Papo com Juscelino Neco, o autor de Matadouro de Unicórnios: “O limite da violência gráfica é a consciência do autor”

A recém-lançada Matadouro de Unicórnios é a primeira HQ de Juscelino Neco em seguida ao blockbuster internacional Zumbis para Colorir. Antes do álbum de 2015 chegar a países da Europa e em Taiwan, o quadrinista publicou Parafusos, Zumbis e Monstros do Espaço. O terceiro quadrinho de Neco publicado pela Veneta escancara de vez o gosto do autor por produções B de terror e apresenta um dos protagonistas mais repulsivos da história recente dos gibis nacionais.

Sobre um ghost writer transformado em assassino serial e autor de sucesso, Matadouro de Unicórnios mostra a colisão de alguns mundos. É um choque entre os filmes recentes de Woody Allen sobre sorte, azar e casualidades com as comédias dramáticas de erros dos irmãos Coen. Os traços e os design de páginas práticos, funcionais e modernos do quadrinho dialogam com o trabalho de autores em ascensão na indústria de HQs, como o norte-americano Box Brown.

Pesquisador e estudioso da história dos quadrinhos, Neco criou uma trama explicitamente inspirada em gibis de terror publicados na década de 30 e de gostos duvidosos já naquela época. Matadouro mistura influências de clássicos da editora EC Comics com elementos de obras italianas do gênero Giallo. O resultado é uma HQ chocante e extremamente divertida. Bati um papo por email com Juscelino Neco. Ele falou sobre as origens do gibi, suas inspirações na produção do quadrinho, violência gráfica e próximos projetos. Papo bem bom. Ó:

“Acho que violência gráfica é uma das coisas mais divertidas que existem e o único limite é realmente a consciência do autor”

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Você lembra do instante em que teve a ideia de fazer o Matadouro de Unicórnios? Ele é composto por algumas tramas paralelas, como você fechou todas elas e escolheu o rumo que ia dar para a HQ?

Eu lembro que a ideia inicial pra esse quadrinho era bem diferente, uma história curta sobre uma empresa que dava assessoria para aspirantes a serial killers, ensinando como matar, se livrar dos corpos, etc. Esse vibe meio de manual, de “como se tornar um serial killer de sucesso”, ainda está no livro, mas o mote ficou mais convencional: escritor fracassado que se envolver numa trama bizarra. É meio Stephen King, né? Sempre achei alarmante a quantidade do obras dele onde a personagem principal é escritor. Tá certo que se deve escrever sobre o que se conhece e não sei o que, mas tudo tem limites… Seja como for, eu acho esse clichê da personagem/escritor uma coisa irresistível. Pra falar a verdade, eu acho clichês irresistíveis por natureza. Acho que foi o David Mamet que falou que não se deve abandonar uma ideia apenas por ser clichê. Eu vou além, acho que o clichê deve ser nutrido, tratado com carinho… Quando o clichê estiver grandinho a gente manda pra uma colônia penal pra ver como ele se vira. É muito divertido. Mas estou divagando. Depois que eu concebi essa estrutura inicial foi fácil conduzir as tramas paralelas. Pra falar a verdade, eu sou meio como o Woody Allen, vou tendo pequenas ideias e anotando. Daí aproveito quando estou escrevendo os roteiros… Às vezes nem são grandes coisas, só um diálogo, uma piada… Enfim, junto tudo e normalmente funciona. Mas realmente é como montar uma ponte de Lego…

A partir do momento que você definiu essa trama, como foi seu método de produção? Foi muito diferente do Parafusos, Zumbis e Monstros? Você tinha prazos definidos com a Veneta?

Meu método de trabalho é sempre igual. Faço primeiro uma escaleta com os pontos de virada da trama e escrevo o roteiro num esquema meio Harvey Pekar, com uns desenhos toscos e as indicações do texto. Já fica parecido com um quadrinho… Não consigo escrever o roteiro se não for assim. O processo é muito visual. Depois que o roteiro tá pronto, começa o trabalho de peão. E eu sempre me surpreendo do quanto é chato desenhar quadrinhos. Deve ser um dos trabalhos mais maçantes que existem. O único prazer é ver a página pronta… Quanto ao meu relacionamento com a Veneta, todos os prazos são autoimpostos e eu sempre falho miseravelmente em cumpri-los. O Rogério [de Campos, editor da Veneta] é muito paciente e tem sido um grande mentor pra mim, antes mesmo de conhecê-lo.

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Eu gosto da simplicidade do design das suas páginas e de seus enquadramentos, com vários painéis em widescreen e muitos blocos quadrados. Vejo um diálogo entre a brutalidade desses formatos e a trama da HQ. Desde o começo já estava claro pra você que seguiria essa estética?

Isso é outra coisa que eu sempre faço igual. Pra mim, a página de seis quadros é a mais eficiente e a que mais se adequa ao meu estilo. Manipulando essa estrutura básica eu consigo trabalhar também o ritmo da narrativa. Isso é muito útil, já que no meu trabalho eu sempre me preocupo mais com a narrativa do que com experimentalismos gráficos. Nunca me considerei uma pessoa metódica, mas pensando bem agora, acho que estou muito preso a uma série de convenções que criei pra mim mesmo. Por exemplo, o lance de não usar onomatopeias. O John Waters fala que quando você se repete muito já dá pra chamar isso de estilo… Mas de repente eu posso tentar umas coisas novas. Acho que vou tomar mescalina pra ver se deixo de ser tão cartesiano.

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Assim como vejo toda a influência e homenagem a filmes B de ficção científica em Parafusos, Zumbis e Monstros, saco como o Matadouro é esse imenso retalho de histórias de horror e comédias de erro com essas HQs de terror da EC Comics e obras oriundas do Giallo italiano. Você é pesquisador, seu trabalho de mestrado foi sobre quadrinho. Que tipo de pesquisa e estudo você fez pra criação do Matadouro de Unicórnios?

Eu sempre me interessei por serial killers, tanto reais como os da ficção, e realmente li alguns livros antes de escrever esse roteiro. Destaco os livros da Ilana Casoy, principalmente o que ela escreveu sobre matadores aqui do Brasil e O Teste do Psicopata, do Jon Ronson. Mas de longe o livro do Harold Schechter é o melhor de todos. Gosto bastante da abordagem culturalista que ele faz. Esse livro foi bem importante pra mim, já que eu queria evitar uma abordagem ‘psicologizante’, por assim dizer. Eu não queria propor explicações pro comportamento das minhas personagens porque, bem, se você pensar um pouco sobre isso nada realmente explica uma cabeça no freezer… Eu queria mostrar realmente um tipo banal de maldade, da pessoa que é levada ao extremo pelas circunstâncias.

E o que você vê de mais atraente em quadrinhos e filmes de terror e ficção científica do passado? Você considera muito distintas as obras desses mesmos gêneros produzidas há algumas décadas e o que é feito hoje em dia?

O Bill Nichols fala que todo filme, mesmo o tipo mais extravagante de ficção, é um documentário no sentido em que ele consegue representar determinadas concepções da sociedade que o criou. Esse é o elemento que mais me interessa nos filmes antigos, o tipo de medo profundo que gerou aquela obra de ficção. Um exemplo clássico são os filmes de alienígenas e sua relação com o medo da invasão soviética, o medo do outro. Outros casos são bem pueris, como o medo da pílula anticoncepcional em Nasce um Monstro. Pensando bem, esse é um exemplo de temor bem ridículo, o que também mostra a dificuldade das pessoas comuns em enfrentarem mudanças mínimas. Fora isso, há também a questão de que, pra mim, esses filmes antigos levam os aspectos gráficos ao limite. Nesse sentido, a maioria dos filmes recentes são muito assépticos. O Massacre da Serra Elétrica, por exemplo, tem uma aparência incrivelmente visceral. Além daquele visual pontilhado de 16 mm, os elementos fílmicos realmente convencem porque são efeitos práticos. Eles decoraram a casa inteira com carcaças de animais que tiraram das estradas, os atores passavam semanas com as mesmas roupas imundas, as motosserras eram de verdade… Esse é um tipo de comprometimento difícil de ver hoje em dia. Sem falar que esses filmes são extremamente divertidos.

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Você poderia fazer uma lista de cinco obras que considera essenciais para um leitor do Matadouro de Unicórnios? Tipo, o cara curtiu o quadrinho, quer aprofundar na sua cabeça: quais são os cinco livros/quadrinhos/filmes/discos que mais te influenciaram na produção dessa HQ? Aproveitando: e o que você tá lendo/escutando/assistindo agora?

Deixe-me ver… Já assisti tanto filme de desgraça, mas vamos lá: Henry – Retrato de um Assassino, que é o filme que você deve assistir pra ter sucesso no ramo do assassinato em série; My Friend Dahmer, um quadrinho autobiográfico do Derf Backderf, que foi colega de escola do Jeffrey Dahmer, o Canibal de Milwaukee; Sangue-Ruim, que são histórias reais de criminosos maravilhosamente desenhados pelo Joe Coleman (que também já fez uns putas retratos de serial killers famosos); Schramm, que é o filme mais brutal, louco e doentio sobre serial killers (a cena em que o pirado prega o próprio pênis na mesa é inesquecível); Fargo (ou Um Plano Simples) por essa pegada da comédia de erros misturado com brutalidade. Ah, mais um de brinde: qualquer coisa de terror e ficção científica da EC Comics. Acho que conhecer o trabalho da EC Comics é uma obrigação moral de qualquer bom cidadão. E atualmente eu estou tentando colocar a ficção científica em dias. Li umas coisa do Phillip K. Dick e uns Lovecrafts que não conhecia. Também assisti a série Fargo, que é uma tetéia.

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Acho que tá óbvio pra todo mundo como o Gonçalo é um personagem extremamente repulsivo. Você sempre esteve tranquilo em relação a ter alguém tão asqueroso como protagonista? Em algum momento você teve receio em relação à percepção que seus leitores poderiam ter em relação a ele?

Bem, esse era um dos pontos que eu queria trabalhar nesse quadrinho. Normalmente a gente vê no cinema, nas séries, na literatura, um tipo de serial killer muito sofisticado, charmoso e tal. Pelo que li de assassinos reais, isso não corresponde muito. Então eu não quis dourar a pílula. Não tem muito glamour nesse negócio de esquartejar seres humanos… Mas não me incomoda isso do meu protagonista ser um homem hediondo. Jim Thompson faz miséria com esse tipo de personagem e eu me divirto horrores. Mas também tem um outro lado, porque eu não acho que o Gonçalo seja assim tão terrível. Ele é uma pessoa abominável na medida em que todas as pessoas são, ou podem ser, abomináveis. Só pegamos ele numa fase ruim.

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Aliás, você se preocupou em algum momento em relação a possíveis questionamentos relacionados ao excesso de violência do livro? Você vê um limite para até a ficção pode ir em termos de violência?

Acho que violência gráfica é uma das coisas mais divertidas que existem e o único limite é realmente a consciência do autor. Mas não acho que meus quadrinhos sejam particularmente violentos, pelo contrário, acho que eles são até bem contidos, com uma violência estilizada. Sem falar que meu traço é bem cartunesco. Isso me lembra o Bill Gaines depondo na comissão do Senado e falando que o bom gosto era o que limitava a publicação dos quadrinhos da EC Comics. Daí o Kefauver mostra pra ele uma capa da Crime SuspenStories, feita pelo Johnny Craig (aquela onde marido segura a cabeça decepada da mulher) e pergunta se aquilo é de bom gosto. O Gaines responde que sim, pra uma revista de terror. É mais ou menos isso, sabe? Acho que pro tipo de história que eu faço não há um excesso de violência. Eles só parecem violentos em comparação aos outros quadrinhos brasileiros que, em geral, são muito fofos.

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O Zumbis para Colorir é um imenso case recente dos quadrinhos brasileiros, tendo sido publicado em vários outros países. Você consegue explicar esse sucesso? Quero dizer: é um livro divertido, com desenhos sensacionais, mas o título não poderia ser mais autoexplicativo, são zumbis para colorir. Você vê potencial para o Parafusos e o Matadouro terem esse mesmo alcance?

Não saberia explicar o sucesso de Zumbis para colorir exceto pelo timing… Ele foi publicado no momento certo e surfou bem na onda dos livros de colorir para adultos. Além disso, as pessoas gostam muito de zumbis hoje em dia. Quanto aos meus outros livros, espero que o sucesso de Zumbis para Colorir possa abrir algumas portas.

E você já está trabalhando em novos projetos? Tem plano de lançamento de algum novo quadrinho?

Sim, eu estou fazendo uma adaptação do Lovecraft e espero poder publicá-la ano que vem. Além disso, estou tentando formatar a minha tese para ser publicada como livro. Com um pouco de sorte ainda termino esse ano. Vamos ver.

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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