Cara, você conhece o Letters of Note, né? É um site especializado em publicar cartas e correspondências assinadas tanto por pessoas famosas quanto anônimas. Até virou livro em 2014 e dá pra passar algumas horas mexendo nos arquivos da página. Daí que o post de hoje deles reproduz uma troca de cartas entre um garoto de 9 anos chamado Joshua e o Alan Moore. Segundo o pai do menino, a carta foi enviada ao escritor em 2013, como um dever de casa no qual os alunos tinham de escrever para seus autores preferidos. Enquanto quase todos os demais estudantes receberam respostas das editoras, na casa de Joshua chegou uma longa carta assinada pelo próprio Moore, junto com uma arte original de Nemo: The Roses of Berlin. Joshua mora na cidade de Naseby, situada no mesmo condado de Northamptonshire da Northampton de Moore.
Dono do Letters of Note, o Shaun Usher disse ter ficado sabendo da história a partir de um email enviado a ele pelo pai de Joshua. Então, ele entrou em contato com Moore, que autorizou a publicação de ambas as cartas e informou que um trecho mensagem enviada pelo menino estará impressa em Jerusalem – o aguardado livro de 1184 páginas do autor de Watchmen. [ATUALIZADO: A contracapa do livro, com as aspas do Joshua estão no pé do post]. Reproduzo a seguir tanto a carta enviada por Joshua quanto a resposta de Moore:
[OBS: atualizei o post com a versão traduzida das duas cartas – as versões originais, em inglês, agora estão no pé da matéria. Fiz uma tradução rápida por conta própria, qualquer sugestão pro texto é só avisar!]
A carta de Joshua para Moore:
Caro Alan Moore
Estou escrevendo porque gostaria de saber mais sobre os seus quadrinhos, incluindo V de Vingança, Watchmen, A Liga Extraordinária e Monstro do Pântano. Eu também gostaria de dizer muito obrigado por você criar graphic novels tão incríveis e queria saber como você faz esses trabalhos tão maravilhosos?
O primeiro livro que vi foi V de Vingança, que tem um enredo incrível e acho muito legal quando ele explode o Parlamento. Também amo aquela máscara sensacional. O segundo foi Watchmen, até hoje o melhor livro que já li – o Rorschach é o meu personagem preferido, depois o Dr. Manhattan e por último o Comediante. Gosto da forma como ele usa o lança-chamas como um isqueiro e da smiley face como um distintivo. O meu terceiro foi Liga Extraordinária. Eu gosto desse mais como um livro, por ter muito texto e também das várias coisas que eles recuperaram. No final das contas você é o melhor autor da história da humanidade. Por favor me responda.
Joshua.
A resposta original de Moore para Josua:
Caro Joshua,
Bem, antes de tudo, muito obrigado por sua carta adorável. Eu peço desculpas caso a resposta seja um pouco curta, mas hoje estou trabalhando muito pesado em umas seis coisas diferente ao mesmo tempo e sei que caso deixe para escrever sua resposta mais tarde, quando tiver mais tempo, acabarei perdendo a sua carta (você deveria ver todos os livros e papéis e a bagunça de cada um dos quartos da minha casa) ou então não responderei por algum outro motivo. Como não gostaria que isso ocorresse após suas belas palavras sobre mim e a minha escrita, aqui estou eu em um intervalo de meia hora entre acabar um trabalho e começar outro.
Fico muito contente por você ter gostado de tantos dos meus trabalhos, especialmente porque a maioria dos meus leitores hoje são pessoas tão velhas quanto eu. É claro, eu gosto da minha audiência independentemente de qual for a idade, mas é particularmente gratificante pensar que tenho leitores tão inteligentes e corajosos da sua idade por aí. É o tipo de coisa que me faz pensar que ainda me dou bem com as crianças, principalmente quando estou tomando minhas pílulas e vitaminas com Lemsip. [link do tradutor]
Livros como Watchmen, V de Vingança e Monstro do Pântano foram feitos quando eu ainda estava começando a minha carreira, nos anos 80, quando estava nos meus vinte e poucos ou trinta anos. Fico feliz que eles ainda sejam divertidos hoje em dia e em relação a como foram escritos…bem, acho que devo dizer que comecei quando tinha a sua idade ou até menos, por apenas ser apaixonado por quadrinhos ou livros que fossem cheios de ideias brilhantes que colocassem a minha imaginação em chamas. Desde muito novo eu tentava emular pessoas que estava lendo ao escrever pequenas histórias, poemas ou mesmo pequenos quadrinhos desenhados e coloridos com canetas esferográficas em páginas de cadernos e depois grampeados. Não estou dizendo que essas coisas eram boas, mas que me divertia bastante enquanto fazia e que eles pelo menos me ensinaram um pouco das habilidades que eu precisaria ter em outros momentos da minha vida.
Além de escrever e desenhar, eu também lia o máximo que podia de coisas que me interessavam…e por isso bibliotecas são tão importantes…fossem livros, quadrinhos ou qualquer outra coisa que eu pudesse colocar as minhas mãos. Enquanto eu lia, parte de mim (provavelmente a maior parte) apenas se divertia com a história por ela ser emocionante, assustadora, engraçada ou qualquer outra coisa, enquanto outra parte estava trabalhando para compreender o motivo de eu ter gostado tanto daquilo. Eu tentei entender o que o autor havia feito que tinha um efeito tão poderoso em mim. Talvez seja um efeito esperto de story-telling que mexeu com o meu cérebro ou talvez fosse o uso poderoso de um simbolismo que acertou em cheio e movimentou um acorde desconhecido dentro de mim, mas o que quer que fosse eu queria entender porque eu pensava que caso compreendesse essas coisas, eu provavelmente seria um escritor melhor do que caso não tivesse entendido.
A medida que fiquei mais velho, enquanto percebia que ainda gostava de vários desses livros e quadrinhos que cresci lendo, descobri que passei a apreciar todas formas de escrita e arte com as quais antes eu não conseguia me ligar, e passei a aplicar lições aprendidas com essas diferentes fontes à minha escrita. Finalmente, quando entrei no ramo dos quadrinhos já nos meus vinte e tantos anos, eu provavelmente tinha bagagem de influências muito mais vasta do que a maioria dos outros escritores do meio nesse mesmo período e era capaz de produzir trabalhos muito diferentes do que havia sido visto até então. Eu gostava de experimentar com as coisas (e ainda gosto, diga-se de passagem), e tentar pensar um forma diferente de escrita para uma cena ou uma história específica. Eu acho que uma das coisas mais importantes para qualquer artista ou escritor é que eles devem estar sempre progredindo e buscando coisas novas, porque é isso que vai fazer seu trabalho continuar sendo jovial e empolgante para seus leitores mesmo após os seus 20 ou 30 anos. Sim, isso significa que você vai precisar trabalhar ainda mais pesado, refletir ainda mais e sempre se desafiar e testar seus limites, mas na minha opinião o resultado final sempre vale a pena.
Ainda que eu tenha bastante orgulho do trabalho que fiz em todos os livros que você mencionou, o fato de eu não mais possuir os direitos sobre eles (lamento que hoje eles pertençam a grandes-companhias-de-histórias-em-quadrinhos-talvez-não-muito-escrupulosas) significa que estou sempre mais interessado nos meus trabalhos mais recentes, então fico feliz que você tenha gostado da Liga Extraordinária, que ainda pertence a mim e ao Kevin e nos divertimos bastante criando. Eu sei que um rapaz chamado Jess Nevins tem um site no qual ele pega todos os volumes da Liga e lista todos os livros, peças, filmes e histórias que nós fazemos referências. Apesar de que alguns dos livros que mencionamos talvez possam ser um pouco chatos para você até fazer certa idade, há outros deles que você talvez vá realmente amar e outros que vão te ajudar a gostar da Liga um pouco mais.
Falando na Liga, eu estou enviando algumas coisas junto com essa carta, incluindo uma cópia do recém-lançado Heart of Ice. Caso você não tenha lido o terceiro volume da Liga, Século (que ainda não foi publicado como encadernado), o personagem principal de Heart of Ice é a filha do Capitão Nemo original, Janni Dakkar, que relutou bastante em tomar o comando da Nautilus quando seu pai morreu de velhice em 1910. Heart of Ice mostra a Janni tentando retomar algumas das glórias do pai dela e acabando no cenário de um trabalho do mestre de contos bizarros H.P. Lovecraft. Além disso, também estou incluindo duas páginas de artes sem o letreiramento que ganhei do Kevin para o próximo livro da série, que será chamado The Roses of Berlin. Ninguém além de mim, o Kevin e nossos editores viram essas páginas antes, então esse é um preview especial e exclusivo para você. Por favor, guarde essas artes com a sua vida (não literalmente, óbvio) e não deixem que elas cheguem na internet ou em qualquer outro lugar… Quero dizer, é claro que você não sonharia com esse tipo de coisa, mas é algo em que o Kevin investe muito trabalho e sei que ele quer que as pessoas vejam esse trabalho já finalizado, com letras, cores e tudo mais, já como parte da história para as quais elas foram criadas. Enfim, espero que você goste delas.
Bem, acabei de olhar no relógio e acho que preciso ir para a cidade (Northampton), caso eu queria conseguir um presente para a minha esposa, Melinda, no nosso aniversário de casamento no domingo. Muito obrigado outra vez por a sua ótima carta, e muito obrigado por me chamar o melhor autor na história da humanidade, o que não necessariamente concordo que seja uma verdade absoluta, mas que eu talvez use como uma citação no verso de um dos meus próximos livros. Ah, e por favor mande lembranças a Naseby. Ela será citada algumas vezes no meu próximo livro, Jerusalem, que estou a dois capítulos de terminar no momento.
Cuide-se, Joshua. Você é obviamente um jovem de bom gosto e inteligência extraordinários e confirma as minhas suspeitas de que Northamptonshire é um condado agraciado pelos deuses.
Desejo o melhor, do seu amigo,
Alan Moore
(Melhor Autor da História da Humanidade. Tomem essa, Shakespeare, Joyce e Cervantes!)
–X–
As carta original de Joshua, em inglês:
Dear Alan Moore
I am writing because I want to know more about your comics including V for Vendetta, Watchmen, League of Extraordinary Gentlemen and Swamp Thing. I also want to say thank you for making such amazing graphic novels and how did you make such wonderful things?
The first book I saw was V for Vendetta which has a brilliant storyline and is very cool when he blows up Parliament. I also love his awesome mask. Watchmen was the second, so far the best book I have ever seen – Rorschach is my favourite character, then Dr. Manhattan, lastly the Comedian. I like the way he uses a flamethrower as a cigar lighter and a smiley face for a badge. My third favourite was the League of Extraordinary Gentlemen. I like the way it’s more like a book because it has lots of writing in it and I also like the things that they have collected. All in all you are the best author in human history. Please write back.
Joshua
A resposta original de Moore para Josua, em inglês:
Dear Joshua
Well, first of all, thank you for a lovely letter. I apologise if this reply is a bit short, but I’m working really hard on about six different things at once just now, and I know that if I put replying to you off until later when I had more time then I might lose your letter (you should see all the books and papers and clutter filling nearly every room in my house), or not get back to you for some other reason. After your kind words about me and my writing I really didn’t want to do that, so here I am in an odd half hour between finishing one piece of work and starting another.
I’m really pleased that you’ve enjoyed so much of my stuff, and especially because most of my readers these days are people almost as old as I am. Of course, I appreciate my audience however old they are, but it’s particularly gratifying to think that I’ve got intelligent and adventurous readers of your own age out there. It’s the kind of thing, when I’m taking my vitamin pills and swilling them down with Lemsip, that makes me feel like I’m still ‘down with the kids’.
Books like Watchmen, V for Vendetta and Swamp Thing were done back when I was just starting my career in the 1980s, when I was in my twenties or thirties. I’m glad they’re still enjoyable today, and as for how I wrote them…well, I suppose I’d have to say that I started out, when I was your age or a little younger, by being simply in love with comics or books that were full of brilliant ideas that set my imagination on fire. From a very young age, I was trying to emulate the people whose stories I was reading by writing little stories or poems or even little comic books drawn in coloured biro on lined jotter paper and then stapled together. I’m not saying that these things were any good, but that I had tremendous fun doing them and that they at least taught me the beginnings of the skills that my writing would need in later life.
As well as writing and drawing, I was also reading as much as I could about the things that interested me…this is why libraries are so important…whether that be in books or comics or any other medium that I could get my hands on. When I was reading things, part of me (probably the biggest part) would just be enjoying the story because it was so exciting, or scary, or funny or whatever, while another part of me would be trying to work out why I’d enjoyed whatever it was so much. I tried to understand what it was that the author had done that had had such a powerful effect upon me. It might be some clever story-telling effect that had tickled my brain, or it might be a powerful use of symbolism that had struck a deep, buried chord inside me, but whatever it was I wanted to understand it because I figured that if I understood these things, I’d probably be a better writer than if I didn’t.
As I got older, while I found I still enjoyed a lot of the books and comics I’d grown up with, I found that I was becoming able to appreciate all sorts of other writings and art that I hadn’t been able to get to grips with before, and I started to apply the lessons that I’d learned from these different sources to my writing. Thus, when I finally entered the comic field in my late twenties, I’d probably got a much wider range of influences than most of the other writers in the field at the time and was able to produce work that was very different to what had been seen before. I liked to experiment with things (I still do, for that matter), and to try and think of a different way that I could write a specific scene or a specific story. I think that one of the most important things for any artist or writer is that they should always be progressing and trying new things, because that is what will keep your work feeling fresh and lively to your readers even after twenty or thirty years. Yes, it means that you have to work harder, and to think harder, and to generally keep pushing yourself and testing your limits, but in my opinion the results are definitely worth it.
Although I’m still very proud of the work that I did on all the books mentioned above, the fact that I no longer own any of those titles (I’m afraid they’re all owned by perhaps-less-than-scrupulous big comic-book companies) means that I’m always most interested in my most recent work, so I was glad that you’d liked The League of Extraordinary Gentlemen, which Kevin and I still own and have a great deal of fun doing. I know that a very clever young man named Jess Nevins runs a website at which he picks through all of the volumes of The League and points out all the different books, plays, films and stories that we’re making references to. Although a lot of the books mentioned might be pretty boring until you’re older, there’s a few of them that you might really love, and some of them might help you to enjoy The League a bit more.
Speaking of The League, I’m enclosing a couple of things with this letter, including a copy of the brand new Heart of Ice book. In case you haven’t seen League volume III, Century, (which isn’t out in collected form yet) the main character in Heart of Ice is the original Captain Nemo’s daughter, Janni Dakkar, who somewhat reluctantly took over her father’s command of the Nautilus when he died of old age in 1910. Heart of Ice shows Janni attempting to recapture some of her father’s past glories and ending up running into a scenario from the work of American weird tale master, H.P. Lovecraft. As well as this, I’m also including a couple of pages of unlettered art that I’ve received from Kevin for the next book in the series, which is entitled The Roses of Berlin. Nobody except me, Kevin and our publishers have seen these yet, so this is a special preview just for you. Please guard them with your life (not literally, of course), and don’t let them get onto the internet or anywhere…I mean, I’m sure you wouldn’t dream of such a thing, but it’s just that Kevin puts such a lot of work into these pages, and he wants people to see them when they’re properly lettered and coloured and everything, and part of the actual story that they’re intended for. Anyway, I hope you enjoy them.
Well, I’ve just looked at the clock and realised that I’d better get down town (Northampton) if I want to get my wife Melinda a present for our wedding anniversary on Sunday. Thanks again for a great letter, and thanks for calling me the best author in human history, which I don’t necessarily agree is completely true but which I may well end up using as a quote on the back of one of my books someday. Oh, and please give my regards to Naseby. It gets more than a couple of mentions in my forthcoming novel Jerusalem, which I’m about two chapters away from the end of at present.
Take care of yourself, Joshua. You’re obviously a young man of extraordinary good taste and intelligence, and you confirm my suspicion that Northamptonshire is a county touched by the gods.
All the best, your pal —
Alan Moore
(Best Author in Human History. In your face, Shakespeare, Joyce and Cervantes!)
Bacana que o Alan Moore escreve tanto (em quantidade mesmo) que uma carta de 10 parágrafos pra ele é uma resposta curta rs
Parabéns pelo texto!
Só uma pequena correção no quarto parágrafo da carta do Alan Moore: “this is why libraries are so important…”
Libraries são bibliotecas, não livrarias. Aqui o Alan Moore se une ao coro de autores que defendem a importância das bibliotecas, como Neil Gaiman: https://www.theguardian.com/books/2013/oct/15/neil-gaiman-future-libraries-reading-daydreaming
opa! muito obrigado 🙂 já corrigido! abraço!
libraries é bibliotecas e não livrarias 🙂
Muito fofa essa história
pois é, não prestei atenção 🙂 mas arrumado! valeu!
Cara… Esse é o tipo de coisa que faz a vida valer a pena. A reação do garoto recebendo a carta deve ter sido demais. Que foda!