Papo com Wagner Willian, o autor de Lobisomem Sem Barba

Você já leu Lobisomem Sem Barba? Por ter sido lançado por uma editora com muitas histórias em quadrinhos em seu catálogo, a Balão Editorial, e pela presença da obra em quase todas as lojas especializadas em gibis que conheço, eu achava que o trabalho do Wagner Willian era uma HQ. Não é. Nos últimos seis meses li e reli o livro umas três vezes, pra entender realmente o que era o Lobisomem Sem Barba, seus protagonistas e o enredo picotado e não-linear da obra. Entre referências que vão do clássico Freaks a Nietzche, passando por Sopranos, Blade Runner, Chris Ware, o seriado do Batman dos anos 60 e mais um monte de citações e inspirações que estão longe da minha bagagem, o autor criou uma espécie de mescla maluca de coletânea de contos pulp com enredos de Carlos Zéfiro e traços que lembram a arte de Goseki Kojima em Lobo Solitário. Sim, essa bagunça toda assim mesmo – e não sei se ficou claro pra você, mas isso é um tremendo elogio.

Passei a acompanhar os trabalhos do Wagner Willian em seu site e no Facebook. Entre esculturas, exposições, pinturas e ilustrações, ele começou publicar algumas páginas de quadrinhos. O mesmo cara responsável por um dos livros mais estranhos que li recentemente estava produzindo uma HQ. Ele já tinha minha atenção, então ganhou minha curiosidade. Aliás, ele não está trabalhando em uma HQ, mas duas, além de uma participação bem legal na Nébula. O Maestro, O Cuco e A Lenda está em disputa por uma das cotas do Proac e Bulldogma está sendo produzida tanto pro papel, sem previsão de lançamento, quanto pro cinema, em fase de captação de recursos. Isso tudo parece ser apenas a ponta do iceberg de um universo muito mais complexo em construção na cabeça de Wagner Willian. Batemos um papo bem legal. Olha só o que ele me contou:

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Como você define o Lobisomem Sem Barba? Ele tem uma vibe pesada de quadrinhos, parece uma coletânea de pequenos contos e ilustrações e lembra uma publicação pulp, mas com um acabamento mó bonito. No seu site você diz que é uma ‘literatura de pelos’. O que é o Lobisomem sem Barba para você?

Essencialmente, um livro de minicontos ilustrados. Dentro disso, Lobisomem Sem Barba é antes de um personagem, uma realidade em excesso. Um cenário mental onde alguém ou alguma coisa está prestes a cometer um crime. Isso se faz através daquilo que eu gosto de chamar de metalinguagem sobrenatural, como se a criatura que dá título à obra estivesse sempre por ali, a espreita. Não a vemos. Mas sentimos sua presença pelo cheiro. Digo isso porque o livro tem essa pegada mais sensorial. Em quase todo o texto há algum elemento peludo – seja um adjetivo felpudo, personagens, histórias cabeludas ou para citar o próprio livro quando “falhas humanas criam pelos em sua língua”.

A ideia de um lobisomem sem barba pode ser entendida como algo quase sobrenatural. Podemos estender a interpretação como metáfora sobre um serial killer também. Fato é que eu queria algo que caminhasse mais como uma sugestão dentro de uma realidade fantástica.

A Aninha da Gibiteria me indagou uma vez sobre onde colocar esse Lobisomem: na sessão de terror, literatura do cotidiano, quadrinhos? Se tivessem outros subgêneros como pulp que você citou mais pop satânico, filosofia de kung-fu barata, literatura “subnatural”… gosto de pensar que apertando um pouquinho sempre cabe mais um.

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E como foi a produção desse livro? Ele é composto de textos, ilustrações e fotos das ilustrações. Você tinha um método de criação? Fazia uma coisa antes da outra? Quanto tempo você levou pra criar o Lobisomem Sem Barba?

O site onde apresento meu trabalho de pintura não possui um servidor para hospedar as imagens, para isso ele vai buscar de outras fontes. No caso, o facebook. Isso me forçou a usar a rede social. Mas é claro que eu não iria usá-la para dizer como o dia está lindo hoje ou replicar outras postagens, achincalhando este ou aquele partido. Estava disputando espaço na timeline com esses minicontos até supor um caldo suficiente para publicação impressa. Foram alguns meses nessa brincadeira até começar a organizar os minicontos pelo teor dos textos. Se eu quisesse publica-los em um mesmo livro, algo deveria fazer a liga. O fio condutor foi justamente o pelo desse lobisomem imberbe.

Vale mencionar aqui que o livro foi desenvolvido em um sistema de camadas. A primeira parte são postagens de minicontos seguidas por comentários. Nesses comentários acompanhamos o que se passa na realidade da personagem que escreve esses minicontos.

Como representar isso na ilustração? Foi a partir daí que veio a ideia de explorar o efeito fotográfico sobre as ilustrações com as ondulações do papel, desfoque, a combinação com outros elementos, funcionando como um deslocamento da ilustração, ou seja, uma outra camada. Rolava um efeito de ressonância e acabei julgando uma boa solução. Claro que isso surgiu devido a uma limitação técnica. Eu não tinha como escanear as imagens, resolvi na máquina fotográfica mesmo. Já estava tudo lá. Os comentáriosreagindo as postagens como uma outra camada de texto; o desenho e a fotografia do desenho, trabalhando em um nível acima do que está ali representado.
O processo de criação de texto e imagens levou um ano aproximadamente. Depois de ter fechado com a Balão Editorial, tinha um ano ou mais até a publicação do livro. Alterei o bicho até o último dia. Obrigado Natália!

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O livro tem muita informação. Fiquei indo e voltando e demorei muito mais pra terminar do que quando leio uma HQ, por exemplo. É muita referência, citação e detalhe. Desde o começo da produção do livro, você sempre teve consciência de todo mundo, toda obra, tudo que você queria citar e todas as conexões que queria fazer?

Que nada. Tive que esquartejar o lobisomem e remonta-lo inúmeras vezes. Se fosse um Frankenstein seria ainda pior. Ele foi tomando forma a medida que eu avançava com os novos textos e ilustrações. Tive que montar um organograma para não me perder ali dentro. Fui reconhecendo algumas vozes, direcionando o estilo do texto para essa ou aquela personagem. Suellen, Isabel Paulo e tantos outros, se escolhermos uma e lermos apenas os textos onde ela aparece, perceberemos um padrão.
De uma maneira geral, o livro se desmembra em duas partes. A primeira, como um livro único, são postagens seguidas pelos comentários. A segunda segmentada em cinco capítulos de minicontos.
Vamos considerar a primeira parte como sendo A PRESA.
Temos os minicontos mais humorados, carregados de referências pop, o tom é mais insinuante como uma stripper em um polidance fazendo gracinhas.
A segunda parte pode ser entendida como O PREDADOR.
Descobrimos que a realidade não é bem o que pensávamos que era. O texto fica mais grave, o surrealismo e a insanidade entram em cena. Temos os seguintes capítulos:
Bulldogma: lemos sobre um cansaço moral.
Notas de uma Sobrenaturalidade: hora do realismo fantástico assumir as rédeas. É a fuga da realidade.
Souvenir: desse deslocamento do real, apesar do lirismo que se inicia, baixamos totalmente o nível. Estamos na boca do lobo. São os impulsos mais baixos onde a saliva e o sangue escorrem.
Taxidermia, a arte de dar forma à pele: a abstração, a doença mental.
Epílogo Mortal: o que é a realidade?

E eu queria tirar um dia pra listar todas as referências a filmes, livros e autores que você faz no livro. Você vai de Freaks a Nietzche, passando por Sopranos, Blade Runner, Chris Ware, o seriado do Batman e mais um monte de coisa que tenho certeza que deixei passar. E tem essa vibe maluca de livro pulp, com literatura de cordel e catecismo do Carlos Zéfiro. Acho que faz parte um pouco da nossa cultura brasileira, essa mescla e mistura com outras culturas. Ao mesmo tempo, tá no cerne de vários produtos da cultura pop esse mesmo monte de citações, referências e menções a outras obras. Ainda tem a internet, que deixa esse universo ainda mais complexo e interessante. O Lobisomem é fruto dessa mistura imensa? Você vê o livro refletindo algum aspecto em particular dessa nossa realidade?

Matou a charada! É exatamente isso. Existe um termo que estou tentando lembrar sobre o uso de várias referências sobrepondo-se em uma única obra. Quase um palimpsesto onde se reescreve em cima dos vestígios do texto anterior. Nossa leitura diária dos fatos é fragmentada. Entramos em assuntos desconexos sem perceber clicando em um link, mudando o canal da tv, ou mesmo algo que seu amigo lembrou de soltar na mesa mas que nada tinha a ver com a conversa. Se não temos esse tipo de linearidade o que dirá um lobisomem sem barba? Então escrevi essa ficção fragmentada em minicontos – que também podem ser lidos independentemente – preocupando-me mais com o substrato que se faz do texto e imagens.

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E claro, hoje ninguém precisa publicar nada no papel. A internet taí pra quem quiser apresentar seu trabalho pro mundo. Mas o Lobisomem Sem Barba ganha um peso imenso pelo fato de ser impresso. Aliás, acho que o fato dele ser impresso faz parte até da própria narrativa da obra. Faz sentido pra você? Você sempre viu o Lobisomem como um livro impresso?

Sabe, existe uma coisa com a escultura que a pintura não consegue atingir que a presença física e espacial. O livro é um objeto, foi pensando como tal na escolha de seu formato pequeno e robusto. Pensando como leitor, algo que eu tivesse prazer de levar por aí. Os textos são breves. A forma do livro como está cria uma relação mais íntima. Tudo nele foi pensando nessa proximidade. Agora, a leitura digital também me interessa. Assim como no jogo de videogame há o modo história (finito) e o online (infinito), criei uma página do Lobisomem Sem Barba na rede social para essa literatura online agir do mesmo jeito periférico, criando novos desdobramentos, ampliando a vida útil do livro em um cenário sob constante movimento. Ali você encontrará uma série de “extras” como uma espécie de making off, pôsteres, quadrinhos sobre cenas alternativas, um álbum intitulado evidências.

Você tem divulgado páginas de dois projetos em quadrinhos no Facebook e publicou uma série no Nébula. Fazer HQs é algo novo pra você? São métodos de criação muito diferentes dos seus trabalhos com ilustrações, pinturas e esculturas?

Sempre fui um leitor de quadrinhos. Sempre gostei de estar bem acompanhado por uma boa novela gráfica. E sempre entendi o esforço desumano que é criar uma HQ. Todo mundo aqui sabe que o quadrinho não é o primo pobre da sétima arte, é uma outra linguagem onde texto e imagem funcionam de maneira distinta. Mas se fizéssemos um paralelo ao cinema, apenas em relação à algumas funções, você seria o produtor, o roteirista, o desenhista, diretor, diretor de arte, de fotografia, todos os atores, do continuísta até o cara que anuncia à toda equipe que hora do break. É algo realmente insano. Só resolvi encarar tudo isso quando se tornou inevitável. Não dava mais para continuar fugindo. Felizmente consigo encontrar similaridades em todas elas. Da mesma maneira que você resolve acrescentar mais sal ao arroz que está cozinhando para acentuar o sabor, acrescenta-se uma fala à personagem dentro de uma cena que irá fazer toda a diferença, ou uma determinada cor à pintura que estava faltando. Acredito que exista uma sinestesia em todo o meu trabalho, mas não tenho um método de criação. As coisas funcionam mais ou menos assim: tenho uma ideia e vou atrás de desenvolve-la. Tento imaginar como ela funcionaria melhor, se dentro de uma pintura, escrita ou sei lá que diabos. A partir disso, o suporte escolhido vai me dizendo o que fazer, para onde leva-la. E aqui é onde a mágica acontece, de repente o argumento original deixa de existir para dar lugar outras formas mais interessantes que surgiram no processo.

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E o que você pode falar sobre esses dois projetos? Tem o Maestro, O Cuco e a Lenda e o Bulldogma, né? Pelo que lembro do Lobisomem Sem Barba e vi em algumas páginas que você divulgou do Bulldogma, parece que essas obras possuem algumas conexões, certo? E esses livros já têm editora e previsão de lançamento?

Deixei o roteiro de Bulldgoma nas mãos de uma produtora, a Spectra Filmes. Estão na fase de captação de recursos. Por muito pouco não entramos na Fox. Estavam privilegiando produção para série. Bulldogma está mais para o longa metragem. Se live action ou animação, ainda não sei. O que vier é lucro!
O Maestro, o Cuco e a Lenda, que também é uma novela gráfica, está em fase de desenvolvimento. Alguns detalhes a conecta ao Bulldogma, um Fusca 76 e uma personagem não-humana que não irei citar para não melar a surpresa. Você sabe que é um prazer meio fetichista ficar criando essas conexões. Faz parecer que você está criando um universo próprio. Aqui teremos a história sobre a relação do neto com seu avô e de seu avô com a música, envolvidos por uma maldição medieval que atravessa os séculos. Para citar um trecho do storyline: “Se o nosso passado nos define, podemos construir uma memória falsa? Passaram-se quinze anos desde que esteve ali, de volta à chácara que um dia pertenceu ao seu avô. Antes de acompanhar a mudança dos móveis junto à transportadora, resolve caminhar pelo seu passado, o lugar onde viveu a infância. Curiosamente, percebe que nada havia mudado e algumas lembranças não deveriam mesmo existir.”
Estou concorrendo ao Proac com ele. Vejamos o que acontece. Torçam por mim, amigos!

Imagino que todo mundo que você cita no Lobisomem Sem Barba tem alguma influência no seu trabalho, mas em termos de quadrinhos, você tem algum autor ou alguma obra que são referências maiores pra você? No Lobisomem você cita o Chris Ware, já vi desenhos seus do Alan Moore, mas algumas ilustrações suas me lembram muito o Goseki Kojima do Lobo Solitário. Faz sentido?

Total. Goseki Kojima e Kazuo Koike escreveram uma obra máxima. Lobo Solitário me partiu ao meio quando ainda exercia meus nove anos de idade. Sobre as influências, acredito que por aceitação ou negação, tudo nos influência. O que muda em nosso desenvolvimento sobre os fatores culturais, sociais e econômicos, é justamente aquilo que filtramos consciente ou subconscientemente.

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E além de quadrinhos. Hoje, durante a produção desses trabalhos novos, o que você tem lido, visto e ouvido?

Estava me devendo há uma década a leitura de uma obra-prima. Recentemente saudei esta dívida. Walden, de Henri Thoreau. Na literatura infantil, A Pequena Marionete de Gabrielle Vincent. Dentro das explorações visuais em relação a tudo o que um livro pode ser, a literatura infantil ainda ganha de lavada. Pelos quadrinhos, dá gosto de ver a preocupação de Chris Ware em relação a isso. Não tive a oportunidade de ler o Building Stories, mas pela mãe do guarda, o que é aquilo? Here de Richard McGuire, que ao que parece, será lançada no Brasil. Vale ressaltar sempre o Playground de Berliac. Da última safra de lançamentos: Perpetum Mobile de Diego Sanchez, Pílulas Azuis de Frederik Peeters.
O cinema tem deixado um pouco a desejar. Faz um bom tempo que não assisto ao que a gente pode chamar de filmão. Os seriados talvez estejam coagulando essa força. True Detective, Breaking Bad, Walking Dead. Não queria dar nenhuma indicação óbvia, mas é o que temos. Infelizmente, cancelaram uma série de gostava muito, e isso já tem um tempo. Se estivesse rodando, sem dúvida ainda a estaria acompanhando. Carnivale, senhoras e senhores. Uma puta série!
Só pra citar um filme. Jauja, um excelente sonífero.

No seu site tem um trabalho seu que retrata o Bolsonaro como um alfineiteiro. Imagino que essa imagem esteja refletindo sua posição política. Você acha importante associar seus trabalhos com suas crenças políticas?

Quando se trata de literatura ficcional, não. O que vale em uma boa ficção são as crenças da personagem, jamais as do autor. O último que eu quero ver ali é o autor falando bobagens. A literatura é o lugar onde o escritor deve morrer para dar vida aos personagens.

Muito tem se falado sobre a representação das mulheres na indústria do entretenimento – e o tópico tem sido crescente no mundo dos quadrinhos. No Lobisomem Sem Barba há muitas personagens femininas e os trabalhos que você publicada na internet também são bastante protagonizados por mulheres. Esse debate e a reflexão cada vez maior sobre a presença das mulheres nas obras de ficção e os papeis destinados a ela passam pela sua cabeça enquanto você produz? É um tema relevante pra você?

Quem protagoniza a história em Bulldogma é uma ilustradora freelancer totalmente independente e isso foi justamente o que chamou atenção da Fox. Infelizmente eles estavam privilegiando roteiros para série e não era o caso. Foi por pouco…
Sobre a presença autoral das mulheres na literatura, o Frankenstein de Mary Shelley inaugurava a ficção científica em 1818 de forma anônima. O livro foi devidamente creditado em 1823 em sua segunda edição. Por que a primeira edição não fora creditada a Mary Shelley? Será que naquela época o mercado editorial não aceitaria aquele tipo de literatura desenvolvido por uma mulher? Por que demoraram longos cinco anos para divulgar o nome da autora? Estamos falando de 1823. Quase duzentos anos depois ainda vemos este assunto ser debatido. O que pode responder a isto senão uma completa ignorância? Que o mercado editorial e os leitores aprendam com os ingleses de 1823. Não há o menor sentido em querer excluir as mulheres, e isso se estende a toda e qualquer atividade humana. Que venham Mary Shelley, Virginia Wolf, Elizabeth Bishop, Susan Sontag, Anne Rice, Anais Nin, Marguerite Duras, Adélia Prado, Charlaine Harry, Clara Averbuk, Vanessa Barbara, Marjane Satrapi, Rina Ayuyang, Emilly Carroll e tantas autoras.

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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