Floresta dos Medos é o álbum de estreia da quadrinista canadense Emily Carroll e também o primeiro trabalho dela publicado em português. O livro de 208 páginas recém-lançado no Brasil pela editora DarkSide Books é uma coletânea de cinco contos de horror que rendeu à autora o prêmio Eisner em 2015 de Melhor Graphic Novel na categoria Republicação.
“Muitos dos meus medos moldam o tipo de histórias que eu conto e as minhas ansiedades ganham forma nos meus desenhos”, conta Carroll em conversa com o blog, falando sobre o ponto de partida de suas histórias e da estética de seus trabalhos.
Fascinada por histórias de terror desde a infância, a quadrinista alterna temas e estilos em cada um dos contos de Floresta dos Medos. A primeira delas apresenta três irmãs no aguardo do pai desaparecido; a segunda mostra uma fantasma à espera de uma oportunidade de vingança; a terceira trata de um conflito entre irmãos; a quarta é protagonizada por amigas que resolvem explorar os dons mediúnicos de uma delas por meio de um golpe; e a quinta, com ares de trabalho do magaká Junji Ito, narra o primeiro contato de uma jovem com a esposa de seu irmão.
Na entrevista a seguir, Carroll lembrou de seus primeiros contatos com HQs e histórias de terror, falou sobre a construção de Floresta dos Medos, tratou da relação entre histórias de horror e a realidade aterrorizante de um mundo ultraconservador e analisou a onde recente de filmes de terror de sucesso – como Nós, Corra!, A Bruxa, Hereditário. Papo massa, saca só:
“Eu escolhi o horror porque eu tenho sido uma fã do gênero toda a minha vida”
Qual a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?
As seções de quadrinhos dos jornais! Eu tinha alguns favoritos (como Garfield ou The Far Side), mas eu realmente lia tudo todos os dias, mesmo que não entendesse as piadas ou achasse chato. Basicamente, eu lia qualquer coisa que eu pudesse colocar em minhas mãos. Às vezes meus pais me compravam revistas do Archie, mas eu também roubava muito Homem-Aranha e X-Men do meu irmão mais velho.
Quais as técnicas utilizadas por você para a criação de Floresta dos Medos?
Floresta dos Medos é toda desenhada com caneta (e às vezes pincel) e tinta, depois colorida no Photoshop com algumas ferramentas básicas. Eu também utilizei alguns elementos tradicionais que desenhei à mão (como borrões de tinta, borrões de grafite e respingos), escaneei e rearranjei no Photoshop para criar textura em algumas cenas. Muito do trabalho é reorganizado e cortado depois de digitalizado.
“Acho que esse é meu lema quando se trata de arte: quando fico na dúvida, vou no vermelho”
Você se lembra do momento em que começou a desenvolver Floresta do Medos? Se sim, você pode falar um pouco sobre ele, por favor?
Não houve um momento específico – há anos venho criando pequenas histórias e contando histórias em geral, mas não aconteceu até que começasse a fazer histórias em quadrinhos e postá-las na internet, aí eu descobri que qualquer pessoa poderia ter interesse nelas. Eu escolhi contos porque eu gosto de trabalhar de forma rápida e objetiva, estou sempre ansiosa para trabalhar na próxima história, e eu escolhi o horror porque eu tenho sido uma fã do gênero durante toda a minha vida e senti que tinha uma perspectiva que poderia funcionar bem para esse tipo de história.
Você pode me falar um pouco sobre a sua abordagem em relação a cores? Quais são os seus critérios para determinar a paleta de cores de um livro?
Eu gosto de definir a paleta de cores muito cedo, e geralmente preciso de muita brincadeira no Photoshop (para não mencionar alguns acidentes felizes) antes de ter uma idéia do que a paleta será e, portanto, qual será a atmosfera que o quadrinho acabará tendo. Se a narrativa é mais formal e mais parecida com um conto de fadas, escolho uma paleta menos realista – se é uma história e conversa mais natural, escolho cores mais naturais e mais suaves. Tendo dito isso, eu prefiro cores vivas justapostas contra um monte de preto pesado, especialmente vermelho. Acho que esse é meu lema quando se trata de arte: quando fico na dúvida, vou no vermelho.
Eu também gostaria de saber mais sobre a sua abordagem em relação ao design de cada página. Você constrói uma página em função de quadros individuais ou tendo em vista a página inteira? Como isso funciona para você?
Eu visualizo a página inteira de uma só vez, de modo que os painéis funcionem por conta própria e uns com os outros, fazendo da página inteira uma peça coesa. Eu não tenho certeza se isso é realmente benéfico para a narrativa ou não, mas é apenas uma espécie de indulgência artística minha. É provavelmente por isso que gosto de fazer tantas splash pages ou páginas duplas – gosto de imagens grandes e repentinas após um período de painéis minúsculos, por exemplo.
“Corra! é um exemplo de como o horror pode amplificar a realidade para realmente sublinhar os aspectos horripilantes do nosso dia a dia”
Eu estava pensando nessa espécie de renascença recente do horror na cultura pop. Estou pensando principalmente em filmes – produções como Nós, Corra!, A Bruxa, Hereditário,… Você vê alguma razão particular para esse interesse crescente nos últimos tempos?
Como alguém que sempre foi do terror (especialmente filmes – comecei a assistí-los com meu pai e meu irmão mais velho quando eu tinha mais ou menos três anos), tem sido difícil para mim reconhecer que exista algum tipo de renascimento. Boas obras do gênero têm sido feitas há muito tempo, embora eu ache animador ver isso atingir um público tão mainstream. Ainda não assisti Nós, mas Corra! é ótimo e obviamente poderoso em sua capacidade de se conectar, dada a enorme (justamente merecida) recepção que recebeu. É um exemplo artístico importante de como o horror pode amplificar a realidade para realmente sublinhar os aspectos horripilantes do nosso dia a dia. Seu sucesso é massivo, não apenas para o horror, mas para o cinema e a cultura como um todo.
Há um conservadorismo crescente no nosso mundo. Políticos como Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro aqui no Brasil são sintomas explícitos desse mundo cada vez mais xenófobo, homofóbico e hostil em que vivemos. Como a ficção e histórias em quadrinhos são capazes de lidar e, de alguma forma, confrontar essa realidade?
Oh deus, por onde começar. Às vezes parece muito patético estar criando uma ficção de horror em um mundo onde tanto horror é real e imediato (e esse sempre foi o caso). Eu vou dizer que muitos dos meus medos (ser uma mulher, ser gay, estar sempre preocupada com pessoas amadas) moldam o tipo de histórias que eu conto e as minhas ansiedades ganham forma nos meus desenhos. Embora uma ampla gama de pessoas pareça gostar de meus quadrinhos, eu suspeito que as pessoas que podem se relacionar com esses medos e vê-los pelo que realmente são, acabam sendo as mais conectadas com o meu trabalho. Então, talvez essa conexão nos ajude a lidar com isso. É bom encontrarmos uns aos outros e saber que não estamos sozinhos em nossa dor.
Aliás, você é otimista em relação ao nosso futuro?
Cara, ultimamente eu tenho levado um dia de cada vez. Eu sou conhecida por entrar em pânico sobre o futuro. Eu tento me concentrar em qual será a melhor opção para o próximo passo, e como eu posso estar à disposição para as pessoas hoje.
“O medo de fazer ‘quadrinhos errados’, ou não fazer ‘quadrinhos de verdade’, me impediu de tentar por tantos anos”
Eu gostaria de saber o que são quadrinhos para você. Você tem alguma definição pessoal?
Na verdade não. Honestamente, eu faço quadrinhos porque é fácil para mim combinar desenhos com texto – e mais do que isso, eu apenas gosto de desenhar. Imagino que, se não pudesse desenhar, ainda estaria contando histórias, mas talvez escrevendo livros ou peças de teatro. Eu também hesito em definir quadrinhos porque era o medo de ‘fazer quadrinhos errados’, ou não fazer ‘quadrinhos de verdade’, me impediu de tentar por tantos anos.
O que você pensa quando um trabalho seu é publicado em um país como o Brasil? Somos todos ocidentais, mas vivemos culturas muito diferentes. Você tem alguma curiosidade em relação à forma como um trabalho seu será lido e interpretado por pessoas de um ambiente tão diferente dos seu?
Eu acho que isso é parte de publicar qualquer trabalho – a partir de determinado ponto, muito disso está nas mãos dos leitores e o que eles estão trazendo para isso. Eu vou dizer que a maioria das histórias em Floresta dos Medos são baseadas em narrativas orais, como contos de fadas ou histórias de acampamento, e uma tradição oral como essa é bem universal. Eu acho que vou só ficar ligada!
No que você está trabalhando atualmente? Você tem algum livro novo nos seus planos?
Eu estou! Estou trabalhando em uma novela gráfica nova, ainda não anunciada, que também será de horror, mas será minha primeira vez escrevendo e desenhando algo longo, ao contrário de histórias curtas. Eu também tenho um novo quadrinho de horror semi-surreal, semi-gótico, que sai nesta primavera chamado When I Arrived at the Castle.
Você pode me falar um pouco sobre o seu ambiente de trabalho?
Eu tenho um pequeno escritório em casa, com duas mesas – uma para o meu computador, uma para o meu material mais tradicional (embora eu acabe fazendo a maior parte do desenho na frente da TV, pra falar a verdade). Eu trabalho principalmente no computador hoje em dia, então é tudo bem limpinho. Eu também tenho duas estantes de quadrinhos e materiais de referência, e uma cadeira próxima para que eu, idealmente, pudesse ler… mas é o meu gato que está sempre dormindo por lá.
A última! Você pode recomendar algo que esteja lendo /assistindo/ ouvindo no momento?
Acabei de ler uma coleção de contos do Paul Trembley, cujo trabalho eu gosto muito, ele é um escritor de terror que brinca muito com questionamentos sobre a realidade, a nossa sanidade, o uso do narrador, etc. No ano passado eu também gostei muito do livro HEX, do Thomas Olde Heuvelt, um horror holandês muito divertido sobre uma bruxa (e é aterrorizante). Eu também peguei Gingerbread, da Helen Oyeyemi, que eu não li ainda, mas ela é uma das minhas autoras favoritas e eu recomendo de verdade qualquer trabalho dela.