Eu entrevistei o deputado norte-americano John Lewis, seu assessor Andrew Aydin e o ilustrador e quadrinista Nate Powell sobre o lançamento da edição brasileira do primeiro volume da trilogia A Marcha, A Marcha – Livro 1: John Lewis e Martin Luther King em Uma História de Luta Pela Liberdade (Nemo, com tradução de Érico Assis). As conversas com os três artistas resultaram em uma matéria para o jornal O Globo sobre as origens dos projeto, as expectativas do trio em relação à série, a produção das HQs e a repercussão das obras. Recomendo a leitura do texto para que você entender todo o contexto no qual A Marcha foi criada. A seguir, publico o depoimento enviado por John Lewis em resposta a uma das perguntas enviada a ele e aos seus dois colegas e também a íntegra da entrevista com Andrew Aydin. Amanhã, reproduzo por aqui a conversa com Nate Powell.
John Lewis
O que o senhor espera que as pessoas tirem de lição de A Marcha que possa ser aplicado no nosso presente?
É minha esperança que A Marcha inspire mais gente a falar alto, a se manifestar, a entrar de frente. Todos podemos fazer algo, todos temos papel a cumprir, e é minha esperança que A Marcha mostre a outra geração como se movimentar, como se organizar, como defender o que é certo, o que é honesto, o que é justo.
Andrew Aydin
Eu li uma entrevista sua sobre a origem do projeto, na qual você conta como o deputado Lewis te apresentou ao quadrinho Martin Luther King Jr. and The Montgomery Story. Você sugeriu a ideia do quadrinho e então decidiram fazer a HQ juntos, certo? O resultado final dos três livros é muito diferente do que vocês tinham em mente no início do projeto?
Exatamente. Originalmente nós pensávamos em um único livro ou em uma série de quadrinhos curtos… Eu nem sabia na época que era possível fazer uma trilogia de graphic novels de não-ficção. Eu jamais havia feito ou visto antes. Mas na época nós sentamos, revimos o primeiro rascunho do roteiro e então fez sentido. O representante Lewis tem uma fala para momentos como esse. Ele diz, “É o espírito da história nos guiando”.
Você pode me falar um pouco dos seus métodos de pesquisa e sobre a criação do roteiro do quadrinho? Como foi a dinâmica do seu trabalho com o deputado e com o Nate Powell durante a produção do livro?
Os roteiros tiveram início com uma série de entrevistas com o representante Lewis e uma pesquisa de toda a literatura e cobertura da mídia da época e dos eventos com os quais estávamos trabalhando. As entrevistas ajudaram a criar uma linha do tempo narrativa e depois cavamos documentos, falas e detalhes que aprofundassem o conteúdo. O Student Nonviolent Coordinating Committee guardou muito bem os seus registros, mas nem todos eles estavam online ou guardados nos mesmos arquivos, passou a ser uma espécie de caça ao tesouro. Então eu precisei retornar ao deputado Lewis e fazer novas perguntas sobre questões em aberto. Eu recomendo com todo o meu coração que todos estudanto o movimento que visitem crmvet.org e leiam essa incrível variedade de documentos. Foram documentos cruciais para tornar várias das cenas de A Marcha eficientes em termos narrativos e de storytelling, como um trabalho de não-ficção.
E como foi a dinâmica de seu trabalho com o deputado Lewis durante a produção do livro? Quanto tempo vocês gastaram em entrevistas e estudos até chegarem em um roteiro final?
Eu e o congressista conversávamos por telefone a noite ou nos finais de semana, sempre que podíamos, para termos todos os detalhes possíveis. Eu fazia perguntas ou pedia que ele me contasse novamente alguma história em particular, para que as palavras dele estivessem presentes com fidelidade máxima. Foi muito divertido mostrar pra ele documentos que ele nunca tinha visto ou fazer perguntas que ele nunca havia respondido. Às vezes eu me vi fazendo perguntas muito estranhas, em busca de detalhes e informações que ajudassem ao Nate a representar essas memórias. Várias vezes eu mostrei ao deputado documentos antigos e fotos que encontrei e vi seus olhos brilharem com aquelas memórias. Nós acabamos gastando alguns anos trabalhando entre os primeiros rascunho e o roteiro final. Acho que foram cinco anos entre termos a ideia do projeto e o primeiro livro ser publicado. Depois, quando decidimos fazer uma trilogia, precisamos rever todos os planos, trabalhar novamente em cada roteiro e repassar todo o processo para que cada livro tivesse uma unidade.
Eu aprendi muito com os livros, mas acima de tudo eles são um grande drama inspiracional, não uma aula de história. Vocês estavam preocupados em relação a qual seria a abordagem da história quando começaram a trabalhar nela?
Uma das razões que me fazia acreditar que essa história funcionaria como quadrinho era por ela ser dramática. Quando eu escutava o deputado Lewis contar essas histórias para jovens eu ficava com a impressão delas parecerem muito mais vivas do que as versões que me contaram quando eu era criança, e era isso que queríamos apresentar desde o início.
Eu fico curioso sobre as expectativas de vocês em relação à recepção do livro. Vocês tinham algum leitor específico em mente quando começaram a criar a série?
A minha mãe foi uma imensa influência nesse projeto desde o começo, a cada nova passo que dávamos, e quando eu desanimava ou me sentia frustrado, ela me dizia: “você está escrevendo isso para o Andrew de nove anos que buscava uma pessoa boa e honesta como inspiração”. Mas eu sempre acreditei que A Marcha tinha potencial para ser uma obra transformadora. Se não fosse assim eu não tenho certeza se teria depositado tanto da minha vida nesse projeto. Eu tenho trabalhado nesse projeto há dez anos. Eu lembro de pessoas pensando que eu estava meio maluco por ter essa ideia, por estar insistindo tanto nela. Mas tudo bem, você provavelmente precisa estar meio maluco para fazer esse tipo de coisa.
Eu fiquei pensando no desafio que foi para que vocês retratar todas as emoções implícitas nas marchas. Não se trata apenas de um grupo de pessoas se movendo em conjunto em uma única direção, foram atos muito desafiadores e corajosos para a época e imagino a responsabilidade de expressar toda a carga simbólica e emocional dessas marchas. Como foi essa experiência para você?
Foi uma boa experiência. Eu me senti afortunado por ter essa responsabilidade. Eu a levei muito a sério. Essa história precisava ser contada, e precisava ser bem contada. Quando você conta essas histórias, você tem uma responsabilidade sagrada e me sinto grato pelos leitores acharem que estivemos à altura dessa responsabilidade.
Assim como os Estados Unidos estão vivendo uma realidade de extremismos aflorados, preconceitos crescentes e falta de diálogo, nós estamos vivendo um cenário muito parecido no Brasil. Como você acha que as experiências e lições do John Lewis nos livros podem nos ajudar e nos servir de inspiração? Tanto para o nosso presente quanto para gerações futuras?
O legado de A Marcha é ser um passo adiante. Na América e em todo o mundo, estamos enfrentando forças malígnas como ódio, intolerância e discórdia – mas resistimos. Nós continuamos a seguir rumos a uma sociedade mais justa e igualitária. Há avanços e retrocessos, mas compreender como não ser violento e como exercer seus direitos e suas responsabilidades como cidadãos é o que nos estimula a seguir adiante. A Marcha nos mostra como uma outra geração fez uso dos princípios inabaláveis do amor e da paz e da não-violência para que gerações seguintes pudessem carregar essa mesma tocha.
Você se lembra de quando ouviu falar pela primeira vez no John Lewis e nas marchas das quais ele participou?
Eu cresci no distrito do deputado Lewis. Ele tem sido o meu congressista desde quando eu tinha três anos. Tendo crescido em Atlanta, eu ouvi as histórias do Dr. Martin Luther King Jr e de Rosa Parks, mas eu nunca havia ouvido as histórias do SNCC ou do John Lewis. Foi apenas quando passei a fazer parte de sua equipe e passei a ouvi-lo contando essas histórias para jovens que percebi que havia começado a ouvir toda a história, a história real.
Você mora em Washington, certo? A cidade está muito diferente hoje, com o Trump, do que era na época do Obama como presidente?
Eu passo a maior parte do meu tempo em Washington. A cidade está diferente, mas ao mesmo tempo não está. Você lê histórias de pessoas tendo dificuldades em encontros ou para conhecer alguém por causa de suas opiniões políticas. DC ainda é uma cidade muito progressista. Talvez a mudança mais perceptível para mim tenham sido todas as placas de jardim que apareceram desde a posse no ano passado com falas do Dr. King pregando amor e união. E talvez valha a pena dizer que que DC ainda é a cidade que o Presidente Obama mora. Ele ainda mora aqui, como um cidadão comum.
Todas as divergências têm me feito ainda mais otimista em relação à América. As pessoas estão respondendo a toda essa negatividade com união. Movimentos políticos populares estão ganhando força a cada dia, e talvez o que possamos concluir é que esse período feio está nos fazendo cada vez mais fortes, nos despertando para as nossas responsabilidades civis e nos aproximando para a construção de uma comunidade mais construtiva.