Está no ar a campanha de financiamento coletivo do álbum Dora e a gata, primeiro trabalho longo de ficção da quadrinista e jornalista Helô D’Angelo. Para que as 116 páginas do quadrinho sejam impressas e lançadas em novembro de 2019, a autora pede no site Catarse o montante de R$ 28 mil. Até o momento, faltando 41 dias para o fim da campanha, já foi reunido mais de 56% desse valor. Você confere a página do projeto clicando aqui.
Produzida durante um período de oito meses e publicada originalmente no Instagram de D’Angelo, Dora e a Gata narra a entrada da personagem-título no mundo adulto em meio ao seu convívio com uma gata encontrada por ela na rua.
“Decidi que só começaria a postar os capítulos quando a HQ estivesse finalizada – se não fosse assim, eu sei que ia querer fazer a história ‘perfeita’, sem furos, o que no fim só ia me impedir de terminar”, conta a artista em conversa por email com o blog. Nesse papo, a quadrinista conta a origem de Dora e a gata, comenta o processo de produção da HQ, fala sobre a interação com seus mais de 66,4 mil seguidores no Instagram e mostra-se otimista apesar dos tempos de escrotidão generalizada sintetizados no governo de Jair Bolsonaro.
“É uma questão de parar de demonizar a ignorância, porque isso gera medo do conhecimento, e medo gera ódio, e ódio é o que vivemos”, diz D’Angelo. Papo massa, saca só:
“Do início ao fim, tudo é feito à mão”
Qual foi o ponto de partida para Dora e a Gata? Quando você começou a desenvolver esse projeto? Houve algum estalo particular que te levou a produzir essa história, com esses personagens?
Eu comecei a desenvolver Dora e a gata há dois anos, mais ou menos. Tudo começou pelo final: foi o desfecho que me veio primeiro à cabeça, durante um curso de histórias em quadrinhos no qual precisávamos entregar pelo menos o projeto de uma HQ como uma espécie de TCC. Lembro que me inspirei na minha gata, a Jerí, e pensei nessa história de coming of age, de amadurecimento, e autoconhecimento. Mas por meses eu guardei esse final na gaveta, achando que criar uma trama para chegar a ele seria impossível, até que comecei outro curso, dessa vez de ilustração, com a Psonha Camacho. Eu estava passando por um bloqueio criativo terrível depois de um ano penoso trabalhando no meu TCC, o Quatro Marias, e o curso estava me ajudando a sair dessa. As aulas eram tão inspiradoras que um dia, do nada, comecei a rabiscar e criar personagens: uma moça e uma gata, inspirada na Jerí. Fiz alguns estudos das duas, estudos de cenário e depois algumas tirinhas, sem pretensão nenhuma, e levei para a Psonha ver. Ela animou tanto, me incentivou tanto, que eu continuei desenhando tirinhas soltas, e daí um dia decidi que aquilo era sério e sentei para escrever o roteiro. Lembro que a primeira tira que eu desenhei foi durante a Bienal de Quadrinhos, em Curitiba, na qual eu fiquei extremamente inspirada – e, inclusive, não consegui mais desapegar de fazer tudo à mão, em cadernos. Do início ao fim, tudo é feito à mão.
“No jornalismo, você está contando histórias interessantes por serem verdade; na ficção, tudo depende da sua capacidade de criar e narrar a história”
O meu primeiro contato com o seu trabalho foi com os cartuns e as tiras que você publica no Instagram. Dora e a Gata é o seu primeiro trabalho longo, certo? Como foi o processo de desenvolvimento da estrutura dessa história? O quanto você já tinha pronto desse quadrinho quando começou a publicá-lo?
Sou formada em jornalismo, e meu TCC foi uma reportagem longa em quadrinhos sobre as realidades do aborto no Brasil (coloquei o link na resposta anterior). Mas Dora e a gata é minha primeira HQ longa de ficção, o que faz muita diferença: no jornalismo, você está contando histórias interessantes por serem verdade; na ficção, tudo depende da sua capacidade de criar e narrar a história. É um desafio grande, e meu processo foi bastante desesperador (rs), porque ao mesmo tempo em que eu criava as tiras eu comecei a estudar mais a fundo roteiro, composição, cor e a buscar outras referências nos quadrinhos e no cinema. Então, imagina, eu me sentia uma despreparada, achava que ia desistir, que não ia funcionar, que eu não sabia o suficiente para fazer uma HQ longa – mas, quando eu abri mão de fazer algo perfeito e comecei a me divertir, deu certo. Tirando o desespero, o processo foi mais intuitivo do que qualquer coisa: não fiquei pensando em amarras técnicas e apenas deixei a história fluir, pedindo às vezes conselhos aos amigos mais próximos sobre a narrativa. Foi realmente algo muito sincero: comecei com as tiras soltas, depois montei um roteiro bem simples (ao qual também não me amarrei: era mais uma linha-guia para eu não me perder), e enquanto ia desenhando, ia tendo mais ideias e enriquecendo o roteiro. Não pensei nem em estrutura de página, algo que é minha maior dificuldade: quase todas as páginas têm 6 quadros quadrados, e isso tem a ver com a narrativa, já que no final essa estrutura é quebrada, e também veio como uma forma de facilitar a leitora de quem não está acostumado à linguagem dos quadrinhos, que é boa parte do meu público. Até pela minha insegurança de achar que eu não terminaria, eu decidi que só começaria a postar os capítulos quando a HQ estivesse finalizada – se não fosse assim, eu sei que ia querer fazer a história “perfeita”, sem furos, o que no fim só ia me impedir de terminar. Meu objetivo era finalizar, me sentir capaz de ter algo grande pronto no meu portfólio. E rolou!
E qual foi o maior desafio pra você ao longo desses oito meses de desenvolvimento das 116 páginas da HQ?
Foram dois. O primeiro: lutar contra a minha baixa autoestima ao mesmo tempo em que eu evitava exagerar na dose das horas gastas trabalhando na HQ. O segundo: estruturar uma narrativa tão longa e criada exclusivamente por mim, e ter confiança de que aquilo estaria bom, que eu não precisaria florear mais do que o necessário. Resumindo, confiança em mim e no meu trabalho foi de longe a parte mais difícil (rs). Desenhar eu tirei de letra, rs.
Você trabalha em aquarela e nanquim em Dora e a Gata. Por que essa técnica? Você também faz tudo à mão nas suas tiras e nos seus cartuns?
Eu sou absolutamente apaixonada por nanquim e aquarela, porque cada um deles representou minha entrada num novo “nível” do desenho: o nanquim eu conheci ainda adolescente, e senti um avanço imenso no meu traço depois que consegui começar a dominar a técnica. Já a aquarela veio já comigo adulta, num momento em que eu estava começando a experimentar cores – ganhei meu estojinho da Winsor e Newton do meu namorado, o Luis, e nunca mais larguei. Hoje, nanquim+aquarela são minha combinação favorita, e embora eu também trabalhe um pouco com guache, lápis de cor e grafite, são eles que predominam no meu trabalho, que é quase todo feito à mão. Acho que é o que me dá mais prazer mesmo, sou daquelas chatas que curtem o cheiro das coisas, o toque do papel, a ida à loja para escolher as cores, a incorporação do erro no trabalho, sem possibilidade de crtl+z. Dá mais emoção, mas também dá mais autenticidade. De qualquer modo, ultimamente tenho me dedicado a estudar pintura e desenho digitais, e até curto, mas não tenho a mesma facilidade (ainda?) e arrisco dizer que hoje consigo fazer muito mais rápido qualquer trabalho na mão do que no digital.
Me fala, por favor, como você chegou nessa paleta de cores de Dora e a Gata? Esses tons de azul, roxo e vermelho se fazem muito presentes no seu trabalho. Por que essas cores?
Bom, para começo de conversa, são minhas favoritas. Mas em “Dora e a gata” eu quis resumir ao máximo muita coisa: além da estrutura da página, traços faciais, cenários, as cores das coisas. Optei pelo vermelho e pelo azul porque eles trabalham bem juntos, e o roxo apareceu como mistura dos dois. Depois desenvolvi conceitualmente um pouco mais esse uso das cores. Cada personagem tem uma cor específica, que tem a ver com sua personalidade: Dora e Gata são azuis, uma cor que, dependendo do tom, remete a medo, frio, noite; mas também a harmonia, paz – a ideia é que a Dora, no início, é puro medo e ao longo da narrativa vai se desenvolvendo até chegar à faceta mais harmoniosa de sua cor, com a ajuda da gata, que também é azul. Já Caio, o namorado abusivo de Dora, é o único ponto verde da história toda: é uma cor que eu detesto, e que me remete a doença, a aquilo que está estagnado, mofo, e é difícil de combinar – mas ironicamente não deixa de ser a cor da esperança, do crescimento e da vida, de modo que dá para a gente pensar que mesmo no pior cenário possível existe vida. Ceci, a amiga/interesse romântico de Dora que aparecerá mais para frente, é vermelho: força, energia, potência, atenção.
Você tem muitos seguidores no Instagram e os seus posts recebem muitos comentários. Você já fechou as 116 páginas da HQ, mas essa interação do público com as atualizações da série te fizeram querer mudar ou mexer de alguma forma na história?
Não, nem um pouco! Sou dessas que têm inseguranças ao longo do processo, mas uma vez que a coisa está finalizada, acabou. Sou assim com quadrinhos e relacionamentos, rs. E eu realmente acho que fiz um bom trabalho nessa HQ, estou feliz com ela como um universozinho fechado, sinto que ela está bem coesa e coerente, e acho que mexer em qualquer coisa poderia estragar isso.
Você costuma fazer séries temáticas de cartuns e tiras no Instagram, mas compartilhar uma obra em capítulos, periodicamente, é algo novo. É diferente a interação dos seus seguidores com esse trabalho quando comparada com a interação com seus outros posts?
Sim, é muito diferente! Minhas tiras seriadas, como “Se personagens de filmes fizessem terapia”, não têm periodicidade definida; eu posto quando dá na telha, e muita gente nem sabe que é parte de uma série. Já “Dora e a gata” eu fiz questão, desde o início, de deixar bem claro que seria uma obra em capítulos, que aqueles capítulos seriam finitos, e que a história não seria postada na íntegra no Instagram. Isso criou uma cultura de ansiedade positiva pelos posts, um tipo de ansiedade à qual as pessoas não estão mais acostumadas, já que tudo é muito rápido e instantâneo. No começo, recebi comentários um pouco raivosos das pessoas querendo que eu postasse tudo de uma vez, mas depois de algumas semanas percebi que mesmo os seguidores mais impacientes começaram a curtir essa espera pelo post seguinte – até porque eu tento fazer brincadeirinhas interativas entre posts, como perguntar teorias dos leitores e coisas assim. Eu tenho curtido “alfabetizar” uma galera que não está acostumada a ler quadrinhos: fico pegando no pé de quem chama de “charge” ou “tirinha” essa webcomic; corrijo, explico, lembro que é parte de uma história mais longa e coisa e tal. Acho que se nós quadrinistas não fizermos isso, nunca vamos conseguir conquistar novos públicos. E um novo público, desacostumado com a linguagem de HQs, é o que tem chegado em “Dora e a gata” (até por isso eu quis manter as páginas numa formatação simples).
Como autora independente eu imagino que você não tenha alguém à disposição para atuar como editor da HQ. Como tem sido o processo de edição de Dora e a Gata?
Olha… é um desafio imenso. O que me salvou foram os amigos mais experientes. Como eu falei, o processo de criação da HQ foi meio o monstro de Frankenstein, uma coisa sincerassa e sem muito projeto, e ao longo do caminho pude contar com amigos e amigas que me ajudaram com dicas mais “editoriais” e com críticas à narrativa: a própria Psonha, Alexandre de Maio, Uva (da gráfica Ovu), Carol Ito, Veronica Berta, lovelove6, Luli Pena e toda a cena das mulheres quadrinistas e ilustradoras aqui de São Paulo. Lembro que eu terminei a HQ e mandei para essas e algumas outras pessoas e elas curtiram e me deram ótimos feedbacks – um deles foi a falta de momentos de respiro na história, uma coisa que eu realmente não fiz porque estava muito presa ao ritmo da webcomic, que precisa ser mais rápido e com mais ganchos. Aí, eu completei com umas 15 páginas de respiros: uns momentos contemplativos, tipo a gata sozinha na casa, Dora pensativa, momentos de passagem do tempo, coisas mais calmas, pra pisar no freio mesmo. E em termos de diagramação… foi um terror (rs). Minha ideia original era fazer os textos à mão, mas obviamente eu desisti, tive que diagramar tudo umas três vezes, depois fui descobrindo coisas sobre formatos digitais e montagem do livro que eu nem fazia ideia, fui atrás de ISBN, gráfica, enfim, fazendo enquanto aprendia, tentando não cair no desespero porque é muita coisa. Acho que, com o apoio desses amigos, dei conta (espero!).
“Minha protagonista é uma mulher bissexual em processo de autoconhecimento, que passa por um relacionamento abusivo, mas consegue se reerguer”
O seu trabalho aborda muitos temas políticos e questões sociais, dialoga bastante com a nossa realidade. No projeto de Dora e a Gata você diz que a HQ vai tratar de política “de forma transversal”. Você pode contar um pouco mais sobre como vai ser essa abordagem?
Eu acredito que o fazer político vai muito além de falar explicitamente de política. Tudo é político, especialmente se você é parte de um grupo que chamamos de “minoria política” – mulheres, negros, LGBTs etc. Em “Dora e a gata”, meu foco principal não é a questão da mulher, nem a sexualidade, por exemplo, mas essas são questões que aparecem na obra e guiam seu desenvolvimento; que moldam as personagens e transformam a história, sem que eu precise me referir a elas explicitamente como bandeiras, como foco. A coisa está no discurso, nas entrelinhas, nas vivências, como é na vida real. Quem é esperto vai entender, e quem não é vai, pelo menos, conhecer mais personagens femininas e fortes. Além disso, tem a questão da representatividade. Veja, minha protagonista é uma mulher bissexual em processo de autoconhecimento, que passa por um relacionamento abusivo, mas consegue se reerguer; tirando Caio, todos os personagens são mulheres, todas com seus altos e baixos; uma delas é uma mulher negra e lésbica – e eu trabalhei muito para não objetificá-la para o olhar masculino/branco. Mas, embora eu tenha me esforçado para fazer uma história predominantemente feminina, eu não fico mencionando isso o tempo todo na HQ. Não é necessário: só de ver mulheres cuidando de mulheres, alertando mulheres sobre homens violentos, sendo amigas de mulheres e amando mulheres, isso já está dito. E para além de tudo isso, tem também o fato de eu, a autora, ser mulher em um meio que ainda é, ou que ainda parece, bastante dominado por homens. Com “Dora e a gata”, eu quero mostrar que é possível uma autora mulher produzir uma obra que seja bem recebida pelos leitores sem ter que me adequar a estereótipos sobre histórias “femininas”, e que seja ao mesmo a história que eu queria produzir. Dominar esse espaço e conquistá-lo para as próximas gerações de quadrinistas mulheres é político também.
“Tenho recebido respostas muito interessante de pessoas que inclusive não estão acostumadas a consumir quadrinhos”
Desde o dia 1º de janeiro de 2019 o Brasil é governado por um presidente de extrema-direita, militarista, pró-tortura, fascista, misógino, machista, xenófobo, homofóbico e racista que reflete muito do que é a nossa sociedade hoje. Os seus quadrinhos são sempre críticos em relação a isso tudo e também costumeiramente didáticos e isso me soa como uma postura bastante positiva de enfrentamento e esperança. Enfim, o que eu queria saber: você é otimista em relação ao nosso futuro?
Olha, Ramon, eu sou otimista. Eu tenho que ser. Se não fosse, não teria energia para fazer o tipo de trabalho que eu faço, que é essa coisa provocativa, mas também didática, de pegar a pessoa pela mão e falar: “olha, é isso aqui que você não sabe, vamos tentar aprender juntos?”. E eu tenho recebido respostas muito interessante de pessoas que inclusive não estão acostumadas a consumir quadrinhos: a galera lê minhas tiras com trechos de livros e fala “uau, não sabia disso” ou “isso me fez pensar por um outro lado”. Tem muitos adolescentes nesse bolo, o que me deixa muito feliz. Durante as eleições, eu fiz um resumo em HQ das propostas do Haddad, e muitos eleitores de Bolsonaro fizeram comentários interessantes, não concordando comigo, mas pelo menos assumindo que as propostas pareciam legais, que eles não sabiam, coisas assim. Eu acho que despertar essa curiosidade, esse lado crítico, nas pessoas é o que me mantém trabalhando. É tão gostoso ler, aprender, conhecer, mas num país em que 1,3 milhões de pessoas são analfabetas e em que a educação pública não dá conta de gerar um pensamento crítico, esperar que as pessoas simplesmente tomem gosto por estudar (quando sequer têm tempo de lazer e de cuidar da própria saúde, aliás) é bem ingênuo, então acho que dar uma mãozinha nesse sentido é o mínimo que eu, enquanto pessoa branca, de classe média-alta e privilegiada em quase todos os sentidos, posso fazer. É uma questão de parar de demonizar a ignorância, porque isso gera medo do conhecimento, e medo gera ódio, e ódio é o que vivemos.
Última! Você pode recomendar algo que esteja lendo, assistindo ou ouvindo no momento?
Estou em uma pegada bem política, então tenho lido muitos livros teóricos sobre o tema. O último que li foi “O ponto zero da revolução, de Silvia Federici, que é absolutamente incrível. Indico também, pra quem for bom de inglês, o podcast Welcome to Night Vale, que é ficcional e é uma das coisas mais geniais e inspiradoras que eu já ouvi – especificamente o episódio A story about you. Por último, indico meu livro favorito, que me ensinou praticamente tudo o que eu sei sobre narrativa: The house of leaves, de Mark Z. Danielewski. É um livro metalinguístico, em que a diagramação conta a história junto com o texto, e pirou minha cabeça num nível que nem sei descrever.