiodora eu trabalhei bastante com nanquim e papel. Eu desenvolvi uma outra relação com o desenho. Eu mudei o estilo para algo que eu sempre persegui de certo modo, nessa relação com o preto e branco, com o cinza, o contraste, algo que lembra um pouco a gravura.

Acabava pintando boa parte da cena e da figura com aguadas de nanquim e depois ia construindo as partes de luz com tinta branca, corretivo. Gostei bastante do resultado. Tem sido uma outra forma de pensar desenho e composição. Senti que estava precisando desenvolver outras formas de desenho. Fiquei bem feliz com o resultado, com o que consegui até agora. Não sou um artista eclético, que muda muito de traço de um trabalho para o outro. Mas avalio que o livro Tiodora mostra uma nova fase em relação à composição, ao desenho, às texturas. Me agradou bastante. E claro, tem muita influência de artistas latino-americanos também, como Alberto Breccia e um pouco do José Muñoz.

As minhas lembranças de aula de história no colégio sobre o fim da escravidão são de uma narrativa em torno do movimento abolicionista como uma iniciativa de líderes políticos brancos. Tanto Cumbe, quanto Angola Janta e Mukanda Tiodora reforçam para mim a versão pouco difundida da abolição decorrente muito mais de lutas e empenhos de escravizados e ex-escravizados. Como você vê o contraste entre essas duas “narrativas”?

Em Mukanda Tiodora aparece um pouco o início desse movimento abolicionista, nas figuras do Luís Gama e do Ferreira Menezes e do jornal O Cabrião – com participação do Ângelo Agostini, indiretamente. É sempre importante compreendermos que, nesse período da abolição, houve aí um verdadeiro movimento popular, talvez um dos primeiros e mais importantes no Brasil do século 19, que chegou em grande parte da sociedade. Então nas últimas décadas, a partir de 1870 e 80, a escravidão começa a ficar insustentável.  Há uma grande comoção popular de pessoas que não compactuam mais com esse tipo de regime. Apesar disso, o Brasil, infelizmente, foi um dos últimos países a abolir a escravidão, justamente pelo poder que esses grandes fazendeiros, tinham na manutenção desse sistema e a partir sempre de muita violência.  

Nesse momento temos Luiz Gama, Ferreira Menezes, José do Patrocínio e diferentes levantes negros acontecendo em São Paulo, Minas Gerais, Paraná e outras proximidades. Há uma tentativa de levante, por exemplo, em 1832, em Campinas, que foi organizada por um barbeiro, um tropeiro e centenas de escravizados do interior. 

Enfim, nós temos aí diversos exemplos que mostram que havia um agenciamento, uma luta, muito forte de alguns grupos negros organizados pelo fim do escravismo e pela abolição de fato. Isso influenciou muito para que esse tipo de política acabasse. Não podemos esquecer também que tivemos, no final do século 18 e início do século 19, a revolução no Haiti. Isso causou um temor muito grande dos senhores.

Esse momento do século 19 foi extremamente tenso para quem defendia a manutenção da escravidão, não era algo tranquilo, por mais que no Brasil tenha demorado muito tempo para decretar a abolição. Há inúmeros casos de violência, de revoltas, levantes ou outras formas de negociação empreendidas também por pessoas negras livres que também compunham boa parte da população nas cidades no Brasil a partir de 1850.

Eu queria saber o que mais te interessa hoje no uso da linguagem das histórias em quadrinhos? O que mais te atrai no uso da linguagem das HQs para contar uma história?

Eu ainda quero fazer uma narrativa praticamente sem falas, só com imagens. Eu adoro a possibilidade de contar histórias com imagens, de elaborar novos quebra-cabeças com o desenho, o texto, a composição do layout, símbolos e conceitos. E claro, ainda quero me desenvolver em relação ao meu próprio desenho e à minha forma de contar histórias.

“É relevante trazer novas histórias e outras narrativas para além do universo dos super-heróis e de outras narrativas mais hegemônicas”

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

E quais HQs você acha que mais impactaram a produção de Mukanda Tiodora? Aliás, quais autores, artistas e obras de ficção estiveram mais presentes ao seu redor durante a produção desse trabalho novo?

Algumas obras serviram de inspiração. Por exemplo, A Infância do Brasil, do Zé Aguiar; os quadrinhos e as pesquisas do André Toral; o Província Negra, do Kris Zullo e do Kaled Kanour; o livro Avenida Paulista, do Luiz Gê, que inicia falando de uma São Paulo de séculos atrás. Essas foram apenas algumas narrativas que revisitei. E claro, nesse período, diferente do Angola Janga e Cumbe, já tinha à disposição alguns trabalhos em fotografia, de artistas como o Militão Azevedo. Essas fotografias de São Paulo, em 1862 e 1880, foram muito interessantes para compreender o crescimento da cidade nesse período.

A primeira vez que te entrevistei foi em 2013. Na época, você celebrou uma ampliação do “contexto temático das HQs” nacionais, mas disse ainda considerar “pequenas as iniciativas com temáticas mais sociais, que exploram os muitos universos de uma cidade grande a partir de personagens comuns”. Quase 10 anos depois, você vê mais iniciativas do tipo nas HQs nacionais?

Hoje eu percebo mais iniciativas nesse sentido. Mas, claro, é uma impressão. Pude acompanhar um pouco mais disso anos atrás. É relevante trazer novas histórias e outras narrativas para além desse universo dos super-heróis e de outras narrativas mais hegemônicas. Continuo achando que isso é essencial. Não é essencial apenas para falar, vamos dizer assim, de pessoas negras, indígenas, das mulheres e outras condições. É essencial para a própria continuidade das histórias em quadrinhos poderem mostrar todo o seu potencial para grande parte do público. A gente não vai conseguir isso se ficarmos restritos apenas a alguns tipos de formatos e narrativas. O público merece, ele precisa disso, assim como a linguagem dos quadrinhos precisa disso para sobreviver.

Lá em 2017, você me falou que seus 11 anos trabalhando em Angola Janga alteraram o seu “modo de compreender o passado e também o presente, em especial sobre os antigos e novos mocambos”. Você teve alguma lição ou reflexão maior do tipo durante os anos em que passou trabalhando em Mukanda Tiodora?

Mukanda Tiodora é um livro para pensar em São Paulo, cerca de 150 anos atrás. Ele é relevante para repensar os diferentes espaços físicos, e mesmo simbólicos, em São Paulo, e como a cidade se transformou, bruscamente, nesses últimos séculos. 

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)
HQ / Matérias

Marcelo D’Salete fala sobre Mukanda Tiodora: “Mostro outras estratégias da população negra em busca da liberdade”

Quando o quadrinista Marcelo D’Salete deu início aos seus trabalhos em Mukanda Tiodora (Veneta), ele tinha em mente um projeto menor. Seriam entre 40 e 60 páginas, possivelmente uma obra juvenil e quase sem texto. Eram propostas distintas de seus dois trabalhos prévios, os premiados Cumbe (2014) e Angola Janga (2017). O projeto cresceu, novos personagens surgiram e os temas tratados por ele exigiram novas pesquisas. Às vésperas de sua chega às livrarias nacionais, o livro ficou com 224 páginas. É uma ficção histórica sobre os esforços reais de uma mulher escravizada em busca de sua liberdade na São Paulo do século 19.

Possivelmente a grande HQ brasileira de 2022, Mukanda Tiodora aprofunda temas presentes nos trabalhos anteriores de D’Salete, amplia as reflexões propostas por eles sobre o Brasil contemporâneo e soa como um novo capítulo da verdadeira história brasileira sob a perspectiva e o nanquim de seu autor.

O novo álbum de D’Salete começou a ganhar forma quando ele leu Sonhos Africanos, Vivências Ladinas (Hucitec Editora), obra da pesquisadora e historiadora Maria Cristina Cortez Wissenbach. O livro trata da cidade de São Paulo no século 19 e, principalmente, sua população negra, tanto sua parcela escravizada quanto a livre. Um trecho da obra é dedicado às cartas de Teodora Dias da Cunha, Tiodora, mulher escravizada originária das terras de Angola. Com auxílio de um homem escravizado alfabetizado, ela escreveu sete cartas, para diferentes destinatários, entre autoridades e familiares, tendo em vista sua alforria.

As sete cartas de Tiodora estão reproduzidas na íntegra nos extras da HQ – além de textos complementares de D’Salete e Maria Cristina Cortez Wissenbach, fotos e mapas da cidade de São Paulo do fim do século 19 e uma linha do tempo da luta contra a escravidão no estado de São Paulo.

“Foi um impacto enorme ler as cartas da Tiodora”, me disse D’Salete sobre seu primeiro contato com aquele que viria a ser o foco de seu mais novo quadrinho. “Eu lembro que chorava ao ler as cartas, porque ela é muito contundente. Ela é muito direta em mostrar ali as suas emoções e também o seu interesse de conseguir a sua alforria. E claro, de ter esse contato com pessoas de quem ela foi separada. Este conjunto de cartas, com certeza, como considera a historiadora Cristina Wissenbach, é algo único para pensar na cidade de São Paulo nesse período”.

Na avaliação do autor, as cartas ainda são reveladoras sobre a história de vida de Tiodora e o passado recente do país: “Tiodora vem das terras de Angola, chegou no Brasil e foi vendida no interior de São Paulo. Foi para a cidade de São Paulo, morando na Rua da Liberdade, por volta de 1860. Sendo que o seu esposo e filho ficaram no interior. É preciso entender que o interior de São Paulo e a cidade de São Paulo, ambos escravistas, formavam uma sociedade extremamente desigual e violenta. Mas havia formas diferenciadas de escravidão. E o livro tenta trazer um pouco disso”. 

Documentos potenciais

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Em 2018, Marcelo D’Salete teve um ano de repercussão inédita para um quadrinista brasileiro. Por Angola Janga, lançado no ano anterior, pela editora Veneta, ele levou o Prêmio Jabuti na categoria Histórias em Quadrinhos, quatro troféus HQMix (Melhor Edição Especial, Melhor Desenhista Nacional, Melhor Roteirista Nacional e Destaque Internacional) e o Prêmio Grampo de Ouro. Ele ainda recebeu o Prêmio Eisner, o mais importante da indústria de quadrinhos dos Estados Unidos, na categoria Melhor Edição de Material Estrangeiro, pela versão em inglês de Cumbe (Veneta). As duas obras foram publicadas nos EUA pela lendária editora Fantagraphics, casa de alguns dos nomes mais célebres das HQs locais.

Tanto em Cumbe quanto em Angola Janga, D’Salete criou tramas ficcionais a partir de suas pesquisas sobre o Brasil escravocrata do fim do século 16. Em Mukanda Tiodora ele criou ficção a partir de uma das cartas de Tiodora, construindo uma trama envolvendo a jornada da mensagem até seu destinatário. Segundo o autor, as cartas foram como um ponto de partida: “documentos potenciais” que resultaram em imagens, personagens e todo um enredo.

“Há aproximações em relação à história, em relação a essa tentativa de imaginar São Paulo no século 19 e, principalmente, sobre a população negra nesse período”, refletiu o autor sobre seu novo trabalho. “Ele é uma forma de aproximação, uma forma de investigação poética e ficcional sobre aquele momento, trazendo diferentes personagens para entender aquele contexto. Não considero um livro de registro apenas histórico, mas é uma tentativa de imaginar a história criando novas formas de interpretar aqueles fatos a partir da ficção”.

A mescla de ficção e história e a apresentação de uma nova trama sobre resistência e enfrentamento ao poder escravista enfatizam o diálogo entre Tiodora, Cumbe e Angola Janga. No entanto, o salto temporal, do século 16 nos dois álbuns prévios, para a segunda metade do século 19 nesse trabalho mais recente, expõe outro contexto da escravidão e outro período da história de resistência da população negra contra o poder escravista.

“Mostro outras estratégias da população negra em relação à tentativa de obter a sua liberdade ou melhores condições de vida. Essa negociação passava pela fuga, às vezes pela formação de quilombos, mas também por uma negociação tensa com os ‘senhores’, usando cartas, como aconteceu com a Tiodora. Então, a escrita, assim como a ação das irmandades negras, eram uma outra forma de tentativa de negociação com esse poder escravista, tentando melhores condições de vidas e também a liberdade”, explica ele.

“É muito importante que a gente entenda que havia diferentes formas de resistência e negociação com o poder escravista”, ressalta D’Salete. “Todas essas formas, de certo modo, são relevantes para a gente compreender que essas pessoas buscavam melhores condições de vida, às vezes conseguindo sua alforria de fato, mas às vezes conseguindo mais tempo para os seus trabalhos, mais tempo para vender as suas coisas, para conseguir juntar dinheiro, para compra da carta de alforria, para os seus momentos festivos também. Tudo isso faz parte dessas formas de negociação e diz respeito a essa história negra de resistência, de luta contra o poder escravista”.

Libertos escravizados

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

D’Salete focou Mukanda Tiodora no percurso de uma das cartas de Tiodora. Ele mostra a jornada de um jovem que se propõe a fazer a entrega da mensagem em meio a todos os perigos e ao ambiente hostil da São Paulo escravocrata. A trama simples é cercada por uma ambientação reveladora em relação ao seu contexto. O terceiro capítulo da obra, por exemplo, é protagonizado por Luís Gama e Ferreira de Menezes, figuras icônicas e fundamentais do movimento abolicionista. Os dois aparecem no quadrinho em discussão sobre os vários levantes de escravizados que vinham ocorrendo e o fim inevitável da escravidão, mas como o sistema resistia e a escrita poderia ser uma estratégia de combate.

Nascido livre em Salvador, Luís Gama foi escravizado durante a infância. Já adulto, ele conseguiu na Justiça sua liberdade. Depois, como advogado, foi fundamental na libertação de mais de 500 pessoas. D’Salete conta que a presença de Gama acabou se impondo em Mukanda Tiodora – também por ter sido uma das pessoas que relatou o caso de Tiodora na imprensa da época.

“Luís Gama fazia uma crítica acirrada, extremamente forte, contra o poder instaurado naquele momento, contra os grandes fazendeiros e contra a igreja. Se por um lado você tinha os fazendeiros, que possuíam o dinheiro, o poder para manter essa estrutura, por outro lado, você tinha a igreja, que infelizmente dava apoio moral ao regime da escravidão. O Luís Gama nunca foi condescendente com esses abusos e com essa ‘distorção’, vamos dizer assim, dos ensinamentos que vêm da própria igreja em relação à igualdade e tudo mais”.

D’Salete também lembra que, no contexto da HQ, o tráfico de escravizados no Oceano Atlântico estava proibido há mais de 30 anos. Mas a prática seguiu sob a vista grossa das autoridades e da igreja católica: “Luís Gama é provavelmente uma das primeiras pessoas a utilizar o termo ‘libertos escravizados’. Ele compreendia que pela lei, aquelas pessoas já deveriam ser consideradas livres quando chegavam aqui. Mas, de acordo com o conluio entre os grandes fazendeiros e também a polícia da época, todo aparato jurídico e criminal daquele período não tornavam aquilo um crime hediondo”.

Brasil contemporâneo

Página de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Além do salto temporal de 300 anos, Mukanda Tiodora também se distingue dos trabalhos prévios de D’Salete em relação à sua arte. Seu preto e branco segue em alto contraste, à base de papel e nanquim, mas dialoga ainda mais com a xilogravura. Ele assume ter se empenhado para alcançar um “novo estilo” e “outra forma de pensar desenho e composição”.

“Acabava pintando boa parte da cena e da figura com aguadas de nanquim e depois ia construindo as partes de luz com tinta branca, corretivo”, me explicou o quadrinista. “Senti que estava precisando desenvolver outras formas de desenho. Fiquei bem feliz com o resultado, com o que consegui até agora. Não sou um artista eclético, que muda muito de traço de um trabalho para o outro. Mas avalio que o livro Tiodora mostra uma nova fase em relação à composição, ao desenho, às texturas. E claro, tem muita influência de artistas latino-americanos também, como Alberto Breccia e um pouco do José Muñoz”.

E após três álbuns ambientados no Brasil colonial, D’Salete assume sentir saudade dos cenários mais urbanos e modernos de seus primeiros livros, como Encruzilhada (Veneta) e Noite Luz (Via Lettera): “Eu tenho alguns projetos focados no Brasil mais contemporâneo. Mas esses outros projetos, mais históricos, acabaram se impondo de uma forma muito grande na minha relação com os quadrinhos. Eram histórias que eu via e pensava ‘é importante que isso seja contado de algum modo’. Mas ainda espero voltar, sim, para as histórias mais contemporâneas”.

Já sobre o Brasil contemporâneo ele se diz esperançoso. Focado na produção de Mukanda Tiodora durante grande parte dos quatro anos de presidência de Jair Bolsonaro, D’Salete está aliviado com a vitória de Lula nas eleições do último mês de outubro, mas também lamentou o número expressivo de votos conquistados pelo atual presidente.

“Creio que teremos o desafio, nos próximos meses e anos, de criar formas de lutar contra essa desinformação praticada de modo extremamente devastador pelo bolsonarismo. Não podemos imaginar um governo contra as populações negras, quilombolas, indígenas, pobres e mulheres, novamente assumindo o poder de uma forma tão desastrosa. Teremos desafios muito grandes para que isso não volte a ocorrer”.

A capa de Mukanda Tiodora, obra de Marcelo D’Salete publicada pela editora Veneta (Divulgação)
Entrevistas / HQ

Papo com Julie Doucet, autora de Meu Diário de Nova York: “A alma do meu trabalho está no preto e branco”

Meu Diário de Nova York é uma das minhas melhores leituras no ano e possivelmente o maior acerto da editora Veneta no primeiro semestre de 2022. Primeiro título da canadense Julie Doucet publicado na América do Sul, o álbum chega ao Brasil seis meses após a autora ser homenageada com o Grand Prix da 49ª edição do Festival de Angoulême, mais tradicional festival de histórias em quadrinhos do Ocidente.

A honraria concedida pelos organizadores do evento francês celebra anualmente o conjunto da obra e as contribuições de um artista para a linguagem dos quadrinhos. Ao anunciar a vitória de Doucet, os organizadores do festival exaltaram sua arte “sem concessões, radical e subversiva”.

Entrevistei Doucet e transformei esse papo em matéria exclusiva aqui para o blog. No meu texto eu contei mais sobre a história da autora, a relação dela com o mundo dos quadrinhos e também sobre as origens e a produção de Meu Diário de Nova York. Reproduzo agora a íntegra da minha conversa com a artista. Papo bem massa, saca só:

“Nunca fui uma autora de grandes sucessos”

Quadro de Diário de Nova York, obra de Julie Doucet publicada pela editora Veneta (Divulgação)

As HQs de Meu Diário de Nova York foram publicadas pela primeira vez em 1998. O que significa para você ver esse trabalho sendo republicado ainda hoje, 24 anos depois? Aliás, o que significa para você ver o seu trabalho sendo publicado pela primeira vez no Brasil?

Oh la la os anos passam!! Isso me deixa muito feliz, claro… Foi muito inesperado, uma bela surpresa. Trata-se da minha primeira edição brasileira, e também na América do Sul, isso não é pouca coisa!

A Nova York em que você morou na década de 1990 é muito diferente da Nova York do presente. Existem aspectos desta “velha Nova York” que você sente falta? Há algum aspecto de Nova York que você acha que é melhor hoje em dia do que o seu tempo morando lá?

De fato, a cidade mudou muito desde então… Mas o mesmo pode ser dito de tantas outras grandes cidades atualmente. Gentificação, aluguéis crescentes, pessoas pobres e oprimidas cada vez mais longe dos centros, o mesmo valendo para os artistas… Deste ponto de vista a vida com certeza parecia mais fácil naquela época. Uma vida underground, quando era tudo na base do boca a boca… E ainda havia toda uma aura de mistério…

Você poderia comparar a recepção do seu trabalho no início da Dirty Plotte e atualmente? O mundo parece estar mais aberto a obras independentes, pessoais e antiestablishment como as suas, mas há um conservadorismo crescente e problemas sociais e financeiros que me parecem ser um obstáculo para tudo isso.

Eu nunca fui uma autora de grandes sucessos, o meu sucesso foi de crítica, nunca comercial. O que quero dizer é que nunca chamei atenção da impresa, que talvez não estivesse tão interessada ​​em quadrinhos na época. Quadrinhos são mais bem aceitos como meio artístico hoje, com certeza… Há um conservadorismo crescente, mas há o movimento Me Too, que ainda é muito forte na França. O que posso lhe dizer é que tenho vendido muitos livros recentemente!

“Eu jamais poderia distorcer a realidade”

Página de Diário de Nova York, obra de Julie Doucet publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Existe algum aspecto do início da carreira da jovem Julie retratado em Meu Diário de Nova York você sente falta?

Não. Para dizer a verdade, não mudaram muitas coisas no meu estilo de vida. Só que agora bebidas alcoólicas me dão enxaquecas.

Para mim, o que mais se destaca em Meu Diário de Nova York é sua honestidade, a sua sinceridade como autora. Quais você acha que são as principais qualidades de Julie, autora, da época de Meu Diário de Nova York?

Falando especificamente sobre a minha época desenhando Meu Diário de Nova York, eu diria que naquela época eu estava no auge da minha arte, pelo menos em termos gráficos. Em termos narrativos, foi meu trabalho mais ambicioso. Olhando para trás, eu gostaria de ter investido em uma abordagem mais complexa, menos convencional, mas tudo bem. Sobre a sinceridade, sim… Eu jamais poderia distorcer a realidade. Eu omiti muita coisa, mas não por causa de alguém ou qualquer coisa.

Você fez parte de uma geração lendária de quadrinistas – artistas que até aparecem em Meu Diário de Nova York (como Charles Burns, Françoise Mouly, Art Spiegelman e Peter Bagge). Como foi para você fazer parte desse grupo? Aliás, você se sente parte desse grupo?

Em Nova York mais ou menos, não fiquei lá tempo suficiente e morava muito longe, no Uptown, e não havia tantas oportunidades de encontrá-los (e o meu inglês naquele primeiro ano nos Estados Unidos não era dos melhores). Só quando fui morar em Seattle (onde vivem Peter Bagge e Jim Woodring) passei a me sentir parte do grupo. Eu me sentia meio caída de paraquedas no meio desses artistas famosos de Nova York, chegava a ser intimidante.

“Só tínhamos a opção de trabalhar em preto e branco”

Quadro de Diário de Nova York, obra de Julie Doucet publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Um elemento muito característico de seu trabalho com quadrinhos é o preto e branco. Imagino que esta não seja apenas uma opção estética, mas também financeira. Enfim, qual é a sua relação com o preto e branco? Como você acha que esse elemento contribui para as suas histórias?

Na verdade, originalmente nós só tínhamos a opção de trabalhar em preto e branco. Mas com a prática, posso dizer que toda a alma do meu trabalho está no preto e branco, sou irresistivelmente atraída por esse contraste da ausência de cores. Eu gosto de sua franqueza, sua dureza… E dos desafios estéticos decorrentes dele.

Como você se sente ao reler livros antigos como Meu Diário de Nova York? Aliás, você tem o hábito de reler suas obras mais antigas?

Não, não muito.

Em Meu Diário de Nova York, você apresenta um pouco da sua rotina de trabalho naquela época. Você pode nos contar um pouco sobre suas técnicas e seus materiais de trabalho quando fez esses quadrinhos? E qual é a sua rotina profissional hoje? Você segue alguma rotina específica?

Naquela época eu costumava usar papel Bristol e tinta indiana Pelikon e caneta bico de pena. Mais recentemente passei a usar uma Rapidograph, que eu usava quando estava começando nos quadrinhos, e desenho em cadernos Leporello. Eu tinha uma rotina quando fazia parte de uma oficina de gravura comunitária (desenhos pela manhã, oficina de tarde), mas não mais atualmente.

“Gosto de quadrinhos que buscam reinventar o formato”

Página de Diário de Nova York, obra de Julie Doucet publicada pela editora Veneta (Divulgação)

O que mais te interessa hoje em termos de quadrinhos, tanto como autora quanto como leitora?

Histórias em quadrinhos criadas por mulheres. Eu gosto quadrinhos/ensaios, quadrinhos mais experimentais, mais desconstruídos, que buscam reinventar o formato.

Qual sua memória mais antiga relacionada aos quadrinhos?

De fazer as comprar longe de casa, em uma cooperativa que parecia um grande galpão. Toda vez que íamos lá a minha mãe me dava um Tintim – havia uma banquinha de histórias em quadrinhos por lá, principalmente de Tintim, se não me engano. Eu obviamente adorava.

Você poderia me dizer o que você mais gostou de ler, assistir e ouvir no momento?

Buru Quartet, de Pramoedya Ananta Toer; Todos os livros da Yoko Tawada; Eveils, de Juliette Mancini (Atrabile); Rave, de Jessica Campbell (D&Q);

Eu amo escutar música eletrônica velha… Daphne Dram, Eliane Radigue, Bernard Parmigiani, Conrad Schnitzler… E também a Laurie Anderson.

Você está trabalhando atualmente em algum projeto específico? Se sim, é algo relacionado a quadrinhos? 

Acabei de publicar um livro pela Drawn & Quarterly que é uma espécie de retorno às história em quadrinhos, um grande painel de 144 Páginas. Mas tem toda uma história, autobiográfica também. Chama Time Zone. Para o futuro, não faço ideia. 

A quadrinista canadense Julie Doucet (Divulgação)
HQ / Matérias

Julie Doucet fala sobre Meu Diário de Nova York: “Me sentia caída de paraquedas no meio desses artistas famosos de Nova York”

A quadrinista canadense Julie Doucet evita computador e celular, possíveis gatilhos para seus ataques epilépticos. Ao topar ser entrevistada por mim, tendo em vista a edição brasileira de Meu Diário de Nova York (Veneta), ela pediu que as perguntas fossem enviadas aos assessores da editora canadense Drawn & Quarterly. O meu email foi impresso e entregue a ela, para ser respondido à mão. As respostas foram posteriormente escaneadas e enviadas de volta para mim.

Doucet vive praticamente offline, distante da comoção virtual recente com a descoberta de seu nome por novas gerações.

No último mês de janeiro ela foi premiada com o Grand Prix da 49ª edição do Festival de Angoulême, mais tradicional festival de histórias em quadrinhos do Ocidente. A honraria celebra anualmente o conjunto da obra e as contribuições de um artista para a linguagem dos quadrinhos. Ao anunciar a vitória da autora canadense, os organizadores do festival exaltaram sua arte “sem concessões, radical e subversiva”. Agora, com Meu Diário de Nova York, traduzido por Cris Siqueira, ela ganha sua primeira edição na América da Sul. 

Página de Diário de Nova York, obra de Julie Doucet publicada pela editora Veneta (Divulgação)

As 144 páginas em preto e branco do álbum retratam as vivências de Doucet, durante o período de pouco mais de um ano que ela viveu em Nova York, entre 1991 e 1992. O livro reúne histórias originalmente impressas entre 1995 e 1998 na revista autoral e independente Dirty Plotte. A obra começa um pouco antes da mudança da artista para os Estados Unidos, em 1983, com ela ainda em Montreal, aos 17 anos, em seu primeiro ano na universidade.

O álbum abre com um relato de Doucet sobre sua primeira experiência sexual, depois parte para uma sequência sobre suas frustrações universitárias e amorosas no início da vida adulta. Então ocorre um salto temporal mostrando a ida para Nova York, quando ela já era um nome em ascensão na cena underground de quadrinhos da América do Norte. Grande parte do livro é centrada na vida de sexo e drogas da artista enquanto ela conciliava sua rotina profissional com seus ataques epilépticos e as demandas de um namoro tóxico.

“Para dizer a verdade, não mudaram muitas coisas no meu estilo de vida. Só que agora bebidas alcoólicas me dão enxaquecas”, me diz Doucet sobre os contrastes entre sua rotina frenética em Nova York no início dos anos 1990 e a vida que leva atualmente em Montreal, onde mora.

Sucesso de crítica

Quadro de Diário de Nova York, obra de Julie Doucet publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Meu Diário de Nova York mostra um pouco da formação de Doucet. Nascida em Montreal, ela estudou em uma escola católica frequentada apenas por meninas. No curso de Belas Artes ela se vê em meio a “todos os rejeitados, todas as almas perdidas e sem esperança da faculdade”, como escreve ela no livro. O ambiente underground cercado por homens e as reflexões autodepreciativas e bem-humoradas seguiram com ela a partir daí, sempre retratados nos zines e nas publicações independentes que fizeram sua fama. 

“Oh la la, os anos passam! Isso me deixa muito feliz, claro…”, responde Doucet quando pergunto sobre a atenção recente à sua obra, a edição reunindo seus trabalhos sobre Nova York e sua primeira publicação em português. “Foi muito inesperado, uma bela surpresa. Trata-se da minha primeira edição brasileira, e também na América do Sul, isso não é pouca coisa!”

Hoje aos 56 anos, Doucet vem retomando aos poucos seus trabalhos com quadrinhos. Ela passou os últimos anos mais focada em trabalhos de poesia, colagens e artes plásticas. No fim do ano passado ela publicou Time Zone (inédito em português), HQ também autobiográfica sobre a ida dela para a França no fim dos anos 1980 para encontrar pessoalmente o namorado soldado que só conhecia por cartas.

Ela assume o contraste entre a recepção atual de seu trabalho e aquela entre os anos 1980 e início dos 2000: “Nunca fui uma autora de grandes sucessos. O meu sucesso foi de crítica, nunca comercial. O que quero dizer é que nunca chamei atenção da imprensa, que talvez não estivesse tão interessada ​​em quadrinhos na época. Quadrinhos são mais bem aceitos como meio artístico hoje, com certeza.”

Aluguéis crescentes

Página de Diário de Nova York, obra de Julie Doucet publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Meu Diário de Nova York apresenta os principais elementos que fizeram a fama de Doucet. São histórias extremamente pessoais, relatos íntimos, às vezes escatológicos, com personagens com feições caricatas em contraste com cenários um pouco mais realistas, além do já citado preto e branco. Preto e branco, aliás, que surgiu como uma imposição do alto custo de imprimir colorido, mas acabou caracterizando o trabalho.

“Nós só tínhamos a opção de trabalhar em preto e branco”, diz ela. “Mas com a prática, posso dizer que toda a alma do meu trabalho está no preto e branco, sou irresistivelmente atraída por esse contraste da ausência de cores. Eu gosto de sua franqueza, sua dureza… E dos desafios estéticos decorrentes dele”.

Sobre a trama, entre uma e outra crise epiléptica e briga com o namorado, ela vai conseguindo trabalhos em publicações importantes na época, como Village Voice e New York Press. Em uma página ela retrata uma festinha com a presença de lendas como Art Spiegelman (autor de Maus) e Françoise Mouly (editora de arte da New Yorker), na época editores da lendária revista Raw, e é celebrada por contemporâneos como Charles Burns e Glenn Head.

Página de Diário de Nova York, obra de Julie Doucet publicada pela editora Veneta (Divulgação)

“Eu me sentia meio caída de paraquedas no meio desses artistas famosos de Nova York, chegava a ser intimidante”, conta Doucet sobre suas breves interações com colegas de profissão mais badalados durante o período retratado no livro. “Não fiquei lá tempo suficiente e morava muito longe, no Uptown [região de Nova York que vai do Harlem ao sul do Central Park], e não havia tantas oportunidades de encontrá-los (e o meu inglês naquele primeiro ano nos Estados Unidos não era dos melhores)”.

O álbum explicita esse isolamento de Doucet durante o período em Nova York. Ela diz só ter se sentido parte de um grupo quando se mudou para Seattle – outro pólo de quadrinhos dos Estados Unidos e na época residência de quadrinistas como Peter Bagge e Jim Woodring, amigos da autora. Também fica explícita a ausência de qualquer memória romântica da autora em sua época em Nova York – e ela crê que a cidade só piorou desde então.

“A cidade mudou muito… Mas o mesmo pode ser dito de tantas outras grandes cidades atualmente. Gentrificação, aluguéis crescentes, pessoas pobres e oprimidas cada vez mais longe dos centros, o mesmo valendo para os artistas… Deste ponto de vista a vida com certeza parecia mais fácil naquela época”, reflete ela.

O que ela guarda de melhor desse período retratado em Meu Diário de Nova York é o próprio trabalho dela: “Eu diria que naquela época eu estava no auge da minha arte, pelo menos em termos gráficos. Em termos narrativos, foi meu trabalho mais ambicioso. Olhando para trás, eu gostaria de ter investido em uma abordagem mais complexa, menos convencional, mas tudo bem”.

A capa de Diário de Nova York, obra de Julie Doucet publicada pela editora Veneta (Divulgação)
HQ

– Prêmio Grampo 2022 de Grandes HQs – Sobre Escuta, Formosa Márcia, de Marcello Quintanilha

Texto originalmente publicado no post com o anúncio do resultado do Prêmio Grampo 2022 de Grandes HQs, vencido por Escuta, Formosa Márcia (Veneta), de Marcello Quintanilha.

O editor Rogério de Campos já chamou atenção para a pequena história secreta e pessoal do Brasil tecida por Marcello Quintanilha a cada obra. Os subúrbios, principalmente fluminenses, servem de pano de fundo para grande parte desse cenário maior construído pelo autor. E em torno de suas tramas ele coloca em prática sua aclamada oralidade e justapõe seus quadros sempre desalinhados. Escuta, Formosa Márcia é o mais recente capítulo dessa bibliografia pessoal de Quintanilha, epítome de sua produção e também seu título mais singular até aqui.

O álbum é ambientado em uma favela do Rio de Janeiro e tem como foco o impacto da corrupção dos poderes públicos na vida do cidadão comum. A enfermeira Márcia administra sua rotina em um hospital público com bicos como cuidadora de idosos num bairro rico. Em casa, ela concilia um relacionamento amoroso pouco inspirado com as tensões com a filha e a proximidade de traficantes e milicianos de sua moradia.

Assim como Tungstênio (2014), Talco de Vidro (2015) e Luzes de Niterói (2018), Escuta, Formosa Márcia também é influenciado pelo neorrealismo italiano e sua busca por um retrato social de uma época. Quintanilha, no entanto, também se distancia dos ares documentais de seus trabalhos prévios. A presença de cores, em uma paleta limitada e alheia à realidade, e o traço caricato enfatizam esse distanciamento. Segundo o próprio autor, ele se aproxima do teatro do absurdo e de Samuel Beckett (a “chave do páthos” da HQ, disse ele) ao criar um enredo em torno da solidão, do isolamento e das dúvidas existenciais de sua protagonista.

Quintanilha já falou mais de uma vez sobre sua rotina de trabalho “absolutamente anárquica”, com ele ocupado em vários projetos simultâneos, sem que seu título mais novo seja necessariamente sua produção mais recente. Por isso é difícil falar em “nova fase” do autor. Ainda assim, Escuta, Formosa Márcia apresenta novas perspectivas para sua produção.

Não faço ideia do que está por vir em um próximo trabalho de Quintanilha e não tenho interesse em saber antes de ter a obra em mãos. Que ele dê continuidade às inovações de Márcia, retome conceitos de obras prévias ou apresente conceitos e abordagens inéditos em seu trabalho, estarei sempre no aguardo da HQ seguinte do mais instigante quadrinista nacional.

A capa de Escuta, Formosa Márcia (Veneta), obra de Marcello Quintanilha vencedora do Prêmio Grampo 2022
HQ / Matérias

Simon Hanselmann fala sobre Zona de Crise: “A HQ foi criada para entreter pessoas com senso de humor e enfurecer e confundir todos os babacas ultrapolitizados”

O quadrinista Simon Hanselman diz que odeia soar cuzão, mas parece ser mais forte do que ele. A estimativa é que 1,8 milhão de pessoas morreram de COVID-19 em 2020, mas o autor australiano tem certeza de que o ano passado foi o melhor da vida dele. Ele trabalhou sem parar, vendeu mais livros do que nunca e não foi distraído por visitas inesperadas.

“2020 foi incrível pra caralho”, comemora Hanselman em conversa com o Vitralizado. “As pessoas estavam trancadas em casa e acabaram ficando sem ter o que ver na Netflix, se viram forçadas a comprar livros!”

A rotina dele durante o primeiro ano da pandemia consistia em trabalhar sem parar até terminar sua página diária, geralmente indo até meia-noite. Vez ou outra ele acabava mais cedo e ficava grelhando carne na companhia da esposa ou deitado no pufe jogando vídeo game.

“Eu me divertia também dando um scroll apocalíptico no Twitter, observando todo mundo simplesmente endoidecendo, e me sentindo vastamente superior a todos”, conta o autor de Zona de Crise, com lançamento previsto para janeiro de 2022, pela editora Veneta, com tradução do quadrinista Diego Gerlach.

Hanselman às vezes se confunde com seus personagens. Ele tem um pouco da alienação, do niilismo, da arrogância e da estupidez de Megg, Mogg, Coruja e Lobisomem Jones. Criado pelo autor em 2012, o quarteto teve suas histórias inicialmente publicadas no Tumblr pessoal do autor. Hoje as HQs saem primeiro no Instagram dele e depois são impressas como zines independentes ou álbuns pela editora Fantagraphics.

Zona de Crise foi publicada no Instagram de Hanselmann entre 13 de março e 22 de dezembro de 2020, em atualizações quase diárias. A série rendeu ao autor um Eisner Award, premiação máxima da indústria norte-americana de quadrinhos, na categoria de melhor webcomic. Ele também foi indicado ao Harvey Awards na categoria Digital Book of the Year.

“É a minha comédia política alucinada, uma explosão de insanidade”, resume Hanselmann sobre seu trabalho em Zona de Crise. “Eu mal tive tempo de processar tudo. Geralmente penso em ternos de negócios: é meu trabalho mais ‘popular’ até hoje, minha narrativa mais longa, e o melhor webcomic de todos os tempos. Eu deixei no chinelo qualquer outro artista do planeta.”

“Eu deveria na real ter ganho o prêmio Nobel de literatura, mas acho que todo aquele sexo anal assustou eles. Ao menos ganhou um prêmio Eisner. Me sacanearam no prêmio Harvey.”

“Fiz com que todos me odiassem”

Página de Zona de Crise, HQ de Simon Hanselmann publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Zona de Crise é o trabalho mais surtado de Hanselmann. Ele capturou o espírito de uma época ao retratar as tensões decorrentes da pandemia do novo coronavírus enquanto as mortes causadas por COVID-19 estavam no pico, muito antes do início das campanhas de vacinação. A dinâmica tóxica entre seus personagens chegou ao ápice enquanto eles tentavam sobreviver à COVID-19.

O álbum de 296 páginas, quase todas compostas pelo mesmo design de 12 quadros, é centrado nas respostas de Megg, Mogg, Coruja e Lobisomem Jones à pandemia e o impacto da disseminação da doença em seu convívio. O livro impresso conta com conteúdo extra, painéis inéditos da versão do Instagram e textos complementares do próprio autor.

Megg encontra conforto para seus temores nas redes sociais, Mogg fica paranóico e dissemina teorias da conspiração, Lobisomem Jones vira astro pornô na internet e depois protagonista de série do Netflix e Coruja passa por uma transformação extrema ao deixar de ser o careta do grupo, principal alvo de bullying de seus colegas, para se tornar um grande líder.

Hanselmann segue focado na dinâmica interna dos quatro, nos excessos e na relação deles com o mundo ao redor. Eles continuam em sua busca incessante por sexo e drogas e maltratando uns aos outros. Apesar de alienados, eles agora precisam lidar com a realidade imposta pela pandemia.

Hanselmann já celebrou seu trabalho com Megg e sua turma pela ausência de “questões políticas”. Em entrevista publicada aqui no blog em 2020, quando Mau Caminho saiu no Brasil, ele disse que seus quadrinhos tratam de “pessoas egoístas que odeiam política e estão às voltas com seu próprio tumulto emocional”. O autor assume que não é o caso de Zona de Crise.

“Sim, Zona de Crise foi super política, foi propositalmente meu ‘quadrinho político’”, quando pergunto sobre o impacto da realidade na obra. “Mas pra mim chega disso, política é um negócio vergonhoso pra caralho. As pessoas que se deixam consumir por isso são chatas pra caralho. Eu vou voltar a escrever sobre junkies, depressão e piadas de piroca.”

O trabalho de Hanselmann foi inclusive facilitado pelos vários absurdos vivenciados pela humanidade desde 2020.

“O que não faltava eram coisas imbecis e loucas vindas de todos os lados. As pessoas realmente piraram ano passado…”, me diz o autor. “Eu meio que queria poder continuar Zona de Crise, para poder tirar onda com essas coisas, colocar elas em perspectiva, mas como eu disse, política é algo vergonhoso.”

“É patético e triste ver comediantes e artistas que um dia respeitei se deixarem consumir por política pura, abandonarem quase completamente a comédia em si. Todos eles parecem exaustos e deprimidos. Enquanto eu estou o mais feliz que já estive em toda minha vida.”

Zona de Crise começa com o início do lockdown da pandemia. Lobisomem Jones se muda com os dois filhos para a casa dividida por Megg, Mogg e Coruja. Um dos quatro pega COVID-19, outro busca pagar as contas com vídeos pornô na internet, eles constroem uma casa na árvore no quintal para abrigar amigos e acabam protagonistas de um reality show do Netflix chamado Anus King. 

Hanselmann nunca se distanciou tanto de sua fonte original de inspiração para os quadrinhos de Megg e Mogg. A dupla foi concebida como uma paródia despretensiosa da série de livros infantis britânicos protagonizados pela bruxinha Meg e seu gato Mog, da escritora Helen Nicoll e do ilustrador polonês Jan Pienkowski, publicados nos anos 1970 e populares no Reino Unido e na Austrália.

“Eu não fazia ideia de como seria, quando comecei Zona de Crise”, me conta o autor. “Eu imaginei que seria um troço de 30 páginas, mas o lance foi ficando cada vez mais louco. Foi basicamente no improviso. Ainda não tive tempo de ler o livro como uma ‘coisa’ grande desde que terminei ele, espero que não seja uma leitura de merda como livro!”

Hanselmann assume que muitos dos rumos da HQ foram ditados pelos comentários frenéticos de cada novo post no Instagram com os painéis inéditos de Zona de Crise. Tanto ao acatar sugestões de seus leitores quanto seguindo rumos opostos àqueles sugeridos por seus seguidores.

“A coisa mais engraçada dos comentários eram todos os babaquinhas políticos raivosos, malucos direitóides e os imbecis de extrema-esquerda, crianças ‘lacradoras’ e arrogantes. Eu fiz com que todos eles me odiassem. Zona de Crise foi criada para entreter pessoas com senso de humor e para enfurecer e confundir todos os babacas ultrapolitizados. Foi divertido.”

E diversão sempre foi o propósito maior do autor: “Minha esposa entrava no estúdio e me via rindo das minhas próprias piadas. Minha declaração de intento com ZC era divertir todo o povo apavorado e trancado em casa, mas principalmente para, de modo egoísta, me divertir, como sempre. Foi realmente divertido. Eu amo pra caralho fazer quadrinhos.”

“Não aguento mais quadrinho-poesia”

Página de Zona de Crise, HQ de Simon Hanselmann publicada pela editora Veneta (Divulgação)

Apesar de sua paixão pela própria profissão, Hanselmann revela estar em busca de uma nova plataforma para compartilhar seus trabalhos. Após ver o Tumblr minguar com suas políticas de censura para conteúdo proibido para menores de 18 anos, ele se vê alvo de suspensões cada vez mais constantes no Instagram e teme perder sua conta.

“Seria um desastre para minhas finanças”, diz sobre a possibilidade de se ver excluído do Instagram. “Comecei a ter que censurar um monte de merda que posto lá. Não tenho planos de serializar trabalho inédito por lá de novo, atualmente procuro por plataformas alternativas. Instagram é pros covardes!”

Ele também não se vê muito confortável como parte da cena de quadrinhos autorais norte-americana. Nascido na Tasmânia em 1981, ele vive em Seattle há vários anos.

“A cena atual na América do Norte é predominantemente composta por maricas chorões. Gosto mais da cena na Europa, da cena do México, da cena britânica. Mas tem babacas chatos em tudo que é canto. Eu só meio que ignoro todo mundo hoje em dia, vivo na minha ilha deserta, não tenho vontade de estar conectado a nenhuma cena.”

“Espero que a cena norte-americana se torne um pouco mais divertida nos próximos anos, com menos ostentação política e resmungos, e mais diversão… Veremos… Tenho curtido o Nate Garcia, ele tem 19 anos e é muito engraçado, faz quadrinhos cretinos e divertidos. Mais coisas assim, por favor. Não aguento mais quadrinho-poesia e punhetas de vanguarda tediosas.” 

Página de Zona de Crise, HQ de Simon Hanselmann publicada pela editora Veneta (Divulgação)