Papo com Sonny Liew, o autor de A Arte de Charlie Chan Hock Chye: “O livro virou referência no debate sobre censura em Singapura”

Eu entrevistei o artista malaio Sonny Liew sobre a A Arte de Charlie Chan Hock Chye, quadrinho lançado em português pela editora Pipoca & Nanquim dois anos após ser eleito o livro do ano pelas revistas The Economist e Publishers Weekly e a melhor graphic novel de 2016 pelo jornal Washington Post. Em 2017, a HQ venceu três troféus do Prêmio Eisner (melhor escritor/desenhista, melhor design de publicação e melhor publicação estrangeira). Sobre a história de Singapura e do quadrinista fictício Charlie Chan Hock Chye, o álbum ainda virou notícia por conta do empenho do governo singapuriano em sabotar seu lançamento contestando o suposto teor subversivo do livro.

Não é todo dia que você verá um quadrinho de um autor malaio publicado originalmente em Singapura causar tamanha comoção e ainda sair no Brasil. Eu escrevi sobre esse percurso tortuoso e triunfal da obra para a Folha de São Paulo. Recomendo a leitura do quadrinho, do meu texto para o jornal e, depois, da íntegra da minha entrevista com Liew. Você confere esse papo complexo a seguir. Ó:

Você se lembra do instante em que teve a ideia de criar A Arte de Charlie Chan Hock Chye? Se sim, você poderia falar um pouco sobre as origens desse projeto?

Bem… Não dá pra confiar o tempo todo em memórias, mas se me lembro bem, a ideia surgiu enquanto lia Comics, Comix & Graphic Novels, do Roger Sabin. Ali eu realizei que qualquer relato sobre a história de quadrinhos exige alguma contextualização histórica – os quadrinhos do Crumb e o movimento contra-cultural dos anos 60, por exemplo, ou o despertar e o desaparecimentos de vários gêneros nos Estados Unidos antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial. Então eu fiquei com essa ideia em mente, fazer um livro que tratasse da história de Singapura, mas que aparentasse ser uma obra sobre a história dos quadrinhos. O formato exato do livro acabou mudando à medida que fui trabalhando – por exemplo, inicialmente eu o concebi com a presença de vários ensaios em formato de texto ao invés de uma obra inteiramente em quadrinhos.

Eu gostaria de saber um pouco mais sobre a produção do livro. Você chegou a finalizar um roteiro antes de começar a desenhar? Como você concebeu essa mistura de estilos que define a estética do livro?

Como eu disse, o livro acabou mudando à medida em que eu trabalhava nele. Outro exemplo é o escopo do qual eu tratava – eu queria que fosse um panorama mais amplo da história dos quadrinhos em Singapura, então pensei em criar uma dúzia ou mais de quadrinistas ficcionais para protagonizá-lo… Mas foi ficando claro para mim que seria muito difícil para o leitor acompanhar isso tudo, então decidi focar em um único artista. E sim, eu fiz um roteiro completo – nesse caso em formato de thumbnails ao invés de um roteiros em texto. Eu não consigo pensar quadrinhos apenas como texto, então todos os meus roteiros são em formato de thumbnails.

O livro contém todo tipo de estilo artístico e os estilos do Charlie mudam ao longo do tempo. Eu queria que ele fosse meio camaleônico, mas que isso também criasse uma dúvida na cabeça do leitor, se ele estava apenas copiando o estilo de outras pessoas ou se ele era realmente um criador original. Uma questão era o quanto eu deveria desenhar do livro, para distinguir os meus desenhos dos desenhos do Charlie. Também por isso eu fiz uso das sequências de entrevistas, inspiradas no quadrinho Lao Fu Zhi (Old Master Q), de Hong Kong.

Eu também gostaria de saber mais sobre o desenvolvimento do projeto editorial do livro. O Chipp Kidd é listado como o diretor editorial da obra. O quanto você já havia desenvolvido o projeto quando o apresentou para os seus editores? Quais foram as principais contribuições deles pra obra final?

A edição de Singapura já havia sido publicada quando vendemos os direitos pro Chip e pra Pantheon. Eu fiquei muito empolgado que o Chip gostou do livro – ele é uma lenda no mundo do design. Claro que muito do visual do livro foi inspirado nos trabalhos dele em livros de arte – o uso de texturas de quadrinhos antigos, as marcas de copos – mas isso veio mais da minha leitura dos trabalhos dele do que de dicas que tenham partido do Chip. O principal trabalho de edição veio da minha editora, Joyce Sim, com alguma ajuda do Dan Koh. A Joyce me ajudou a fazer a checagem de todas as informações, tivemos longos debates sobre o uso de algumas palavras e frases para que tudo fluísse da melhor forma. Também contamos com um advogado e com um historiador para que tivéssemos certeza que as nossas interpretações eram apropriadas e que nada era descabido. Para a edição dos Estados Unidos fizemos algumas pequenas mudanças – acrescentamos uma nota de rodapé para explicar o que é “kachang puteh, por exemplo

Para a edição de Singapura, tudo o que falei para os meus editores é que queria fazer um livro sobre Singapura que também fosse uma versão ficcional da história dos quadrinhos de Singapura. Eu acho que não consegui me fazer entender na época – ninguém compreendia o que eu estava fazendo – acho que eles apenas acreditaram que aquilo tudo resultaria em alguma coisa interessante…

O quadrinho segue três linhas distintas: a vida desse artista esquecido, a história de Singapura e a história dos quadrinhos. Foi difícil para você administrar esses três focos diferentes em um único livro?

Por causa disso, quando finalizei o livro, eu precisei resolver problemas em várias passagens… O final, por exemplo, passou por diversas transformações. Mas em relação a essa sua referência à combinação desses vários temas: muito disso veio tão rápido nas primeiras 30 ou 60 páginas que logo ficou claro para mim que talvez pudesse funcionar. Havia algo em relação à fluidez e às conexões que parecia funcionar. Mas esses pontos de conexões também acabaram funcionando nas 300 páginas seguintes. Eu tive muita ajuda do pessoal para quem enviei os meus rascunho – o meu ex-professor no Rhode Island School of Design David Mazzucchelli me deu muito retorno e o meu ex-editor francês Jean Paul Moulina sugeriu criar títulos para os capítulos para deixar o livro mais organizado.

Eu li sobre os vários problemas que você teve com as autoridades de Singapura. Você imaginava que o livro poderia ter essa recepção enquanto trabalhava na produção da obra? Quais as principais lições que você tirou dessa resposta inicial?

Eu tinha alguma consciência que o livro poderia ter alguns problemas, por ser uma espécie de crítica e uma revisão da narrativa mainstream sobre a história da Singapura. Mas eu não achava que a verba do NAC seria retirada. A controvérsia em que isso resultou ajudou a chamar atenção para o livro em um nível que a editora nunca imaginou e acabamos esgotando rapidamente as primeiras tiragens. Talvez ainda mais importante tenha sido como isso tudo transformou o livro em um referência no debate sobre censura por aqui.

Eu não tenho certeza quais são as lições mais importantes, com exceção da suspeita de que um criador não tem controle de nada além da própria obra. Você pode tentar aprender sobre a indústria de quadrinhos, sobre política, sobre as redes sociais… Mas no final do dia o que importa é apenas a criação do livro.

Quais as suas opiniões sobre o uso de quadrinhos para tratar de política? Quadrinhos podem ser para apresentar realidade político-sociais complexas e até mesmo fazer do mundo um lugar melhor?

Bem… Eu acredito que a linguagem dos quadrinhos tem potencial para ajudar a explicar vários assuntos complexos – não apenas pelo fato da mistura de imagens e palavras tornar qualquer coisa mais intuitiva, mas também pelo fato da maioria das pessoas associar quadrinhos como aquelas coisas que líamos quando crianças e por isso baixarem um pouco a guarda em relação a eles. Além disso, é um meio como qualquer outro, com seus méritos e suas fraquezas, então eu acredito que diz mais respeito à habilidade de apresentar as coisas em um formato diferente. Pode ser um quadrinho político da mesma forma como shows de TV analisam a nossa política e a nossa sociedade, como o David Simon fez em The Wire.

Fazer do mundo um lugar melhor? No que diz respeito a quadrinhos, eles com certeza melhoraram a minha vida, de Calvin & Haroldo à 2000 A.D., de Homem-Aranha ao Cul de Sac… Mas mudar o mundo é algo difícil e exige muitas forças agindo em conjunto. O mundo de hoje parece estar encaminhando para o autoritarismo em cada vez mais lugares e reagir a isso não é algo fácil – talvez a nossa obrigação seja não apenas mostrar que liberdade e aceitação levam a mais igualdade e crescimento, mas também desafiar a noção que crescimento perpétuo é o que mais importa para países e economias ao redor do mundo.

Você tem um vasto conhecimento sobre quadrinhos norte-americanos e trabalha para a indústria de super-heróis. A maior parte desse material é comprado e consumido principalmente por seu aspecto escapista e pelo distanciamento da realidade. A Arte de Charlie Chan Hock Chye é muito pessoal e uma obra também muito política. É muito diferente para você trabalhar nessas realidades tão extremas?

O trabalho autoral é mais envolvente em vários aspectos… Mas geralmente também resulta em adiantamentos menores! Então, como muita gente, eu preciso conciliar o trabalho comercial com o autoral. O bom disso é que todos eles sempre envolvem a ilustração de quadrinhos, então não gosto de reclamar. Com o trabalho comercial você aprende trabalhando com outros escritores diferentes formas de narrativa e os prazos fazem com que você aprenda novas técnicas para desenhar mais rápido e de forma mais eficiente. Os escritores também acabam sendo as pessoas lidando com os problemas narrativos, então sendo um artista contratado a sua responsabilidade principal é ajudá-los a esclarecerem suas ideias. Em linhas gerais, dá pra dizer que os projetos comerciais são menos trabalhosos, mas também menos divertidos, já os autorais são mais trabalhosos e mais divertidos – se pudermos definir “diversão” como os desafios envolvidos em muitas leituras e pesquisas e busca por dar uma forma a uma história.

Eu diria que muitos quadrinhos mainstream acabam sempre correndo o risco de serem insulares – se referindo mais às suas próprias mitologias do que a uma história propriamente dita. Mas isso não quer dizer que escapismo é uma coisa ruim – todos nós precisamos de um pouco de escapismo de vez em quando. É apenas que as minhas preferências pessoas acabam pendendo para um maior envolvimento com o dito mundo real. Eu lembro de assistir Logan e torcer para que eles tivessem focando mais da história nos caminhões sem motoristas e nos campos de milhos geneticamente modificados!

Outra questão sobre política: Singapura parece ser um país muito conservador e estamos vendo um crescimento desse mesmo conservadorismo na Europa e no continente americano. Por isso tudo, você é otimista em relação ao nosso futuro?

No momento… É difícil ser otimista. Eu acho que os dias do Fim da História, como o Francis Fukuyama previu, com certeza não estão vindo, mas também não estamos próximos do sonho de uma humanidade em paz como em Star Trek. Mas continuamos tentamos, certo? Sejamos intelectualmente pessimistas, mas otimistas nos nossos espíritos.

O que mais te interessa em relação a quadrinhos atualmente?

Principalmente o que é conhecido como quadrinho indie ou alternativo – trabalhos do Daniel Clowes, do Chris Ware e do Chester Brown. Histórias envolventes que também experimentam com a linguagem dos quadrinhos. Se eu tivesse mais tempo também gostaria de ler mais trabalhos do Inio Asano.

O que passa pela sua cabeça quando vê um trabalho seu sendo publicado no Brasil? Você fica curioso em relação à forma como esse livro será lido e interpretado em uma cultura tão diferente da sua?

Sim. O Brasil é um local fascinante e complexo sobre o qual não tenho tanto conhecimento. Não vejo a hora de ver como será essa recepção para o livro.

No que você está trabalhando atualmente?

No momento é a Eternity Girl para a DC Comics, mas eu também comecei uma pesquisa para um livro novo relacionado a questões sobre o capitalismo.

A última! Você pode recomendar algo que tenha lido, visto ou ouvido recentemente?

Rick & Morty é excelente. Em termos de filmes, todos do Hirokazu Kore-eda que assisti foram muito emocionantes e me fizeram pensar bastante.

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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