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Posts por data dezembro 2019

Entrevistas / HQ

Papo com Afonso Andrade, coordenador do FIQ: “O FIQ, como um evento calcado nas artes, na educação, na diversidade e na liberdade de expressão, acaba por se tornar um ato de resistência”

Escrevi na terceira edição da coluna Sarjeta sobre os dois principais eventos de quadrinhos do Brasil em 2020, o FIQ, em Belo Horizonte, e a Bienal de Quadrinhos de Curitiba. A 11ª edição do evento na capital de Minas Gerais está marcada pra rolar entre os dias 27 e 31 de maio, sempre com entrada gratuita. Bati um papo com o coordenador do FIQ, Afonso Andrade, para saber mais sobre seus planos e expectativas para o evento.

Você lê o meu texto para a Sarjeta #3 ali no site do Instituto Itaú Cultural. Compartilho a seguir a íntegra da minha entrevista com o responsável pelo FIQ, na qual também conversamos sobre o impacto da crise econômica, social e política pela qual passa o país e o papel do mais tradicional evento de quadrinhos do país em um contexto de conservadorismo aflorado. Ó:

“A proposta do FIQ é apresentar um recorte da produção de quadrinhos no Brasil e no mundo”

Registro da edição de 2018 do FIQ (Divulgação/Glenio Campregher)

O FIQ é hoje o maior e mais importante evento de quadrinhos do Brasil, mas a proporção e a relevância do evento foi algo construído com o tempo. Qual balanço você faz hoje do que o FIQ era quando surgiu, em 1999, e hoje, como esse grande marco bienal das HQs nacionais?

O FIQ surge em 1999 a partir da realização, em Belo Horizonte, no ano de 1997, da 3ª Bienal Internacional de Quadrinhos. Então podemos dizer que, de 1999 a 2005, o FIQ segue a linha da Bienal, muito focada em exposições e  convidados. É também um período de transição no mercado de quadrinhos. As publicações começam a migrar das bancas de revistas para as livrarias e a auto-publicação. A partir de 2007 o festival sofre várias mudanças que levam a sua consolidação como um grande evento para o mercado de quadrinhos e  para a cidade:

-Mudança para  a Serraria Souza Pinto: local com melhor estrutura, maior e que por sua localização gera mais visibilidade;
-Comunicação do evento: o festival passa a ter um foco maior em dialogar com a cidade e pensar no festival como um espaço de formação de leitores e difusão dos quadrinhos para um público além do habitual; 
-Ampliação da participação dos quadrinistas independentes através da  criação de um canal de diálogo direto com quadrinistas de BH e do Brasil e  da participação destes como convidados e expositores;
-Visitação escolar: abertura do festival para a visitação e participação em atividades  de escolas e grupos, como parte da política de formação de leitores. 

A partir daí o FIQ fortalece sua posição como um evento importante no calendário cultural da cidade, sendo, inclusive, sua realização objeto de lei municipal, em 2017. 

O número de exposições diminui, cedendo espaço para quadrinistas que podem apresentar suas publicações e interagir com o público. Mas atividades interativas e de formação crescem, como a rodada de negócios.   O festival tem tido cada vez maior a participação de quadrinistas de todo Brasil, como expositores e/ou convidados. Em 2018 foram mais de 500, vindos de 19 estados e do Distrito Federal. 

Uma das marcas do FIQ está na abertura aos mais diversos estilos e gêneros, na recepção à diversidade das HQs nacionais. Você consegue definir a linha editorial-curatorial do FIQ indo além desse filtro? Como você define o recorte que o FIQ faz e apresenta hoje em termos de autores e publicações?

A proposta do FIQ é apresentar um recorte da produção de quadrinhos no Brasil e no mundo. São duas linhas de “curadoria”, a escolha de convidadas e convidados e temas dos debates e a seleção para a ocupação do “artist alley” e estandes. A curadoria indica quem será convidado, a partir de alguns parâmetros definidos em conjunto com a coordenação do evento: equilíbrio de gênero; representatividade racial e LGBTQ; diversidade de estilos e propostas artísticas; diversidade regional; Mix de quadrinistas veteranos  e novatos; Atenção especial a quadrinistas de Belo Horizonte. A seleção para o artist alley e estandes também segue essa linha. Com isso conseguimos apresentar um painel bem interessante de autores e publicações. Em 2018, somando convidos e expositores, tivemos cerca de 500 quadrinistas presentes, apresentando suas publicações e trabalhos, com o lançamento de, aproximadamente, 300 publicações inéditas ou recentes. 

“Com tanta instabilidade no país, a estratégia é fazer o planejamento e ir lidando com as ‘crises’ na medida do possível”

Registro da edição de 2018 do FIQ (Divulgação/Glenio Campregher)

Quais são as suas expectativas para o FIQ de 2020? Tem alguma novidade ou informação inédita que você já pode adiantar sobre essa 11ª edição?

A expectativa é boa, temos o respaldo institucional e financeiro Prefeitura de Belo Horizonte  realizadora do evento através da Secretaria Municipal de Cultura e Fundação Municipal de Cultura Estamos na fase de planejamento inicial do festival, mas já anunciamos a data do festival que será de 27 a 31 de maio de 2020.

Belo Horizonte é um dos principais pólos das HQs nacionais por conta do FIQ, mas há na cidade uma cena crescente de feiras e eventos de quadrinhos e publicações independentes, vários deles inclusive bancados por editais públicos e leis de incentivo. Você nota essa movimentação crescente em BH? Se sim, o que você acha que impulsiona essa agitação?

Sim, tem crescido o número de feiras dedicadas aos quadrinhos, publicações independentes  e artes gráficas. A cidade já tem uma tradição de feiras livres de artes que vem de muitos anos. Porém, acredito que seja um fenômeno nacional, uma vez que vemos acontecer em outras cidades do país. As feiras são um espaço alternativo aos meios  tradicionais de comercialização das publicações e produtos gráficos. Elas permitem um contato direto entre o artista e o público, proporcionando um diálogo e uma troca, que vai além da simples observação do objeto. Além disso, eliminam um gargalo que é a distribuição, um grande dificultador para quem produz sem um aporte de uma grande editora ou distribuidora. 

“O país vive um retrocesso civilizatório”

Registro da edição de 2018 do FIQ (Divulgação/Glenio Campregher)

Como a crise econômica, social e política que assola o país, somada à crise do mercado editorial, tende a impactar a realização do próximo FIQ?

A curto prazo o impacto maior é econômico. Com a crise, os municípios arrecadam menos e, consequentemente, o orçamentos de todos os órgãos e projetos tem que ser revisto. Além disso, o patrocínio privado também é impactado, assim como as leis de incentivo à cultura. 

O mercado editorial já vive em crise há alguns anos, especialmente por conta do esgotamento do modelo de grandes redes de livrarias. 

Porém é muito difícil prever como estará o país em maio de 2020 e se teremos mais alguma crise no caminho até lá. Com tanta instabilidade no país, a estratégia é fazer o planejamento e ir lidando com as “crises” na medida do possível. 

Desde o dia 1º de janeiro de 2019 o Brasil é governado por um presidente de extrema-direita, militarista, pró-tortura, fascista, misógino, machista, xenófobo, homofóbico e racista que reflete muito do que é a nossa sociedade hoje. Qual você considera o papel de um festival como FIQ dentro desse contexto? 

O país vive um retrocesso civilizatório.  Assistimos a diversas tentativas de censura à produção artística e ao livre pensamento, baseadas em preconceitos, ideias autoritárias e anti-científicas. O FIQ, como um evento calcado nas artes,  na educação, na diversidade e na liberdade de expressão, acaba por se tornar um ato de resistência nessa conjuntura. 

Registro da edição de 2018 do FIQ (Divulgação/Glenio Campregher)
HQ / Matérias

Sarjeta #3: 2020 é ano de FIQ e Bienal de Quadrinhos de Curitiba

Está no ar a terceira edição da Sarjeta, minha coluna mensal sobre quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural. Aproveitei a proximidade de 2020 para escrever sobre os dois grandes eventos de quadrinhos marcados para o próximo ano no país, o Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), em Belo Horizonte, e a Bienal de Quadrinhos de Curitiba.

Conversei com os responsáveis por cada um dos festivais, Afonso Andrade, coordenador do FIQ, e Luciana Falcon, coordenadora do evento paranaense. Falo um pouco sobre o que o público pode esperar de cada evento e apresento as expectativas dos organizadores dos dois festivais. Na entrevista que fecha a coluna, bati um papo com o quadrinista Batista, autor da HQ Máquina de Lavar.

Você lê a terceira Sarjeta clicando no link a seguir: Sarjeta #3: 2020 é ano de FIQ e Bienal de Quadrinhos, os principais eventos do calendário nacional de HQs.

(crédito da imagem que abre o post: Divulgação/Glenio Campregher)

Entrevistas / HQ

Papo com Ing Lee e Larissa Kamei, editoras da coletânea Cápsula – Uma Antologia em Homenagem a Akira: “É essencial a compreensão da complexidade do pós-guerra e seus desdobramentos na sociedade nipônica”

Há dois eventos marcados para o lançamento da coletânea Cápsula – Uma Antologia em Homenagem a Akira. O primeiro, em Belo Horizonte, rola amanhã (12/12), a partir das 18h, na Polvilho Edições (Avenida Olegário Maciel, Centro). O segundo está marcado para a próxima sexta-feira (13/12), em São Paulo, a partir das 19h, na Casa Plana (R. Fradique Coutinho, 1139).

Editada pela quadrinista Ing Lee e pela designer Larissa Kamei, Cápsula é a primeira publicação do selo O Quiabo e teve como ponto de partida para sua criação a chegada de 2019, mesmo ano no qual é ambientado o clássico Akira.

A coletânea reúne HQs de nove autores (Amanda Miranda, Fernanda Garcia, Grazi Fonseca, Ing Lee, Marco Sem S, Monge Han, Nicholas Steinmetz, Paula Puipo e Taís Koshino), todas tendo como inspiração a trama, os temas e os personagens concebidos por Katsuhiro Otomo em sua obra-prima.

“Tendo em vista a importância da obra de Katsuhiro, o meu desejo de criar um tributo à ela já existia antes mesmo de 2019 chegar e ter sido o ano que foi – intenso e instável, seja micro ou macro-politicamente”, conta Ing Lee em papo por email com o blog.

Na conversa a seguir, Ing Lee e Larissa Kamei falam sobre o impacto de Akira em suas vidas, os principais atributos da obra de Katsuhiro Otomo, o diálogo entre o quadrinho e a nossa realidade cada vez mais distópica, o desenvolvimento de Cápsula e os planos futuros para selo O Quiabo. Papo massa, saca só:

“Enquanto no ocidente a radioatividade faz surgir super-heróis – a narrativa do vencedor -, em Akira surgem monstros e bombas que destroem cidades inteiras”

Quadro do trabalho de Amanda Miranda para a coletânea Cápsula

Vocês lembram da primeira vez que leram Akira? Vocês lembram das suas primeiras impressões sobre o quadrinho? O que mais impactou vocês nessa primeira leitura?

Ing Lee: Mesmo tendo sido uma cria da cultura pop japonesa, tendo acesso aos seus produtos culturais desde minha infância, que se passou nos anos 90 e início dos anos 2000, demorei muito a de fato ler/assistir Akira. Primeiro, vi a animação de Akira, provavelmente em 2014. Só depois em 2017 que peguei pra ler o mangá, aproveitando que tinha um e-reader que tinha uma leitura mais confortável, assim devorei ele inteiro em poucos dias. A minha primeira impressão foi a de como achei incrível perceber como a obra influenciou diversas outras que eu tinha visto/lido anteriormente e eram referências para mim, como Tekkonkinkreet, Neon Genesis Evangelion, Matrix e Blade Runner. Então, fiquei com essa sensação de ter finalmente acessado o cerne de todas essas coisas, o que me trouxe uma compreensão maior também do porquê Akira ser considerado um divisor de águas na história da cultura pop mundialmente. Isso certamente me instigou posteriormente a buscar entender melhor os desdobramentos de sua influência e toda a simbologia que carrega.

Larissa Kamei: Com certeza nos meados da minha adolescência, e lembro de ter lido a versão impressa (claro). Ainda acho uma das melhores referências visuais já criadas e de influência imensa.

Quadros do trabalho de Grazi Fonseca para a coletânea Cápsula

Qual vocês consideram o maior mérito do Katsuhiro Otomo em Akira?

Ing Lee: Akira não apenas escancara as feridas do trauma da bomba atômica de uma forma distópica, executando uma repetição de uma história que aterroriza a sociedade japonesa, como também traz a possibilidade de reconstrução, mesmo após a destruição completa – tal qual a sequência após a derrota da 2ª Guerra Mundial, que levou o Japão a se reconstruir por meio desses escombros. Desta forma, Katsuhiro consegue sintetizar um inconsciente coletivo do Japão pós-guerra, com seus destroços e sequelas sociais, políticas e econômicas; que para além de uma representação daquele período, levanta questionamentos que só ganham ainda mais relevância com o passar dos anos.

“A ideia era que cada um produzisse uma HQ experimental, tendo Akira como inspiração, mas não sendo necessariamente no mesmo universo”

Quadros do trabalho de Monge Han para a coletânea Cápsula

Qual o impacto de Akira na sua vida como autora/editora de quadrinhos?

Ing Lee: Como uma quadrinista que se propõe a criar histórias urbanas, a construção dos cenários de Akira sem dúvidas me influencia bastante, com seus recursos de iluminação e movimento. Gosto da ambiguidade presente na narrativa de Akira, como forças do “bem versus mal” são imprecisas e variáveis, não há um herói que salva o dia nem a demarcação de um vilão propriamente dito, mas sim inúmeras zonas cinzas, camadas de complexidade na construção de cada personagem e as situações que seguem fora de seu controle – imersos no presente de um futuro incerto.

Como editora, busco trazer histórias que precisam ser contadas antes que o mundo acabe. Acredito que há muita potência na produção de jovens artistas independentes que estão surgindo e quero proporcionar um espaço para que seja possível compartilhar visões dissidentes, tal como Katsuhiro faz em Akira ao trazer o sentimento nacional de uma sociedade fragmentada e que teme a radiação. Pois, enquanto no ocidente a radioatividade faz surgir super-heróis – a narrativa do vencedor -, em Akira surgem monstros e bombas que destroem cidades inteiras. Quero mostrar o que é estar do outro lado, à margem, e quais produções podem surgir a partir disso, sem necessariamente ser um panfleto político, mas simplesmente pelo ato de ocupar e disseminar os nossos trabalhos, com novos pontos de vista e maneiras de olhar o mundo, como um gesto de anúncio emancipatório e contra-hegemônico.

Larissa Kamei: O maior impacto certamente sempre foi a construção visual narrativa da história. Acho uma referência incrível para várias áreas e que tem uma influência significante.

Quadro do trabalho de Paula Puiupo para a coletânea Cápsula

Como surge a ideia da coletânea Cápsula?

Ing Lee: A coletânea surgiu com a premissa de pegar o timing do ano de 2019, que é justamente o ano em que se passa a história de Akira. Tendo em vista a importância da obra de Katsuhiro, o meu desejo de criar um tributo à ela já existia antes mesmo de 2019 chegar e ter sido o ano que foi – intenso e instável, seja micro ou macro-politicamente. Unindo isso à outra vontade de tocar novos projetos junto com a Kamei, criamos juntas O Quiabo e fizemos do Cápsula a nossa estréia enquanto selo editorial.

Larissa Kamei: Principalmente devido ao ano; não somente a data, acredito, mas todo o contexto que cada vez mais estamos experienciando como um todo e como podemos traçar um paralelo com Akira.

“Fiquei realmente surpresa em como foi possível estabelecer uma narrativa ligando pontos em comum, mesmo tendo premissas e vindo de lugares bem distintos”

Quadro do trabalho de Nicholas Steinmetz para a coletâna Cápsula

Como vocês chegaram aos nomes dos autores que compõem a coletânea Cápsula?

Ing Lee: Reunimos nomes de artistas que têm em seus trabalhos a influência de Akira e que também gostaríamos de trabalhar com – ou já havíamos trabalhado junto previamente. A seleção foi feita por meio de convites. Daí chegamos ao número de 10 artistas, só que no fim o Jão acabou tendo imprevistos e não conseguiu dar conta, e aí ficamos com nove autores, sendo eles: Amanda Miranda, Fernanda Garcia, Grazi Fonseca, Ing Lee (eu, hehe), marco sem s, Monge Han, Nicholas Steinmetz, Puiupo e Taís Koshino.

Quadros do trabalho de Ing Lee para a coletânea Cápsula

Vocês conseguem fazer um comparativo entre o que imaginavam que essa obra poderia ser e a versão que acabou sendo impressa?

Ing Lee: Em nossa proposta editorial, demos bastante liberdade criativa para os artistas e enfatizamos a individualidade de cada um. A ideia era que cada um produzisse uma HQ experimental, tendo Akira como inspiração, mas não sendo necessariamente no mesmo universo, com os mesmos personagens ou uma mera extensão daquilo. As limitações eram basicamente de cores (preto e vermelho) e páginas. Perguntamos pra cada um a quantidade de páginas que dariam conta de fazer durante o período de produção, fechando numa variação de 4, 6, 8 e 10 páginas para cada história. Eu e Kamei acompanhamos os artistas, uns mais e outros menos, tentando intervir o mínimo possível em seu processo criativo e respeitando o ritmo próprio de cada um dentro do prazo estabelecido.

Creio que por toda essa abertura, ficou meio vago sobre o que poderia ser. A ideia de experimentação foi realmente levada a sério nisso, hahaha. E os resultados finais me agradaram bastante, então posso dizer que foram experimentos de sucesso!

Larissa Kamei: Sempre existem expectativas em relação como será a narrativa, mas acredito que as narrativas dos artistas cumpriram com todas essas e me surpreenderam também muitas vezes. O projeto gráfico em si sofreu muitas poucas alterações do que esperei ser o resultado final, o que também enxergo como ponto positivo da HQ.

“A abordagem de ciclos e transformação, de destruir para assim reconstruir, foi algo que permeou em todas as narrativas”

Quadros do trabalho de Taís Koshino para a coletânea Cápsula

O que mais surpreendeu cada uma de vocês ao ver todos os trabalhos da Cápsula reunidos? Houve algum aspecto dessa coletânea que chamou mais atenção de vocês?

Ing Lee: Eu e Kamei decidimos que a ordem das histórias se daria pela forma que elas comunicavam entre si. Essa tarefa de “curadoria” ficou por minha conta e fiquei realmente surpresa em como foi possível estabelecer uma narrativa ligando pontos em comum, mesmo tendo premissas e vindo de lugares bem distintos, ainda foi possível criar uma comunicação harmônica entre elas. Quis começar pela história do Monge, “Energia Pura”, justamente pelo tom de abertura que ela possui. Aí depois fui conectando os pontos: seguindo pela Fernanda com o “Cápsulas Espertas”, de uma sociedade movida pela produtividade, que se liga com a narrativa dos personagens cabeça de cápsula de “Planos”, da Puiupo, e se desconstrói nas histórias de Grazi e marco, “2019” e “Sankofa” respectivamente, que têm um tom mais abstrato e solto. Tais explosões que se reintegram no “Labirinto” do Nicholas, retomando uma narrativa mais figurativa e trazendo os personagens de Akira. E na sequência final, vem Taís Koshino com “Para além da forma”, sobre fluxos e recomeços, que prossegue amanhecendo em “Que se exploda”, a minha HQ, e fechamos com o trágico fim de “Vertigem” de Amanda Miranda.

Gostei muito do que foi produzido e perceber a individualidade de cada um dos autores contida em suas respectivas histórias. Achei interessante como a abordagem de ciclos e transformação, de destruir para assim reconstruir, foi algo que permeou em todas as narrativas.

Larissa Kamei: A forma como todos autores encaram a obra de Katsuhiro Otomo da sua ótica. Acho fascinante ver o processo de cada um, suas similaridades, diferenças e ao mesmo tempo como conseguem adequar uma visão e uma inspiração para seu estilo de narrativa.

Quadro do trabalho de Marco Sem S para a coletânea Cápsula

Eu gosto muito do texto de introdução para a coletânea, principalmente dos paralelos que a Ing Lee aponta entre a obra do Katsuhiro Otomo e o nosso presente. Até onde você veem esses paralelos indo? Digo, vocês são otimistas ou pessimistas? Vocês acham que podemos chegar em uma realidade tão trágica quanto aquela apresentada na HQ?

Ing Lee: Recentemente, apresentei algumas palestras e oficinas tendo como temática a cultura pop japonesa e suas origens, durante o festival Katsudo Shashin, que trazia as primeiras animações do Japão. Creio que acabou que muito do que foi estudado a respeito se ligava bastante com Akira, que é um sintoma cultural de todo esse contexto onde é inserido. Por isso, é essencial a compreensão da complexidade do pós-guerra e seus desdobramentos na sociedade nipônica. E para além de uma leitura dentro desse recorte, a distopia de Neo-Tokyo em Akira ainda traz convergências globais: civilizações em estado de crise, com o aumento da violência urbana e da força do discurso progressista pós-humano, seguidos de protestos e repressão militar… Questões que estão explodindo diante de nossos olhos neste ano de 2019. Às vezes, durante este ano, eu sinceramente me senti vivendo em diversos universos distópicos unidos juntos – e Akira é um deles. Fica difícil permanecer otimista diante de tudo isso, mas creio que não temos muita escolha a não ser resistir. Não há muita volta depois do estrago já feito, mas é preciso sempre termos um olhar para o passado, justamente pra entendermos o presente e sermos capazes de construir novos futuros.

Larissa Kamei: Vejo muitos paralelos com o nosso presente, porém tento me manter otimista. Acho que sempre é de suma importância a consciência da atualidade, porém não encará-la como fatídico.

“Acho que ainda existe uma certa carência no mercado gráfico de encarar os projetos com uma experiência gráfica, e que seja necessário acatar mais riscos”

Quadro do trabalho de Fernanda Garcia para a coletânea Cápsula

O que vocês podem falar sobre o O Quiabo? Como o selo surge? Vocês já têm algum próximo projeto em vista?

Ing Lee: O Quiabo surge primeiramente da imensa compatibilidade e complementariedade dos nossos trabalhos, hahaha. Somos opostas como yin yang, embora tenhamos ritmos de trabalho similares – somos igualmente fritas! Porque a Kamei tem essa atuação mais técnica, da produção gráfica e design, enquanto eu não consigo nem fazer linhas retas… Brincadeiras à parte (hehe), acho que nossas linhas de trabalho se completam bastante. Ao unir o útil ao agradável, pela nossa amizade e o desejo de continuar trabalhando juntas (a Kamei é também produtora gráfica do Selo Pólvora), criamos O Quiabo. A nossa proposta enquanto dupla n’O Quiabo não se limita somente ao campo editorial, mas sim como um eixo de experimentação gráfica. Temos já alguns planos, mas ainda nada fechado e definido que possamos anunciar agora. Estamos tentando digerir a experiência do Cápsula antes de partir pra próxima, porque se não a gente acaba emendando direto em outro trabalho e precisamos de um respiro pra fechar todos esses ciclos que 2019 nos proporcionou. Porém, posso afirmar com toda certeza de que estamos nos programando pra lançar uma publicação nova pro FIQ 2020! Fiquem de olho 🙂

Larissa Kamei: O selo surge de uma vontade imensa de produzir, principalmente num viés mais experimental. Acho que ainda existe uma certa carência no mercado gráfico de encarar os projetos com uma experiência gráfica, e que seja necessário acatar mais riscos. Temos projetos em vista, principalmente pensando em formas editoriais que proponham ainda mais nossos objetivos.

Quadro do trabalho de Amanda Miranda para a coletânea Cápsula

Para encerrar: o que vocês veem de mais interessante sendo feito hoje no formato de histórias em quadrinhos?

Ing Lee: Acho que a experimentação gráfica por meio dos quadrinhos anda sendo muito interessante. A busca por formatos para além do usual, seja no próprio conteúdo, dos desenhos e histórias, como também as próprias publicações impressas, com outros métodos de impressão, encadernação e suportes, certamente é algo que me deixa muito empolgada. E tenho a impressão de que a cena quadrinística está se ampliando e sendo ocupada por uma gama diversa de pessoas, o que confere uma pluralidade de temáticas e estilos que tiram a gente da mesmice daquelas narrativas monopolizadas pelo mesmo tipo de gente (homens brancos cis e heterossexuais de classe média/alta). Acho que as próprias feiras gráficas têm tido um forte papel nisso, de não apenas selecionar artistas fora desse status quo, como também trazer propostas que acolhem diretamente essas produções vindas de corpos que estavam à margem dessa cena. Além disso, claro, os novos projetos editoriais que andam pipocando também vão ganhando espaço. Isso tudo se retroalimenta e vai oxigenando essa vanguarda dos quadrinhos, que tá efervescendo e desafiando essas distopias onde nos encontramos.

Larissa Kamei: Na minha opinião, gosto muito de ler narrativas pessoais, ou pelo menos que contenham o cunho do artista dentro de seus quadrinhos. Apesar de entender que é impossível produzir sem deixar rastros de pessoalidade, aprecio muito projetos que se aprofundam nisso. Entendo que a história em quadrinhos seja uma das formas mais pessoais de se contar uma narrativa por esse motivo, por isso minha imensa apreciação pelo gênero.

A capa da coletânea Cápsula – Uma Antologia em Homenagem a Akira

Entrevistas / HQ

Papo com Gabriela Güllich e João Velozo, autores de São Francisco: “A foto não torna o desenho mais verdadeiro, ela constrói a narrativa junto com o desenho”

Está marcado para as 18h de sábado (7/12), em João Pessoa (PB) o lançamento de São Francisco, reportagem em quadrinhos assinada pela quadrinista e jornalista Gabriela Güllich e pelo fotojornalista João Velozo. A sessão de autógrafos será no bar Recanto da Cevada (Rua Bancário Waldemar de Mesquita Três Ruas, Bancários).

São Francisco é fruto de uma jornada de 15 dias e mais de 1000 Km percorridos por Güllich e Velozo, saindo de Belém do São Francisco, no Pernambuco, e indo até Monteiro, na Paraíba, passando por todas as cidades do Eixo Leste da transposição do Rio São Francisco.

O livro de 110 páginas em preto e branco mescla as ilustrações em nanquim da quadrinista com os registro feitos pelo fotógrafo para tratar de três temas principais: água, seca e as obras da transposição. O diálogo mais próximo do álbum é com a trilogia O Fotógrafo, dos franceses Didier Lefèvre e Emmanuel Guibert.

“Nosso objetivo nunca foi usar a foto como uma ferramenta de ‘comprovação’ visual e sim como uma ferramenta de narrativa”, diz Güllich em relação à estrutura pensada por ela e seu parceiro de projeto.

Além da estética singular, também chamo atenção para as fontes consultadas pelos autores e para a decisão dos dois em não se apresentarem como personagens da HQ – hábito muito comum e nem sempre necessário em projetos de jornalismo em quadrinhos.

Na conversa a seguir, Güllich e Velozo falam sobre o ponto de partida de São Francisco, apresentam alguns bastidores da reportagem e expõem algumas de suas reflexões decorrentes da produção do álbum. Papo massa, saca só:

“Desde o início o formato foi pensado em quadrinho + foto”

Quadros de São Francisco, HQ de Gabriela Güllich e João Velozo

Qual foi o ponto de partida do livro? Vocês sempre estiveram certos em relação ao formato HQ + fotografia?

João: Joguei a ideia pra Gabi há uns dois anos, a gente já tinha trabalhado juntos pra Deutsche Welle e depois também publicamos na VICE Brasil (num modelo mais tradicional, foto minha e texto dela) e achei que tava na hora da gente tentar trabalhar com desenho e fotografia, então desde o início o formato foi pensado em quadrinho + foto. Na época ficou só na ideia porque ainda tinha muita coisa pra amadurecer. Aí no passado a Gabi publicou a HQ Quatro Cantos de Um Todo pelo Sesc Paraíba e já tava trabalhando na HQ-reportagem dela pro TCC sobre agricultoras assentadas na PB e eu estava trabalhando numa reportagem na mesma região do nosso itinerário, e resolvemos que seria um bom momento pra colocar a ideia em prática. Fui premiado com o Yunghi Grant 2018 por esse trabalho, o que garantiu meus custos da viagem, e a Gabi já vinha juntando dinheiro pra isso também. Traçamos um itinerário, fizemos nosso orçamento, decidimos a pauta e em janeiro desse ano fomos pra estrada.

Vocês levaram quanto tempo entre o início do projeto e o lançamento? Que tipo de planejamento vocês fizeram antes de dar início à apuração das histórias?

Gabriela: Considerando como ponto de partida o dia que a gente realmente sentou pra planejar custos, itinerário, pautas etc., que foi em meados de novembro do ano passado, até o lançamento (que aconteceu em novembro em Fortaleza e teremos mais um em João Pessoa e outro em Recife agora em dezembro), deu mais ou menos um ano de produção. Primeiro, nós traçamos um itinerário que seguiu as cidades do Eixo Leste da Transposição. Em seguida, nós escolhemos a pauta que abordaríamos em cada região pra facilitar a estimativa de tempo que passaríamos em cada cidade. E aí veio a questão do orçamento que envolveu basicamente passagens de ônibus, locomoção nas cidades, alimentação, estadia, custos com equipamento e custos com possíveis imprevistos.

Em relação a esse planejamento, o quanto ele mudou a partir do momento em que vocês saíram viajando para produzir o que viria a ser o livro?

João: Tivemos alguns gastos a mais com locomoção e o planejamento com o itinerário variava muito de acordo com as cidades, mas isso era algo que a gente já esperava. Às vezes pode acontecer de perder um dia inteiro de trabalho esperando uma única entrevista e às vezes parece que um dia inteiro rende mais do que uma semana.

“Monto uma estrutura de reportagem e adapto pra narrativa de uma história em quadrinhos”

Quadros de São Francisco, HQ de Gabriela Güllich e João Velozo

Como foi a dinâmica de trabalho entre vocês? O quanto a Gabriela influenciou nos trabalhos do João e vice-versa?

João: No começo da viagem ainda rolou umas adaptações, a Gabi precisava de referência visual pros desenhos e eu precisava focar na fotografia, então fiquei com minha câmera e ela com uma menorzinha mais pra filmar as coisas que interessavam nessa parte de narrativa sequencial do quadrinho.

Como foi o trabalho de decupagem do material que vocês reuniram? Vocês precisaram deixar muita coisa de fora?

Gabriela: A gente já viajou pensando nas três pautas principais, que são os capítulos do livro: água, seca e obra. Então na hora de selecionar os relatos, buscamos aqueles que mais correspondiam a esses temas. Nós entrevistamos muitas pessoas, então tentamos não colocar relatos que fossem muito parecidos e prezamos por aquelas histórias que tinham um pouco mais detalhes. Conseguimos utilizar um pouco mais da metade das entrevistas.

Encerrado esse trabalho de apuração, vocês chegaram a construir um roteiro fechado? Se sim, como foi esse trabalho?

Gabriela: Todo dia assim que a gente chegava do trabalho eu já abria o notebook pra transcrever as entrevistas, isso facilitou muito a produção do roteiro depois porque eu já tinha a fala completa pronta, era só fazer a decupagem. Fiquei responsável pelo roteiro porque já tinha essa experiencia prévia com quadrinho então fui organizando como geralmente faço: monto uma estrutura de reportagem e adapto pra narrativa de HQ.

Quadros de São Francisco, HQ de Gabriela Güllich e João Velozo

Gabriela, quais materiais você utilizou durante a produção desse livro?

Gabriela: Eu trabalho basicamente com tradicional, então levei um caderninho e uma caneta pra fazer rascunhos e anotações durante a viagem e quando realmente fui pra produção do livro trabalhei tudo com nanquim, fiz a arte-final toda na caneta e usei o Photoshop depois só pra ajustes de níveis e contraste mesmo.

Por que a opção pelo preto e branco? Em algum momento vocês cogitaram fazer o livro em cores?

João: O livro sempre foi pensado em preto e branco mesmo, é como eu fotografo na maioria dos meus trabalhos e é como a Gabi prefere trabalhar também.

É explícita a influência de O Fotógrafo no trabalho de vocês, principalmente pela mescla “fotografia + quadrinhos”. Esse trabalho foi a principal influência de vocês durante a produção de São Francisco? Houve alguma outra obra que influenciou o desenvolvimento do quadrinho de vocês?

João: Quando tive a ideia do projeto, emprestei O Fotógrafo pra Gabi dar uma olhada. Acho que foi o pontapé inicial mas não a principal influência, não acho que tenha tido algo muito específico, o livro é uma mistura de vários autores que gostamos junto com o nosso olhar.

“Prefiro deixar o foco da narrativa totalmente na pessoa que conta a história”

Foto presente no álbum São Francisco, HQ de Gabriela Güllich e João Velozo

Um padrão habitual em obras de jornalismo em quadrinhos está nos jornalistas se colocando como personagens das obras. Por que a opção de vocês em não se retrataram na HQ?

Gabriela: Eu prefiro deixar o foco da narrativa totalmente na pessoa que conta a história, é como trabalhei nas minhas produções anteriores também. Particularmente não acho que me desenhar ouvindo a pessoa seja algo necessário na narrativa – e isso eu acho um ponto legal da fotografia: você sabe que tem alguém fotografando, mas o foco visual é em quem tá do outro lado da lente, e é assim que eu prefiro trabalhar minhas reportagens.

Eu gosto de uma reflexão proposta pelo Joe Sacco no livro Reportagens que ele questiona “como conciliar a subjetividade inerente aos desenhos com a verdade objetiva que se aspira em uma matéria jornalística?”. Eu repasso a pergunta para vocês: como? Vocês acreditam que o uso de fotografias auxilia nessa aspiração à “verdade objetiva”?

Gabriela: Acho que seria um pouco presunçoso da nossa parte dizer que chegamos à fórmula secreta de como deixar o desenho ou até mesmo a foto totalmente objetivos. O que a gente busca é ser fiel à história que nos foi contada, mas é impossível retirar toda a subjetividade de um relato até porque o próprio relato já vem carregado da subejtividade de quem conta. O que podemos fazer é buscar estar de olhos e ouvidos abertos durante uma entrevista, tentando não trazer nossas impressões pessoais antes de ouvir o que a pessoa tem a dizer. Nosso objetivo nunca foi usar a foto como uma ferramenta de “comprovação” visual e sim como uma ferramenta de narrativa. A foto não torna o desenho mais verdadeiro, ela constrói a narrativa junto com o desenho.

“Nosso objetivo nunca foi usar a foto como uma ferramenta de ‘comprovação’ visual e sim como uma ferramenta de narrativa”

Quadros de São Francisco, HQ de Gabriela Güllich e João Velozo

Vejo muitos quadrinistas independentes lamentando a falta de um editor. Também sei como é difícil para jornalistas freelancers trabalhar sem o auxílio de um editor. Não consta no expediente da reportagem em quadrinhos de vocês nenhum crédito a editores. Vocês sentiram falta de alguém exercendo essa função? Como foi o trabalho de edição desse quadrinho?

Gabriela: Não tive editores nos meus últimos trabalhos em quadrinhos então fui pegando a experiência que adquiri pra montar essa estrutura do livro, mas já trabalhei com editores em matérias só com texto mesmo e sim, faz falta ter esse olhar. O que ajudou nessa parte foi contar com a Ana Gabriella, do projeto gráfico, e a Isabor, nossa revisora. Os apontamentos que elas faziam me ajudaram a construir melhor a edição do quadrinho.

João: Quando começamos a parte da elaboração do livro, falei com a Gabi que gostaria de alguém experiente pra fazer o trabalho de edição de fotografia, por isso convidamos a Cris Veit pra cuidar desse aspecto.

Eu queria saber um pouco sobre a experiência de vocês com o financiamento coletivo. O livro de vocês entrou no Catarse em uma temporada muito concorrida da campanhas de financiamento por conta da Comic Con Experience. Que balanço vocês fazem dessa experiência?

Gabriela: Olha, foi uma correria e tanto. A gente não vai lançar o livro na CCXP, mas eu tô em processo de mudança então não daria pra adiar o lançamento pro ano que vem, acabou que tivemos que pegar essa onda de catarses que é esse período de setembro a dezembro. No começo ficamos com um pouco de receio por não ser algo muito conhecido, o jornalismo em quadrinhos ainda tá ganhando espaço – tanto no mundo do jornalismo quanto no mundo dos quadrinhos -, ainda mais que resolvemos misturar desenho e foto… A campanha deu super certo, conseguimos arrecadar mais do que a meta prevista e foi bem legal perceber o interesse das pessoas no jornalismo independente.

“O que fica é a história e nossa profissão é ser testemunha dessa história, aconteça o que acontecer”

Quadros de São Francisco, HQ de Gabriela Güllich e João Velozo

Uma pergunta que tenho feito bastante aqui no blog: desde o dia 1º de janeiro de 2019 o Brasil é governado por um presidente de extrema-direita, militarista, pró-tortura, fascista, misógino, machista, xenófobo, homofóbico e racista que reflete muito do que a nossa sociedade é hoje. Vocês são otimistas em relação ao nosso futuro?

João: Não acredito que caiba ao jornalista ser otimista ou pessimista, enquanto jornalistas decidimos abdicar das nossas vivências e vozes para sermos veículos para a voz daqueles que mais precisam. No caso atual do Brasil, creio que devamos focar no nosso trabalho, mesmo com a máquina estatal comprovadamente sendo usada para espalhar mentiras, não há mentira no mundo que supere o julgamento da história. E se nós fizermos nosso trabalho bem feito, acordando todos os dias pela manhã com o ímpeto de contar historias, de contar a verdade, de ser essa caixa de ressonância para as vozes de quem está sofrendo, nós seremos peças fundamentais para que no tribunal da história os fatos sejam considerados e a verdade prevaleça. Esse governo vai passar, e nós passaremos por ele, pode durar quatro anos, pode durar vinte, o que fica é a história e nossa profissão é ser testemunha dessa história, aconteça o que acontecer.

No que vocês estão trabalhando agora? Vocês já têm algum próximo projeto em vista?

João: Por enquanto estamos mais focados em entregar as recompensas dos nossos apoiadores e fazer o livro circular, ainda vamos fazer a venda do livro digital em inglês também então temos vários detalhes a serem cuidados desse projeto ainda.

Gabriela: O João tem engatado projetos de fotorreportagem e eu tenho meus projetos de jornalismo em quadrinhos. Tenho flertado com a possibilidade de trabalhar um pouco com terror, venho conversado com uma roteirista e estamos vendo no que vai dar. Por enquanto, a única coisa certa mesmo é focar em colocar o São Francisco pra rodar.

Para encerrar: o que vocês veem de mais interessante sendo feito hoje no formato de histórias em quadrinhos?

Gabriela: Acho muito interessante o trabalho que a Carol Ito e o Pablito Aguiar vêm desenvolvendo com perfis e matérias curtas nesse campo do jornalismo em quadrinhos. Também tenho gostado bastante de acompanhar o trabalho de quadrinistas que conheci recentemente, como a Brendda Maria e a Débora Santos, do Ceará e a Luiza (ilustralu), do RN.

A capa de São Francisco, HQ de Gabriela Güllich e João Velozo
Entrevistas / HQ

Papo com Lobo Ramirez, editor do selo Escória Comix: “O que realmente importa é a essência de ir contra qualquer pensamento ignorante, falsos moralismos e fanatismos”



Escrevi na segunda edição da Sarjeta, minha coluna sobre quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural, sobre os trabalhos dos quadrinistas e editores Lobo Ramirez e Panhoca à frente dos selos Escória Comix e Pé-de-Cabra. Comentei algumas obras publicadas por eles e chamei atenção para a importância dos disparates lançados pelos dois em tempos de conservadorismo crescente como aqueles que estamos vivendo.

Compartilho aqui no blog as entrevistas que fiz com os dois autores antes de escrever a coluna, tratando da história de seus selos, de algumas das percepções deles em relação à cena de HQs na qual eles estão inseridos e sobre planos futuros de suas editoras.

No papo com Lobo Ramirez, ele ainda lembra de seu primeiro contato com alguns dos autores de obras que hoje compõem o catálogo da Escória Comix – como Arame Surtado (Ketacop – A Anticop), Emilly Bonna (Esgoto Carcerário) e Victor Bello (O Alpinista). Você lê a Sarjeta #2 clicando aqui, lê a entrevista com Panhoca clicando aqui e lê a seguir a minha conversa com Lobo Ramirez. Ó:

“Eu precisava de um nome que deixasse bem claro qual era a linha da editora…”

Quadro de Victor Bello presente em Úlcera Vórtex

Como surge a Escória Comix? Quando surge a Escória Comix?

Não lembro exatamente, mas acho que foi 2013 ou 2014 que comecei a lançar o zine ESCROTUM pelo selo Gordo Seboso. Era de forma despretensiosa, só pela diversão de fazer quadrinhos e por conta disso comecei a frequentar feiras de publicações independentes, como a Feira Plana e a Ugra Fest. Fui entendendo a maneira que as editoras funcionavam e como era publicar de forma independente. Depois de um tempo fui percebendo que a maioria das publicações eu não gostava, nenhum problema em ter uma esmagadora maioria de material que a gente não gosta sendo publicado, mas eu  sempre senti falta de ter o meu nicho também, então em 2016 decidi começar uma editora que agrupasse autores que seguissem uma linha editorial bem clara e específica, quadrinhos toscos, radicais, mal-educados, grosseiros, vulgares, despretensiosos e por último mas não menos importante com humor. 

Eu sabia que se mantivesse o foco todo dia, toda semana, todo mês, todo ano, uma hora ia dar certo, e se não desse, pelo menos eu tentei e poderia desistir sem peso na consciência.  Sigo focado na Escória Comix.

Por que o nome Escória Comix?

Eu precisava de um nome que deixasse bem claro qual era a linha da editora. Na época eu estava lendo Transmetropolitan, do Warren Ellis, e tinha um termo no quadrinho que era Nova Escória, achei interessante e tomei o ESCÓRIA como nome. A ideia é que tudo que é considerado marginal, desprezível, insignificante, tosco, estranho  pela sociedade é a escória. 

“Aos poucos a Escória Comix vem se tornando autossuficiente”

A capa de Esgoto Carcerário, HQ de Emilly Bonna publicada pelo selo Escória Comix

Qual é o público dos quadrinhos da Escória Comix?

Existe o público que eu gostaria de estar atingindo, ou que eu acho que poderia atingir, e o público de fato. Vou me basear em parte numas estatísticas do Instagram e  Facebook pra responder essa pergunta. A maior parte é de São Paulo, depois vem as cidades de Rio de Janeiro, Curitiba, Brasília, Porto Alegre e Fortaleza. 48% do público é de pessoas entre 25 e 34 anos, 24% tem entre 18 e 24 anos e 20% de pessoas entre 35 e 44 anos, sendo 79% de homens. A maior parte, eu percebo, é de pessoas que estão acostumadas a consumir material independente e alternativo. No geral o público da Escória Comix é bem variado mas não tanto como eu gostaria. Existe uma parte que compra os quadrinhos e gosta e uma parte menor de leitores fiéis que SÃO a escória e tem a mesma paixão que eu com essa tosqueira. Sou eternamente grato a essa gangue. Quem é sabe. 

A Escória Comix é um negócio rentável? Você administra a editora dentro de algum plano de negócios?

Não é, mas aos poucos a Escória Comix vem se tornando autossuficiente. Administro tudo sozinho e sou desorganizado e nem tenho formação ou conhecimento na área. A verdade é que eu me baseio na tentativa e erro, algo deu certo, tento replicar, se deu errado, tento não repetir. Total intuição. Sempre penso o que gostaria publicar e depois o que preciso fazer para realizar, nessa entram os outros produtos, tipo bonés, meias, jaquetas, etc. Cada muamba comprada ajuda no custo dos quadrinhos, que ainda não vendem tanto para se tornarem rentáveis. 

A capa do segundo volume de Úlcera Vórtex, de Victor Bello

Você vive exclusivamente da Escória Comix?

Não. Eu trabalho com ilustração e desenho para tudo que alguém precisar, como rótulos de cerveja, camisetas, capa de álbuns, logomarcas, etc…

Qual o maior sucesso de vendas da Escória Comix?

Sem sombra de dúvidas, eu diria que é o Úlcerta Vortex – Volume I do Victor Bello, mas  não tenho exatamente os números em mãos, pode ser que o NÓIA- Uma História de Vingança, do Diego Gerlach, tenha vendido mais, ou o Asteróides, já que se encontra praticamente esgotado.  

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Victor Bello? O que você vê de mais especial no trabalho dele?

Foi quando me indicaram o zine dele, Feto em Conserva. Foi uma explosão de frescor e diversão ler aquele zine A5, preto e branco, em sulfite, grampeado, simples, mas potente. O Victor Bello tem um traço próprio bem desenvolvido e claramente possui um estilo de narrativa com abordagem 

“Acho que a única influência que eu sempre tive nas obras é sobre a capa, de resto é totalmente com o autor, eu sou meio chato com a capa”

A capa de O Alpinista, de Victor Bello

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho da Emilly Bonna? O que você vê de mais especial no trabalho dela?

O Luiz Berger me enviou uns perfis de Instagram de ilustradores que poderiam ser a cara da Escória e o mais foda era um que usava o nome de NECROSE , era a Emilly Bonna. Curti demais os desenhos nojentos de criaturas deformadas, sempre amei monstrinhos. Ela tem um traço próprio e, desde que conheci o trabalho dela, só a vejo melhorando .

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho da Arame Surtado? O que você vê de mais especial no trabalho dela?

Mais uma vez eu acho que foi o Luiz Berger que me mostrou pelo Instagram e de cara já curti os desenhos dela, ela claramente tinha as mesmas referências que eu, ou bem parecidas: filmes trash dos anos 80 e muito heavy metal. 

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Fabio Vermelho? O que você vê de mais especial no trabalho dele?

Foi em alguma Revista Prego e depois na Revista Pé-de-cabra.  Sem sombra de dúvidas, é o desenho dele, o uso de hachuras é um tesão, sempre gostei desse tipo de traço e o Fábio Vermelho realmente sabe usar.  Não tem uma pessoa que, mesmo não gostando, não diga que ele desenha bem.

“Estou fechando uma parte das publicações de 2020 e por enquanto tem umas sete, sendo três delas de autores que nunca foram publicados pela Escória”

Quadro de O Alpinista, de Victor Bello

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Diego Gerlach? O que você vê de mais especial no trabalho dele?

Acho que foi com algum gibi que ele publicou pela Prego, talvez o Ano do Bumerangue, ou em alguma outra antologia, mas só fui conhecer mesmo o trabalho dele depois que a gente se conheceu pessoalmente numa Desgráfica (não lembro qual ano). O Gerlach chegou num nível de consciência do próprio trabalho que só alguém que produziu bastante e por um longo tempo chega. O domínio da linguagem e o uso dos símbolos do próprio quadrinho são os brinquedos dessa criatura abissal que, por algum motivo sinistro, não ascende ao alto escalão.

Como é a dinâmica do seu trabalho como editor com os autores da Escória?

A primeira vez que me falaram algo do tipo “bom trabalho de editor” eu fiquei sem entender, porque pra mim eu não estava fazendo nada. Eu perguntava se a pessoa queria fazer um quadrinho e o autor entregava, eu só precisava decidir junto com o autor a capa que seria mais legal e mandar pra gráfica, qual era o trabalho? Mas depois, principalmente nas últimas publicações, eu influenciei em grande parte, pedindo pro autor manter um certo número de páginas, mas também não deu certo porque eles não mantiveram – eu sempre digo que a prioridade era a história, se fosse ficar melhor, tudo bem. Acho que a única influência que eu sempre tive na obra é sobre a capa, de resto é totalmente com o autor, eu sou meio chato com a capa e acredito que ela tem que ser impactante, porque isso ajuda a própria divulgação e venda do quadrinho. 

Depois fui descobrir que editor é o cara chato que pede pro autor mudar coisas no PRÓPRIO trabalho. Eu até entendo que em muitos casos a visão de um editor pode melhorar a história, mas pra ser sincero sempre li as histórias dos autores da Escória e nunca tive vontade de mudar nada, meus comentários sempre foram de apoio e o quanto eu estava achando boa a história, mas aos poucos estou começando a propor algumas ideia, porém para isso o autor tem que estar aberto.  No geral, acho que total liberdade é o melhor caminho.

A capa de NÓIA – Uma História de Vingança, de Diego Gerlach

Qual balanço você faz das publicações da Escória em 2019?

Comecei esse ano com altas expectativas, pela primeira vez comprei um calendário daqueles que dá pra ver todos os meses de uma vez e anotei todas as minhas pretensões de lançamentos do ano, eram mais ou menos uns 12 ou 13 títulos e até agora acho que consegui publicar seis. Então o balanço é: pense alto, faça metade que já é muito. Estou feliz principalmente com a qualidade do material publicado em 2019, pra mim foi o melhor ano da Escória.  

Você tem alguma meta para os quadrinhos da Escória para 2020? Você tem em mente algum número de publicações para o próximo ano?

Acho que a meta é tentar manter o ritmo de publicações, ter uma certa frequência de material novo e fresquinho para nossos mutantes do esgoto.  Vou tentar arriscar umas coisas diferentes também em 2020 mas por enquanto não posso falar nada. Estou fechando uma parte das publicações de 2020 e por enquanto tem umas sete, sendo três delas de autores que nunca foram publicados pela Escória. 

“Os três pilares para a Escória continuar existindo são: vendas no site + não levar calote das lojas + feiras de publicação”

A capa de O Deplorável Caso do Dr. Milton, de Fabio Vermelho

O que você vê de mais interessante acontecendo hoje nos quadrinhos brasileiros?

Sinceramente, eu não sei. Quase não leio mais quadrinhos. Acho que talvez o surgimento de várias obras que são consideradas ‘graphic novels’?  Minha percepção é que a 10 anos atrás tinha mais antologias e agora parece que tem mais autores publicando quadrinhos fechados. Mas eu falo muito da cena independente, específica que eu vivo. Acho que também que a quantidade de mulheres fazendo quadrinhos, às vezes parece que tem um monte agora porque a percepção é de um lugar que não tinha quase nenhuma, mas na real ainda tem muito pouca mina, a tendência é só crescer, logo logo vai aparecer a próxima novela gráfica dos quadrinhos brasileiros que vai ser de uma autora. 

Vivemos tempos muito conservadores, qual você considera o papel de uma editora de quadrinhos underground como Escória dentro desse contexto?

Os “quadrinhos underground” fazem parte de uma contracultura que é totalmente oposta ao conservadorismo, mas já que você citou esse termo específico quero dizer que  não gosto de usar o termo underground comix ou quadrinhos underground, porque pode acabar virando apenas um rótulo estético de certas influências, que eu não nego que a Escória Comix tenha com certeza, a gente bebe da fonte, mas o que realmente importa é a essência de ir contra qualquer pensamento ignorante, falsos moralismos e fanatismos. Uma editora que se propõe a ser um caminho fora disso tudo precisa buscar sempre estar de acordo com essa essência dentro do que se propõe que é publicar quadrinhos.

Quadro de O Deplorável Caso do Dr. Milton, de Fabio Vermelho

Qual a importância de feiras e eventos de quadrinhos e publicações independentes para a manutenção das atividades da Escória? 

Importância VITAL, os três pilares para a Escória continuar existindo são: vendas no site + não levar calote das lojas + feiras de publicação.  Nenhuma dessas coisas por si só segura a bronca no fim do mês, mas todas elas juntas já dão um respiro e aquela injeção na parada toda. As feiras são pontos cruciais é quando a gente pode fazer lançamentos e ter aquela resposta instantânea, divulgar o trabalho direto no olho no olho, conversar com várias pessoas que estão no mesmo rolê e ver uma parte do que está sendo produzido no momento.   

A capa de Asteróides – Estrelas em Fúria, de Lobo Ramirez
Entrevistas / HQ

Papo com Panhoca, editor do selo Pé-de-Cabra: “A gente vai continuar sendo um cadáver sentado na poltrona da sala, fedendo e apodrecendo e não deixando ninguém confortável”

Escrevi na segunda edição da Sarjeta, minha coluna sobre quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural, sobre os trabalhos dos quadrinistas e editores Lobo Ramirez e Panhoca à frente dos selos Escória Comix e Pé-de-Cabra. Comentei algumas obras publicadas por eles e chamei atenção para a importância dos disparates lançados pelos dois em tempos de conservadorismo crescente como aqueles que estamos vivendo.

Compartilho aqui no blog as entrevistas que fiz com os dois autores antes de escrever a coluna, tratando da história de seus selos, de algumas das percepções deles em relação à cena de HQs na qual eles estão inseridos e sobre planos futuros de suas editoras.

No papo com Panhoca, ele ainda lembra de seu primeiro contato com alguns dos autores de obras que hoje compõem o catálogo da Pé-de-Cabra – como Cristiano Onofre (Realidade), Pedro D’Apremont (Notas do Underground) e Galvão Bertazzi (Vida Besta). Você lê a Sarjeta #2 clicando aqui, lê a entrevista com Lobo Ramirez clicando aqui e lê a seguir a minha conversa com Panhoca. Ó:

“Investi meu 13º pra fazer acontecer esse lance de ser um selo de HQ independente”

Quadros de Pinacoderal: Rudimentos da Linguagem, de Diego Gerlach

Como surge a Pé-de-Cabra? Quando surge a Pé-de-Cabra?

Essa é um pergunta difícil. Acho que surgiu como ideia na minha cabeça num aniversário de 9 anos, quando ganhei Elektra – Assassina e Skreemer de um tio que tava sendo obrigado a por os gibis pra fora de casa porque casou e faltava espaço. Ou talvez em 2012, quando conheço o Diego Gerlach na primeira Gibicon e ele expande o meu conhecimento de HQ brasileira pra fronteira de outra paixão minha, o punk. Como empreitada mão na massa mesmo, ela surge em 2017, quando o Alex Vieira foi pra Portugal e percebi um vácuo deixado pela Prego, pela Samba, pela Gibi Gibi e tanta outras antologias que sempre foram meu formato favorito de HQ. A partir daí foi investir meu 13º pra fazer acontecer esse lance de ser um selo de HQ independente.

Por que o nome Pé-de-Cabra?

A lista de nomes que eu escrevi antes de finalmente fechar em Pé-de-Cabra é enorme. Desde “Pau no Cu do Mundo” até “Pé-de-Cabra” foram uns 30 ou 40 nomes. O nome acabou ficando pela utilidade do objeto. É o mal pelo mal, o vandalismo, o desrespeito à propriedade privada, a solução suja e sem volta pra abrir algo. A ideia de mundo contemporâneo na cabeça da classe média medíocre é a dualidade de ideias. Bem x Mal. Branco x Preto. O pé-de-cabra se posiciona instantaneamente do lado mal, que é o lado em que quero estar posicionado. Convido todo mundo a digitar Cidadão de Bem no Google e entender que a escolha é bem fácil.

“É o mal pelo mal, o vandalismo, o desrespeito à propriedade privada, a solução suja e sem volta”

A capa do quadrinista francês Pochep para a Pé-de-Cabra #1

Qual é o público dos quadrinhos da Pé-de-Cabra?

Eu ainda tô tentando entender isso. Eu sempre achei que o público era de adolescentes e jovens que pareciam comigo há uns anos, mas cada vez mais vejo que não consigo fazer uma distinção etária do meu público. Acho que é uma grande parte das pessoas que estão incomodadas com o cenário nacional e buscam na HQ uma diversão que sabem que não estão financiando alguém com ideia errada. E também acho que é um público que busca mais o entretenimento do que a “arte” (seja lá o que isso signifique). O cenário de HQ brasileira parece apostar muito nesse lado de sensibilidade e poesia sentimental. A nossa linha editorial aponta pra um lado mais inflamável do entretenimento. Acho que isso reflete bastante no tipo de público que temos. A gente vende muito para pessoas banguelas também.

A Pé-de-Cabra é um negócio rentável? Você administra a editora dentro de algum plano de negócios?

Depende. Desde que botei a grana pra Pé-de-Cabra #1, eu nunca mais precisei injetar grana ali dentro. Mas isso porque eu não pego nada pra mim e pago todas as minhas viagens do bolso. Então se é um selo que tem zero gastos e todo lucro fica nos cofres para publicar a próxima edição, então é rentável. Se eu tentasse viver disso eu tava muito fodido. Acho que nem os peixes grandes devem conseguir fazer isso. Angeli, Zimbres, Adão. Repara que todo mundo é artista plástico agora.

A capa da quadrinista Emilly Bonna para a Pé-de-Cabra #2

Você vive exclusivamente da Pé-de-Cabra? Você tem alguma carreira em paralelo à administração da editora?

Nada. Eu sou funcionário público (bibliotecário) fervoroso e torço pela estatização de absolutamente tudo. Não vejo a hora de comer a comida da sua geladeira, Ramon.

Qual o maior sucesso de vendas da Pé-de-Cabra?

Sem contar camisetas? Se eu investisse só em roupas eu quebrava a C&A em dois meses. Mas, ainda é muito cedo pra falar. A Pé-de-Cabra #1 vendeu super bem. O Notas do Underground tá a menos tempo em circulação, mas não me surpreende em nada se esgotar no próximo semestre também. Todas as publicações acho que já se pagaram, com exceção do Pinacoderal, que saiu não tem nem um mês mas tá vendendo acima da média. Acho que é porque os autores são muito bonitos fisicamente.

“Sou funcionário público (bibliotecário) fervoroso e torço pela estatização de absolutamente tudo”

Arte da quadrinista Fabiane Langona publicada na primeira edição da revista Pé-de-Cabra

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Diego Gerlach? O que você vê de mais especial no trabalho dele?

Meu primeiro contato foi com Ano do Bumerangue, pra mim um marco na HQ nacional. Até então eu não havia visto uma apropriação de personagens norte-americanos para se contar uma história interessante. A maior parte dos trabalhos que via acontecendo isso eram paródias de humor (normalmente fracas) ou histórias mais do mesmo, num nível meio amador. Até hoje eu não entendo direito, mas é dessas HQs que releio com certa frequência, talvez pelo teor antimperialista-voodoo da coisa toda. Dessa primeira parte do trabalho do Gerlach eu gosto muito da quantidade de informação por quadros. Tudo pulsa ação o tempo todo. Cada objeto em cena tem uma energia inerte pronta a explodir. E basta dar uma olhada em qualquer história do Pinacoderal pra perceber que ele sabe como fazer uma cena de ação como poucos. Mas vai além. É fácil pegar uma história do Gerlach dessa época e cair nessas de achar que é só porradaria e é isso, vlw. Tem algo de anárquico na narrativa dele, diálogos bem construídos e frases de efeito que funcionam bem. É perceptível que o cara leu um monte de filosofia de gente puta antes de cheirar cola e escrever aquelas coisas ali. Ver essas histórias todas se perdendo pelo fechamento de revistas e tiragens esgotando foi um estopim pra que enchesse o saco dele até lançarmos o material todo coletado. Fiquei muito feliz com o resultado, mas ainda assim ressalto que passa longe de ser o melhor material dele. O trabalho atual dele em Know Haole ultrapassa o nível nacional, podia estar facilmente saindo na Fantagraphics. Chega de confete pra ele agora, senão me estendo por mais seis páginas.

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho da Emilly Bonna? O que você vê de mais especial no trabalho dela?

Eu não tenho certeza, mas acho que foi pelo Instagram. Deve ter sido o Pablo Carranza quem me mostrou. A Emilly é um ponto fora da curva. Você conta nos dedos os artistas que você olha os primeiros trabalhos e já tem uma estética tão bem definida. Compare os trabalhos mais antigos de diversos artistas com o trabalho atual e vai ver o quanto o traço e a consistência das histórias muda. É cedo pra falar, mas acho que o dela não vai se alterar tanto: ela começou com uma estética e temática tão própria que você reconhece que é ela sem pensar duas vezes. É tudo tão desesperançoso e pustulento e nojento que dá sensação de o gibi ter sido impresso em esgoto. Deviam inventar uma tinta que literalmente fedesse pra imprimir os gibis dela. E ao mesmo tempo, toda aquela desgraça nojenta te prende porque as histórias são boas demais e o senso de humor dela é fantástico. Sou grande fã.

A capa da coletânea Pinacoderal: Rudimentos da Linguagem, obra de Diego Gerlach publicada pelo selo Pé-de-Cabra

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Pedro D’Apremont? O que você vê de mais especial no trabalho dele?

D’Apremont é um desses caras que conheci antes de conhecer trabalho dele. Foi bem fácil de simpatizar com ele porque nós temos um (péssimo) gosto musical muito parecido. Acho que nossos primeiros diálogos foram sobre camisetas de bandas que estávamos usando ou algo assim. O D’Apremont tem uma coisa muito especial no trabalho dele porque ele subverte o que a gente vai esperar de um gibi de metal. O traço é extremamente limpo, cores bonitas e leves, facilmente seria um desenho animado da Nickelodeon se ninguém lesse o texto e prestasse atenção nas histórias. E ele tem consciência do quão chato o metal, o punk, e todo rolê do rock consegue ser. Basicamente ele consegue fazer gibis de música bons porque ele reconhece o quão tosco é grande parte daquilo tudo. Metade dos caras que tão por aí fazendo HQ de humor se levam a sério demais. Metade dos caras do planeta se levam a sério demais. O Pedro faz isso da forma certa: ele leva o desenho a sério e tira sarro de todo o resto. Conversa com ele e vai ver que ele estudou MUITO tudo que é cartunista e estilos. A quantidade de referência que ele tem é absurda. Ainda torço pra Netflix animar algo dele.

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Galvão Bertazzi? O que você vê de mais especial no trabalho dele?

O Galvão Bertazzi além de ser muito bonito também tem uma ótima lábia. Ele devia ter seguido a carreira de galã global nos anos 90, mas preferiu ir pelo lado difícil da vida. Meu primeiro contato foi um gibi que ele me vendeu num evento da Itiban que eu fui pra comprar um gibi do Eduardo Medeiros. O formato de tiras é algo que muito artista começa por ali, mas são poucos os que conseguem desenvolver uma piada em tão poucos quadros. Galvão tem uma potência enorme nisso. Rola muito esse papo sobre o que o humor tem ou não tem que ser. Ele sabe direcionar isso. Ele sabe que o humor ofende e ele sabe muito bem QUEM ele quer ofender. Ele quer ofender o teu tio, o tio dele, a classe média quase inteira, os religiosos fanáticos, os pseudorrevolucionários, bom… Ele quer ofender praticamente todo mundo que MERECE MUITO ser ofendido. E faz isso com classe e ritmo absurdos. São poucos os dias que não tem tiras (e reacionários inflamados nos comentários) nas redes deles. Galvão foi o primeiro cara que fui atrás para publicar algo solo dele. Fico feliz que isso saiu da conversa.

“Dou sorte de trabalhar com autores que já conheço há alguns anos, sei mais ou menos como se comportam, o que comem e outras coisas que vi no Discovery Channel”

Quadros da HQ de Bruno Guma para a segunda edição da Pé-de-Cabra

Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Cristiano Onofre? O que você vê de mais especial no trabalho dele?

Eu conhecia o Cris de uns trabalhos dele pra revista Prego e de umas tiras que ele tinha na internet. Essas tiras e cartuns faziam uma vibe adolescente triste que nunca foi muito minha praia, mas sempre gostei muito dos desenhos dele. O Cris tem uma capacidade muito grande de ser sucinto em poucas palavras. A maior parte dos trabalhos dele que viralizam seguem uma estrutura básica: um desenho mais solto e uma frase curta grifada. Adiciona o elemento carioca de deboche com uma visão forte sobre a forma como consumimos o entretenimento e nos relacionamos e vai chegar ao trabalho dele. Eu vejo muito de uma versão carioca do David Shrigley no trampo dele. Ele é muito bom em provocar e tirar sarro de gente que nem percebe que tá sendo tirado sarro. É fácil demais imaginar famoso ficando putinho com o trabalho dele.

Como é a dinâmica do seu trabalho como editor com os autores da Pé-de-Cabra? O quanto você desenvolve e influencia na obra ao lado dos seus autores?

Eu tento dar o máximo de liberdade para desenvolverem os trabalhos. Se algo não tá funcionando aí eu converso e tento pensar junto com o autor sobre alternativas pra rolar melhor. E cortar asas porque no final a gente é um selo fodido financeiramente. Acabamos sendo muito limitados pelos preços de impressões. Até agora não tivemos muitos problemas, mas a maior parte das publicações são de histórias que já existiam, então pouca coisa foi realmente alterada. Dou sorte também de trabalhar com autores que já conheço há alguns anos, sei mais ou menos como se comportam, o que comem e outras coisas que vi no Discovery Channel.

A capa do álbum Notas do Underground, de Pedro D’Apremont

Qual balanço você faz das publicações da Pé-de-Cabra em 2019?

Esse ano foi péssimo pro país. A gente toma uma atrás da outra, então eu me sinto até meio culpado da Pé-de-Cabra fechar o ano BEM. O ano foi ótimo pra gente! De duas publicações, fechamos o ano com seis, todas vendendo legal e com um retorno bom do público e da crítica, sem tirar o pé e fazendo o que a gente mais gosta: HQ de maloqueiro. Fecho o ano feliz com as apostas e olhando positivo para 2020.

Você tem alguma meta para os quadrinhos da Pé-de-Cabra para 2020? Você tem em mente algum número de publicações para o próximo ano?

Os últimos lançamentos já renderam o dinheiro necessário para imprimir a terceira edição da revista. Estou trabalhando nisso desde já. Além disso tem outras duas ou três HQs que talvez saiam em 2020. Tudo sempre depende de eu conseguir manter a peteca sem cair, vender bem, não ter filhos, não ser preso, morto, etc etc.

O que você vê de mais interessante acontecendo hoje nos quadrinhos brasileiros?

É clichê falar em diversidade, né? Mas é bom ver quanta coisa nova vem surgindo e está para surgir. Eu gosto muito dessa corrente que tá rolando abaixo do grande radar. Nós temos a Mino, a Veneta, a Zarabatana, o Pipoca e Nanquim publicando uns medalhões nacionais e alguns autores novos mais garantidos de retorno e abaixo deles tem a galera independente, que é onde meus olhos estão. A gente pode apostar mais. A gente não vive unicamente disso.

Eu gostei muito dos lançamentos da Escória Comix. Destaco a HQ de estréia da Arame Surtado, Ketacop; Esgoto Carcerário, da Emilly Bonna; e finalmente o Fábio Vermelho fazer coisa em português. Fiquei feliz de ver um novo gibi dos O Miolo Frito que são sempre um destaque; João B. Godoi e Kainã com trabalhos novos; lá no sul teve uma HQ nova da Tietbo que me deixou com vontade de ler algo mais longo dela. Isso só falando na galera que tá imprimindo. O Instagram, mesmo com o alcance reduzido, parece proliferar cada vez mais gente. Tem muita gente boa por lá. Pietro Soldi, Iara Darkka, Fronha, João Silva… enfim, a lista vai longe. É difícil escolher só alguns destaques.

“A gente não usa dinheiro público e tá cagando pro que qualquer pastor, cidadão de bem, dentista, e odiadores no geral pensam”

A capa do álbum Realidade, do quadrinista Cristiano Onofre

Vivemos tempos muito conservadores, qual você considera o papel de uma editora de quadrinhos underground como a Pé-de-Cabra dentro desse contexto?

Conforme eu falei ali em cima, a Pé-de-Cabra tá voando baixo, o radar não acha a gente. Isso nos dá uma liberdade maior para bater e abordar temas polêmicos. A gente não usa dinheiro público, a gente não tem necessidade de retorno financeiro e a gente tá cagando pro que qualquer pastor, cidadão de bem, dentista, e odiadores no geral pensam. O pirú dos políticos não funciona? Poxa. Eles ficam putinhos com desenhos? Eu fico ~bolado~. Tua vizinha fica pistola se alguém fala do diabo? Que pena, né? Essa galera toda não saca o que eles fizeram com quem mora desse lado do muro. A gente morreu. Sem entrar no Belchior, a gente continua morto. Mas a gente vai continuar sendo um cadáver sentado na poltrona da sala, fedendo e apodrecendo e não deixando ninguém confortável. PEGA FOGO, CABARÉ.

Qual a importância de feiras e eventos de quadrinhos e publicações independentes para a manutenção das atividades da Pé-de-Cabra?

As feiras e os eventos em geral são nossa principal forma de contato direto com o público. Claro que a gente consegue passar vergonha online, mas ao vivo a gente tem a oportunidade de mostrar que não estamos com a saúde bucal em dia e despertar sentimentos de pena no público. Grande parte das nossas vendas são feitas dessa forma. Além disso podemos levar em consideração que todas nossas publicações são pensadas de acordo com o conteúdo. Por exemplo: o Notas do Underground é um gibi com foco no público que frequenta shows, um gibi colorido, em formato revistona. Ele tem aquele formato e aquele papel específico pensado em como o conteúdo e as cores ficam nele. Isso acontece em todas as outras publicações. Esse tipo de coisa só vai ser perceptível com o público tendo contato com o nosso material. Tirando são Paulo e Curitiba, quase nenhuma cidade tem lojas especializadas em HQ independente. Fica difícil conseguir mostrar nosso trabalho sem esse contato olho no olho onde prevalece minha lábia barata de vendedor alcoólatra. Quando o público para pra olhar minhas coisas nos eventos eu consigo conversar um pouco com eles e indicar melhor o que eu acredito que eles vão gostar.

A capa da coletânea Vida Besta, de Galvão Bertazzi