Conto de Areia é provavelmente o título que mais gosto do catálogo da editora Pipoca & Nanquim. Não só por ser uma grande HQ, com experimentos narrativos muito interessantes, mas também por ser divertida demais. Fiquei indo e voltando em várias páginas enquanto tentava compreender a jornada do personagem principal e também para admirar a beleza da arte de Ramón K. Perez para a oba, adaptação do roteiro de um longa nunca filmado escritor por Jim Henson (1936-1990) e Jerry Juhl (1938-2005). Eu entrevistei o autor da adaptação e esse papo virou matéria para o jornal O Globo, disponível para leitura aqui.
Reproduzo mais abaixo a íntegra da minha entrevista com Perez, mas recomendo antes a leitura de Conto de Areia, em seguida a leitura do meu texto pro Globo e só depois o papo a seguir. Na nossa conversa, o quadrinista fala sobre como ocorreu seu envolvimento na adaptação, conta como foi seu trabalho com a Henson Company e dá a sua interpretação sobre a trama do quadrinho. Papo massa. Ó:
Como você acabou se envolvendo no projeto que resultou em Conto de Areia?
Eu fiquei muito surpreso em receber o convite para trabalhar em Conto de Areia. Eu fui procurado pelo editor da Archaia, Chris Robinson. A empresa, Archaia, estava entrando em contato com vários artista sobre a possibilidade de adaptar o roteiro e pedindo que que eles fizessem uma ou duas páginas-teste baseadas em trechos do roteiro, para ver como cada um poderia interpretá-lo. Eu fiz uma espécie de ilustração no estilo de pinup (que acabou sendo modificada e utilizada na capa) e também uma arte sequencial (mais especificamente, eu adaptei a sequência mostrando a revelação inicial do Patch após ele emergir da cratera causada pela bomba que foi jogada no Mac).
Os testes pedidos aos vários artistas foram então submetidos à Henson Company, que tomou a decisão final de qual seria o artista escolhido. Felizmente, tanto a Lisa Henson quanto as boas pessoas da Archaia concordaram que seria eu.
Você poderia falar um pouco sobre as suas técnicas e os seus métodos para adaptar o roteiro? Como ilustrador, eu imagino que você esteja acostumado a dialogar com os roteiristas dos seus trabalhos, mas dessa vez você não tinha acesso ao Jim Henson e ao Jerry Juhl…
Conto de Areia foi mais fácil de adaptar do que trabalhar com um roteiro de história em quadrinhos, apesar de provavelmente também ter levado mais tempo. Quando trabalhando com um roteiro específico de quadrinho eu preciso seguir, na maior parte, àquilo que o escritor escreveu. Por sorte eu tenho trabalhado com alguns bons escritores de quadrinhos, então raramente precisei fazer mudanças drásticas no enredo – e quando mudanças são necessárias eu sempre posso conversar com ele ou com o editor.
No entanto, com Conto de Areia, não tive nenhuma amarra. Nada estava determinado, em termos narrativos. No que diz respeito ao layout dos meus painéis, ao número de painéis, às viradas de páginas, ao ritmo e todo o resto, estava tudo por minha conta. A liberdade criativa que isso me permitiu foi imensurável.
Tendo o roteiro inteiro à disposição, eu sentei com ele e com um scketchbook customizado que eu fiz para o projeto e comecei a adaptar visualmente o roteiro. Fui essencialmente transformando em um storyboard, ao invés de adaptar cada trecho do roteiro. Foi um processo muito interessante – que eu adoraria repetir.
Para imaginar o visual e compreender como eu adaptaria o roteiro eu mergulhei nos primeiros trabalhos do Henson, como Cube e Time Piece, assim como vários curtas animados. Ganhei conhecimento sobre o tempo dele, o estilo de edição, o ritmo e a música, eu filtrei isso tudo a partir das minhas sensibilidades narrativas e assim levei Conto de Areia adiante.
E como foi a sua dinâmica com os editores da Archaia e com a Jim Henson Company durante esse processo de adaptação?
Felizmente a Jim Henson Company estava muito aberta e me deu bastante liberdade para lidar com o roteiro como eu achasse melhor. Eu encontrei com a Lisa Henson umas duas vezes também e ela me deu algumas boas dicas relacionadas ao pai dela. Durante o desenvolvimento do processo eu também trabalhei muito próximo com os meus editores Stephen Christy e Chris Robinson fazendo ajustes ao roteiro, informando-os sobre cortes na história original por questão de espaço e por necessidades de adaptação, reajustando coisas que podem funcionar em um filme, mas não em um quadrinho.
O roteiro do Jim e do Jerry já estava finalizado, mas ele precisava ser interpretado, trabalhado e ajustado para fazer sentido dentro da linguagem de uma graphic novel. Eu realmente acredito que a história de Conto de Areia é uma espécie de Teste de Rorschach, você pode chamar uma dúzia de narradores para interpretar e conseguir uma dúzia diferente de histórias. Por isso, essencialmente, essa é a minha interpretação de Conto de Areia, o que a história era para mim. Então sim, eu fiz ajustes e mudanças no roteiro em alguns aspectos para que fizessem sentido na minha interpretação e adaptação.
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“O Jim era bastante peculiar em relação à forma como a música servia aos seus filmes e animações. Sendo as histórias em quadrinhos uma linguagem silenciosa, eu fiz uso das cores para adaptar essa característica dos filmes dele. Sem alguém colocar as páginas de Conto de Areia lado a lado, veria um concerto de cores”
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Eu gostaria de saber mais sobre as cores do livro. Como você encontrou a paleta que considerava ideal para a história que estava contando?
Como disse anteriormente, eu mergulhei em muito dos trabalhos iniciais do Jim e do Jerry, o que deu uma noção da paleta que eles gostavam de usar, que misturada com os meus gostos pessoais me levaram à paleta do livro. Depois eu peguei essa paleta e usei como a minha trilha sonora para o livro, criando o que chamo de sinfonia de cores. O Jim era bastante peculiar em relação à forma como a música servia aos seus filmes e animações. Curtas iniciais dele, sem diálogo, dependiam do som para expressar emoções e ressaltar algumas passagens. Sendo as histórias em quadrinhos uma linguagem silenciosa, eu fiz uso das cores para adaptar essa característica dos filmes do Jim. Sem alguém colocar as páginas de Conto de Areia lado a lado, veria um concerto de cores.
Eu gosto do formato do livro. Você sempre soube como ele seria publicado? Como você acha que esse formato de Moleskine contribui para a história do quadrinho?
Foi minha sugestão ter o tamanho do livro igual ao do meu Moleskine de rascunhos e o Stephen Christy levou isso ainda mais adiante fazendo questão de que o elástico fizesse parte da versão final do livro. A razão por trás disso é que o Jim mantinha cadernos de rascunho e diários nos quais anotava suas ideias e pensamentos durante toda a vida. Conto de Areia é basicamente um diário da aventura do Mac – então, no final das contas, pensamos que esse seria o formato perfeito para contar a história e prestar uma homenagem ao Jim ao mesmo tempo.
Como era a sua relação com os trabalho do Jim Henson antes de ser convidado para a adaptação?
Eu era um GRANDE fã do Henson enquanto crescia, principalmente dos Muppets e da Vila Sésamo. Então quando houve a oportunidade de trabalhar em Conto e Areia foi uma imensa honra. A parte mais bonita de participar desse projeto foi entrar em contato com a Karen Falk, a arquivista da Henson Company que me forneceu cópias dos primeiros filmes e de projetos pessoais do Jim com os quais eu não tinha nenhuma familiaridade. Isso realmente abriu a minha visão em relação a outras facetas do trabalho dele.
Você também trabalha para a Marvel e outras editoras mais comerciais. Eu não sei se você considera Conto de Areia um trabalho mais pessoal, mas me parece um projeto mais singular do que uma revista mensal de super-heróis. É muito diferente para você trabalhar em universos tão distintos?
Eu com certeza digo que Conto de Areia é um trabalho muito mais pessoal. Sou eu do início ao fim. De adaptar até criar o visual da história e colorir as páginas trabalhando com a minha equipe de coloristas, principalmente o Ian Herring, mas também Jordie Belair e Kalman Andrasofszky, assim como o letrista, DJ e o designer do livro, Erick Skillman.
Trabalhar em publicações mensais, mesmo que envolvido, é um processo mais rápido e você constantemente se vê incapaz de ver o projeto com a unidade que gostaria. É geralmente a empresa que determina o visual e o estilo do livro. Apesar de ainda haver oportunidade de ser criativo e ousar em publicações mensais, é constantemente uma equipe de pessoas sendo coordenadas por um editor dentro de um ritmo muito rápido.
É engraçado que Conto de Areia seja um roteiro de filme adaptado para quadrinhos em uma época na qual predominam quadrinhos sendo adaptados para o cinema. Você vê muito diálogo entre essas duas mídia? O que você acha desse interesse crescente de Hollywood em quadrinhos ao longo da última década?
Eu acho maravilhoso que tantos quadrinhos estejam sendo adaptados para o cinema e oferecendo um outro formato para essas histórias. Dito isto, apesar de haver semelhanças entre as linguagens principalmente por serem formatadas a partir de histórias e imagens, há coisas que você pode fazer com quadrinhos que não pode fazer em filmes e vice-versa. Filmes são história ativas, a sua experiência é controlada pela visão dos diretores, enquanto os quadrinhos são passivos. Nos quadrinhos, os criadores apresentam a experiência, mas você pode ir para frente ou para trás no tempo com o passar das páginas, assim como a forma como você absorve os diálogos e gasta o seu tempo na arte.
Do que se trata Conto de Areia para você?
Para mim, Conto de Areia é sobre um homem preso nos confinamentos de sua própria vida. É você que faz a sua vida, mas às vezes os maiores empecilhos são aquele que você se impõe. Você é o seu próprio pior inimigo em busca de amor, trabalho, expressão e felicidade. O Mac continua preso dentro da história dele, mas talvez um dia ele veja os escritos nas paredes, como nas páginas iniciais do livro, e consiga se libertar.
Você pode recomendar algo que tenha lido, ouvido ou assistido recentemente?
Uma graphic novel favorita que sempre recorro para buscar inspiração é Asterios Polyp, do David Mazzucchelli. Estou lendo vários livros diferentes no momento, mas sou um grande fã dos livros do Malcom Gladwell. É difícil falar de flmes, nada tem me chamado atenção, apesar de eu ser um grande fã de O Despertar da Força e estar empolgado com Solo. Mas essa é a minha criança interior fã de Star Wars com grandes expectativas por mais histórias desse universo no qual eu cresci. Televisão é algo que tem atraído mais a minha atenção ultimamente. West World é um favorito e estou aguardando ansiosamente pela segunda temporada.