Papo com Nick Sousanis, o autor de Desaplanar: “O que mais me estimula nas HQs é a capacidade de reunir num único formato os aspectos sequenciais e simultâneos da consciência”

Poucas HQs geraram tanta repercussão fora do universo dos quadrinhos nos últimos anos quanto Desaplanar de Nick Sousanis. Como você provavelmente já ouviu falar por aí, o álbum é a primeira tese de doutorado da Universidade de Columbia apresentada em formato de história em quadrinhos, questionando a primazia da palavra escrita e defendendo a simbiose entre texto e imagem – sendo a linguagem das HQs a suposta representação perfeita dessa união. Recomendo o meu texto pra Folha de São Paulo sobre o gibi publicado por aqui pela Veneta.

Aproveito a vinda de Sousanis ao Brasil nos próximos dias para reproduzir a íntegra da nossa conversa. O autor é um dos convidados da 4ª edição das Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos da USP, iniciadas hoje, e também irá participar de um bate-papo no Istituto Europeo di Design (IED) de São Paulo na próxima quinta-feira (24/8). A seguir, a minha entrevista com o quadrinista:

“Os quadrinhos não só nos permitem respirar tanto no mundo das imagens quanto no dos textos como nos possibilitam ter experiências de simultaneidade e sequencialidade, o que lhes dá enorme poder diante de narrativas complexas ou para explorar ideias a fundo”

Você se lembra do momento em que teve a ideia de criar Desaplanar?

É difícil dizer se houve um momento em particular. O que posso dizer é: quando decidi voltar aos estudos e trabalhar no meu doutorado, eu sabia que queria fazer meu trabalho sobre quadrinhos. Eu havia retornado a fazer quadrinhos alguns anos antes (publiquei o meu próprio quadrinho durante o ensino médio) e estava muito empolgado com o potencial educacional do que eu estava fazendo – me permitia combinar o meu amor pela produção com o meu interesse em educação. Os meus pensamentos iniciais ao entrar no programa de doutorado eram de produzir um quadrinho como tese sobre algum tópico educacional – possivelmente física, já que o meu pai era um professor de física (e eu costumava fazer desenhos do Batman que ele utilizava para ilustrar problemas para suas aulas) e eu achava que um livro no formato de quadrinhos funcionaria bem. Quando entrei no programa, percebi que o que eu estava tentando fazer era mais radical do que eu esperava (com o sucesso de coisas como Maus, Desvendando os Quadrinhos, Watchmen, Fun Home, etc – eu presumi que o debate em relação à presença de quadrinhos na academia já havia sido superado. Ainda não foi.). Então enquanto eu estava desenvolvendo o trabalho, ele começou a mudar e se tornar muito mais sobre o próprio projeto. Parte disso veio das minhas conferências sobre o uso de quadrinhos na academia e comecei a fazer quadrinhos sobre coisas que explorava nas minhas palestras. O meu trabalho, mesmo as semi-paródias de quadrinhos de super-heróis que fazia quando criança, sempre teve como base meta-comentários, então não é tão surpreendente assim que esse tenha sido o caminho que eu segui.

No meu primeiro semestre no programa de doutorado (eu não consigo contar direito essa história de forma linear), o meu orientador, professor Ruth Vinz, nos mandou estudar algum pesquisador que respeitássemos e que lêssemos tudo que ele tivesse feito para que aprendessemos a partir da perspectiva particular dessas pessoas em relação a pesquisa. Eu escolhi o Alan Moore (o que funcionou, mas acabou sendo uma escolha pouco ortodoxa, para dizer o mínimo em uma classe de pesquisadores de educação) e apesar de eu já ser muito bem versado nos seus trabalhos, eu reli e sintetizei tudo o que poderia sobre ele – e também me aprofundei em teorias sobre quadrinhos de maneira geral. Ao longo desse processo eu comecei a pensar na forma como a página estática e plana [‘flat’, em inglês] de um quadrinho poderia conter mais informações do que parecia possível –a meu ver, mais do que um texto conseguiria. De alguma forma, a página estava ‘desaplanando’ [‘unflattening’, em inglês] para mim. O termo ficou na minha cabeça. Ao mesmo tempo, o meu programa de doutorado era em estudos interdisciplinares em educação (antes eu fiz um mestrado em estudos interdisciplinares em matemática e arte, então isso fazia sentido para mim). Eu estava muito interessado na necessidade de perspectivas multidisciplinares. Eu utilizei a metáfora do parallax para um quadrinho curto que fiz sobre a produção da pesquisa e me referi a isso como ‘desaplanar’. Ao mesmo tempo, estavau estudando em uma faculdade de educação – muito preocupada com o que está acontecendo com os sistemas de avaliação de instituições americanas de educação e muito interessada em formas de educação que fujam à norma. Eu queria falar sobre a incorporação de disciplinas múltiplas – e muito importante, formas múltiplas de trabalho. Foi aí que a ideia de ‘Desplanar’ ficou muito mais política, por eu estar buscando reverter preconceitos relacionados ao uso de ferramentas visuais para estimular o pensamento. Então eu passei a difundir não apenas os quadrinhos como uma forma legítima de discurso acadêmico, mas também a ideia mais ampla de que devemos questionar o predomínio da palavra escrita e começar a apresentar novas possibilidades. Então isso tudo, pra fechar o ciclo, passou a ser o argumento para a sua própria existência, assim como para outras coisas semelhantes. O termo ‘desaplanar’ ganhou uma multiplicidade de significados relacionados a educação, interdisciplinaridade e interação imagem-texto, bem como significados ligados ao ponto de partida: quadrinhos são legais. Foi definitivamente mais uma emersão orgânica ao longo do tempo do que um único momento!

Desaplanar

Como foi a produção do livro? Você trabalhou com um roteiro? Quanto tempo você demorou para terminar?

Não houve um roteiro. Sempre me perguntam: ‘você escreveu primeiro as palavras ou começou pelos desenhos?’ E eu respondo: ‘sim’. É basicamente aquele ponto do trabalho em que imagens e texto juntos permitem que você entenda as coisas de forma que não é possível com apenas um deles – tudo diz respeito a múltiplas perspectivas. O trabalho surge dos meus rascunhos. Eu tenho ideias que tenho curiosidade de explorar, para compreender melhor para mim, para compartilhar – e eu crio mapas de esboços e enquanto trabalho com eles aprendo qual é o meu caminho. (Muitos dos meus mapas de esboços são reproduzidos no final de ‘Desaplanar’ e compartilhei muitos outros no meu site, www.spinweaveandcut.com). Posso dizer com certeza que se eu tivesse escrito primeiro um roteiro e depois tentado ilustrar, seria um projeto diferente e teria ido a um caminho completamente distinto. Muito do livro tomou aquela forma por eu ver coisas nos meus rascunhos que despertavam uma ideia e me indicavam para outras pesquisas. Eu nunca tentei ‘fazer caber’ um desenho em alguma coisa que eu tivesse escrito. Disto isto, palavras com certeza têm um papel fundamental. Os meus esboços são repletos de palavras, e palavras são um gatilho para desenhos, assim como desenhos sugerem palavras que os acompanhem. Apesar de não haver um roteiro, havia uma espécie de sinopse. A verdadeira sinopse (também presente no final do livro) foi rabiscada em duas largas folhas de papel jornal após um noite sem sono na qual eu finalmente encontrei uma forma de organizar todas as ideais com as quais eu estava trabalhando em uma sequência coerente. Mas ao mesmo tempo, eu mantinha as minhas notas em um documento de Word – citações, referências, notas para mim, diálogos e mesmo descrições de imagens e cenas. Eu digitava isso tudo e ia desenhar a partir dessas ideias junto com os meus mapas de esboços. A utilidade das palavras é que elas são facilmente adaptáveis e, talvez ainda mais importante, fáceis de encontrar. No final eu tinha quase 100 páginas de papel jornal e quatro cadernos em aspiral repletos de rascunhos e ideias. Ao digitar isso tudo eu assegurei que não perderia rumo das coisas que queria incluir mesmo que eu não pudesse as encontrar imediatamente no meio de tudo isso!

Esse foi o processo para o livro, mas acabou sendo mais ou menos a mesma coisa para cada uma das páginas. Uma vez que eu transformava um capítulo em esboço, eu pegava cada uma das páginas (ou ocasionalmente uma sequência interligada de páginas) e começava a rabiscar o que eu poderia fazer ali.

“Eu realmente não quis definir ‘unflattening’, pelo menos não com mais palavras. Em todo o meu trabalho, pelo uso de metáforas, tento criar coisas que possam ser lidas de formas diferentes dependendo de quem estiver lendo”

O fato de eu não usar um narrador visível, de não ter um personagem recorrente (com exceção dos flutuantes anônimos do primeiro capítulo) e nenhuma história, significava que eu precisava resolver o que fazer em cada página – das metáforas que eu utilizava às formas como eu organizava a leitura. E essa solução só vem a partir dos desenhos e da minha imersão, de tentar coisas diferentes e confiar que isso vai me conduzir a algum lugar interessante. Constantemente isso significava retornar aos livros para pesquisar mais ou algo novo incitado pelos meus desenhos e que fará algum diálogo com o que eu já estava trabalhando.

Em relação ao tempo… Essas são coisas difíceis de dizer. Do primeiro esboço oficial que eu criei ao final foram quase três anos. Se é da primeira página que eu realmente desenhei, foram quase dois anos e meio. Eu já estava trabalhando em muitas dessas ideias no meu primeiro ano na faculdade e várias delas muito antes disso – coisas como aquelas figuras planando vieram de um painel que eu fiz em Detroit quase uma década antes.

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Eu gosto do título do livro em português. ‘Desaplanar’ é quase literal em relação ao original e também não está presente no nosso dicionário. Acho engraçado como a palavra ‘Unflattening’ pode ter várias interpretações mesmo não tendo nenhum sentido em particular. Foi muito importante para você chegar ao título do quadrinho? Em algum momento você cogitou como poderia ser desafiador traduzir esse título para outras línguas?

Ah! Até agora eu não sabia o significado de ‘desaplanar’! E o Google Translate aparentemente me explicou errado, como um amigo brasileiro me explicou. Se eu estou entendendo corretamente a tradução dele, acho que tem o sentido certo. E sim, ‘unflattening’ não é bem uma palavra em inglês. É aparetentemente utilizada para se referir a algo em codificação computacional (como eu vim a descobrir apenas depois da publicação de ‘Unflattening’), mas não é algo que consta em dicionários. Eu ofereço uma espécie de definição no início do livro, mas a palavra só aparece lá, é introduzida na página seguinte e uma terceira vez logo no fim. Eu realmente não quis definir ‘unflattening’, pelo menos não com mais palavras. Em todo o meu trabalho, pelo uso de metáforas, tento criar coisas que possam ser lidas de formas diferentes dependendo de quem estiver lendo. Eu queria que ‘Unflattening’ tivesse essa espécie de significado variável também – é algo diferente para cada leitor. Eu prefiro que você sinta o que é ao invés de conseguir articular com palavras. Isso também constitui o argumento do livro – certas coisas vão além do que palavras conseguem expressar e até podem soar irracionais, mas, parafraseando a filósofa Susanne Langer, elas apenas não cabem na estrutura da linguagem.

Eu não pensava como ‘Unflattening’ seria traduzido até acabar sendo traduzido. Eu tive algumas idas e vindas com o editor francês em relação a isso, com a ajuda da minha esposa e de alguns amigos fluentes em francês (algo que não sou). A escolha deles ‘Le Déploiement’ é, se eu entendi corretamente, bastante diferente da forma como o título será publicado no brasil. Não sei como isso afeta o leitor. Os editores coreanos deixaram em inglês. E ainda não tenho certeza do significado em sérvio. É muito importante para mim que a palavra – seja lá qual for a tradução – reproduza esse mesmo sentimentos de ação e continuidade. É por isso que corrijo rapidamente todas as pessoas que referem ao título em inglês como ‘Unflattened’. É exatamente o conceito errado! Implica algo que esteja finalizado, para o que já sabemos todas as respostas. Eu quero o verbo no gerúndio em inglês indique algo que está em processo, inacabado (e interminável), nos deixe mais com questões do que respostas definitivas. Isso está mais alinhado com a tradição americana e pragmática do Dewey e do James – e seus trabalhos lidam de forma internsa com o que eu acredito ser o significado de ‘Unflattening’. E talvez o livro seja um esforço meu para compreender esse único termo e abordá-lo em suas mais diferentes direções possíveis. Unflattening não é o somatório de todo o livro, é a questão que divide o livro.

Um dos principais focos do livro está na relação entre imagens e texto e é difícil imaginar muitas linguagens tão dependentes dessa relação quanto as histórias em quadrinhos. Há muitas definições para o que é um quadrinho, mas eu gostaria de saber o que são quadrinhos para você. Você tem algum definição em particular?

Muito do que eu acredito que quadrinhos sejam vem das minhas aulas sobre quadrinhos e da produção desse livro. Eu certamente fui muito influenciado pelo que o Scott McCloud produziu no seminal Entendendo os Quadrinhos e que continua a ser verdade ainda nos dias de hoje. A definição dele realmente abriu as portas para se pensar que quadrinhos como alguma coisa. Em relação a definições particulares, eu fui em direções diferentes. As teorias do Thierry Groenstee em O Sistema dos Quadrinhos realmente ressoaram em relação a como me vejo fazendo quadrinhos. (E em uma reviravolta adorável, o Thierry acabou publicando a edição francesa de Unflattening). Se o McCloud enfatiza a natureza sequencial dos quadrinhos, o Groensteen aponta para a natureza interconectada da página. Costumo falar de todas essas coisas (bem como da interação palavra-desenho) como ativos dos quadrinhos. Jeitos de dizer algo nos quadrinhos que não poderia ser dito de outra forma. Como eu digo em ‘Desaplanar’, o que mais me estimula nos quadrinhos é a capacidade de reunir num único formato os aspectos sequenciais e simultâneos da consciência. Isso é o que eu enfatizo nas minhas aulas e palestras sobre quadrinhos. E isso é uma outra forma de desaplanar – e eu acho, como digo no livro, que é como percebemos as coisas nas nossas cabeças. Quero dizer, nós testemunhamos o tempo passar de forma sequencial – os ponteiros do relógio avançam, mudamos de uma atividade para outra, e assim por diante. Mas, ao mesmo tempo, os pensamentos estão sempre à deriva, acontecendo todos de uma vez. Os quadrinhos não só nos permitem respirar tanto no mundo das imagens quanto no dos textos como nos possibilitam ter experiências de simultaneidade e sequencialidade, o que lhes dá enorme poder diante de narrativas complexas ou para explorar ideias a fundo. Então, para mim, é a habilidade de capturar tanto os momentos sequenciais, mas também todos aqueles tangenciais e não-lineares e as camadas de experiência que não se adequam confortavelmente em um pedaço de papel com linhas ou em mídias baseadas na passagem do tempo, mas que conseguem ser produzidas maravilhosamente nessa forma estática, plana e espertamente dinâmica.

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Uma definição muito popular do que é quadrinho vem do Scott McCloud, como “imagens pictóricas justapostas em sequência deliberada”. Há alguns anos o Chris Ware publicou o Building Stories, uma publicação sem leitura deliberada pelo autor e com 87 bilhões, 178 milhões, 291 mil e 200 diferentes possibilidades de leitura. Você acha importante experimentar e oferecer novas possibilidades para os seus leitores em relação a como quadrinhos podem ser compreendidos?

Ah! Eu deveria ter lido antes as suas perguntas! Como eu mencionei a definição do McCloud sobre quadrinhos anteriormente eu tinha começado a escrever alguma coisa sobre as ideias do Ware sobre memórias e quadrinhos – e acabei deixando de fora. E caramba, eu nunca tinha visto alguém calcular o número de possibilidades de leitura de Building Stories! Para a sua pergunta, é importante para mim. Como disse anteriormente, eu não tenho personagens ou uma história, então cada página eu estou tentando dar forma à ideia que quero passar – quais metáforas usar, o que aquilo se parece e como conduzo o leitor por isso? Isso significa, pelo menos para esse projeto, que nenhuma das minhas páginas repetiria a estrutura de outra. Cada layout do livro é diferente. Isso começou um pouco por acidente. A minha esposa passava por onde eu estava desenhando, via uma nova página e dizia, ‘Eu não tinha visto essa antes’. Alguns dias depois ela volta e dizia a mesma coisa e em algum momento eu decidi que não repetiria nenhuma composição no livro. (Há uma sequência no segundo interlúdio que é deliberadamente repetida como uma forma de mostrar repetição, mas a cada repetição começa a desconstruir essa estrutura até que ela deixa de existir por completo). Eu amo o que o Ware está fazendo com o formato e tive uma ótima experiência explorando formatos e histórias diferentes com os meus alunos. Eu acredito que enquanto gosto de experimentar em cada página, provavelmente também sou um pouco conservador em termos de formato. Gosto de fazer coisas que possa segurar nas mãos, passar as páginas e ler como eu fazia quando tinha cinco anos. Mas se a ideia pedisse uma variação de formato eu teria seguido até ver onde ela me levaria. Eu tive alunos que construíram alguns quadrinhos maravilhosos em três dimensões e que exploraram suas ideias de formas únicas. Eles me inspiram bastante – e eu tive essa experiência com o meu mural em Detroit que parecia outra coisa dependendo do ângulo do qual você o observava. Acho que ainda tenho tanto a aprender sobre fazer quadrinhos que posso esperar um pouco para testar os limites dos formatos tradicionais.

Eu também gosto da definição do Art Spiegelman sobre quadrinhos, como tempo no espaço. Quando penso nisso lembro de uma fala da Susan Sontag em que ela diz que “O tempo existe com o objetivo de evitar que tudo aconteça ao mesmo tempo…e o espaço existe para que tudo não aconteça com você”. Cada uma das páginas de ‘Desplanar’ possui designs muito específicos e investem em relações distintas entre o tempo e o espaço. Você reflete muito sobre essa relação entre tempo e espaço?

Outra vez, eu deveria ter lido antes as suas perguntas! Eu constantemente me refiro à ideia do Spiegelman do espaço “arquitetônico” da página e, como já falei, me preocupo o tempo com essa estrutura. Como mover alguém pela página, como as peças se encaixam e como essas mesmas constrições acabam dando forma às ideias que eu coloco na página. Para mim, trata-se realmente de fazer uso daquele espaço – as limitações de uma página que me instigam a criar novas ideias. E talvez tenha sido por isso que respondi a pergunta anterior daquela forma – eu estou tão intrigado por estar preso nessa caixa que é a página (e outras regras que determino previamente) e tento descobrir uma forma de escapar. Na página na qual me refiro à definição do Scott McCloud definição de quadrinhos, no espaço em que escrevi ‘a passagem do tempo é escrita em espaço’, eu redesenhei um calendário lunar Paleolítico – mostrando as fases da lua. Essencialmente, é a passagem do tempo desenhada em espaço. Por isso, acabo vendo calendários como espécies de quadrinhos. E eu acho (e isso é algo que espero abordar na continuação de ‘Desaplanar’) que as observações da passagem do tempo, da percepção de como as coisas mudam e de seu registro, é crítico para como nos tornamos humanos. E como eu já disse, os quadrinhos realmente nos permitem jogar com o tempo e o espaço de maneiras poderosas.

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Foi receptivo o retorno que você teve do mundo acadêmico em relação a Desplanar? Você acha importante a experimentação em relação a formatos, como você fez, nesse universo da academia?

O mundo acadêmico tem sido extremamente receptivo a Desaplanar, certamente muito mais do que eu poderia ter esperado ou antecipado. Antes mesmo de eu começar a desenhar o livro, as pessoas começaram a falar sobre o que eu estava planejando e isso resultou em um artigo no Chronicle of Higher Education e em vários olhos para o trabalho desde o começo. Acho que acabou saindo em um momento particular da história em que trabalhos acadêmicos de várias área (talvez principalmente de humanidades digitais) estão famintos por novas formas de estudos e eu estava lá. O momento também coincidiu com um crescimento imenso de interesse por quadrinhos em geral, principalmente por educadores. Tive sorte de fazer esse trabalho enquanto essas duas forças estavam em movimento, o que resultou em várias oportunidades de compartilhar meu estudo em outras universidades e conferências antes mesmo de concluir a tese e publicá-la. Eu tenho estado emocionado com universidades que escolheram o livro como leitura para seus calouros e também em suas disciplinas. Eu fiquei chocado quando Desaplanar ganhou o prêmio do American Publishers Awards for Professsional and Schorlarly Excellence de 2016 em Humanidades! É não apenas o primeiro quadrinho a vencer esse prêmio, mas o primeiro quadrinho mesmo a ter sido indicado a ele. E eu espero que abra mais uma porta na qual os quadrinhos possam entrar e não voltar a serem questionados.

“O que mais me estimula nos quadrinhos é a capacidade de reunir num único formato os aspectos sequenciais e simultâneos da consciência”

Um dos meus objetivos com esse trabalho era de que importava menos o fato de eu ser o primeiro a fazer isso do que o de não ser o último. Eu queria que esse trabalho ajudasse outras pessoas a fazer suas próprias explorações. Com certeza ajudou o fato da Columbia ter me graduado e acho que a impressão pela Harvard University Press também ajudou muito. Se você está estudando e tem uma ideia que não se parece com nada que veio antes, você passa a ter mais alguma coisa para apontar e dizer que há um precedente. Já vi isso acontecer e estou confiante que mais mudanças virão.

Também quero deixar claro que não fiz isso para que todos façam suas dissertações em histórias em quadrinhos! 🙂 Na verdade, quero que seja perfeitamente aceitável que estejam todos aptos a fazer e, mais importante, que todos os formatos que as pessoas tiverem para se fazerem compreensíveis possam ser incorporados para o trabalho, ao invés de dar com a porta na cara por alguém ter dito que não poderia ser assim. Eu gostaria de nos ver seguindo adiante em direção a um lugar no qual a qualidade do trabalho e o domínio do seu argumento e da sua forma são o que importa.

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Você está trabalhando em algum projeto novo no momento? 

Sim, um livro complementar ao Desaplanar que vai sair pela Harvard University Press também. E ah, se tenho dificuldade para falar de um livro que terminei há três anos, é ainda mais difícil falar sobre um que ainda estou desenvolvendo 🙂 Mas vou tentar. Eu acho que se Desaplanar argumentou a favor da sua própria existência, esse próximo vai tratar do aspecto mais prático das coisas. É uma lembrança de onde viemos e das criaturas curiosas e divertidas como começamos – e o motivo de ser importante continuarmos fazendo essas coisas. Desaplanar era uma tentativa de pensar como o mundo e particularmente o ensino poderia ser para a minha então não-nascida filha (ela nasceu três semanas antes de eu defender a minha dissertação). Dessa vez eu definitivamente fui afetado pela experiência de aprender com ela, assim como das minhas aulas e de querer ajudar as pessoas a reaprender a importância de fazer perguntas e a saber que são capazes de atos criativos. Eu vejo isso como algo muito mais criativo do que o primeiro e muito mais autocontido.

A última! Você pode recomendar alguma coisa que tenha lido, assistido ou ouvido recentemente?

Cara, sou terrível pra esse tipo de coisa… Eu estou lendo como um maluco agora – coisas sobre cognição, evolução humana, gestos, matemática e as origens das linguagens – tudo voltado para esse próximo trabalho, mas não tenho certeza como muito disso seria de interesse geral. Uma das minhas descobertas recentes de quadrinhos foi a graphic novel sem palavras do Marc-Antoine Matthieu. A minha filha leu e releu algumas vezes. É um quadrinho brilhante e inspirador. Nós também acabamos de ler o The Walking Man do Jiro Tamiguchi, que acabou de sair em inglês (apesar de também ser quase sem palavras) e também já esgotou. É um quadrinho poético sobre um homem andando e noticiando o mundo ao seu redor. Curioso, os dois títulos que mencionei mostram alguém andando e descobrindo coisas. Há muitos bons quadrinhos saindo agora, eu li o assustadoramente belo The Best We Could Do do Thi Bui e ele realmente fala da forma dos quadrinhos para contar histórias que precisam ser lidas. Oh, eu e minha esposa acabamos de assistir Mulher-Maravilha e adoramos!

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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