É difícil lembrar um quadrinho de estreia tão impactante e visceral na história recente das HQs nacionais como Úlcera Vórtex. Lançada em duas partes pelo selo Escória Comix em 2017, a HQ não foi a primeira obra do quadrinista Victor Bello, mas foi seu primeiro trabalho longo. As pouco menos de 100 páginas da HQ narram os feitos de Loépio de Deus e Adriano Gás na companhia da lagartixa Valdir Vegeta destruindo tudo o que veem pela frente contra os habitantes do violento mundo de Gorgonotúbia – instalado em um buraco negro interdimensional no estômago de um clone de Loépio.
De 2017 pra cá, Bello publicou Incontinência Tripária, 15ª edição da coleção Ugrito, e O Cegueta de Cristo, HQ curta impressa na segunda edição da revista Pé-de-Cabra. Trabalhos excelentes, mas apenas amostras do que viria a ser o grande feito do quadrinista em seguida a Úlcera Vórtex: O Alpinista.
Recém-publicado pela Escória Comix, o novo quadrinho de Victor Bello é um épico de 220 páginas em preto e branco narrando os dramas de Landoni, maior alpinista de todos os tempos, superado apenas em sua escalada derradeira, uma missão trágica que põe fim à sua carreira. Meses depois, o destino de Landoni vai ao encontro das investigações conduzidas pela detetive Norma Leprexau e seu parceiro Charles Bauduco em meio a uma conspiração envolvendo políticos e alienígenas que pode levar ao fim da vida na terra.
Espécie de repentista em quadrinhos, Victor Bello desfila personagens e tramas aparentemente improvisadas na construção de uma história grandiosa, com arte impactante e final catártico. Sempre exigindo fôlego do leitor. Dois anos após Úlcera Vórtex, o lançamento de O Alpinista sacramenta Bello como um dos grandes das HQs nacionais e a Escória Comix, do editor Lobo Ramirez, como uma das principais casas dos quadrinhos brasileiros.
Bati um papo com Victor Bello sobre O Alpinista. Na conversa a seguir ele fala sobre as inspirações e o desenvolvimento de seu novo trabalho, apresenta um pouco de sua formação como quadrinista e revela o início das atividades da Bufa Produções – parceria dele com a quadrinista Emilly Bonna que deve resultar em uma revista inédita no início de 2020. Saca só:
“Se tratando de esporte, não posso deixar de citar os filmes do Will Ferrel como uma influência, sabe aquele da patinação artística? E o da Nascar? E o de basquete? São tantos filmes bons!”
Você pode contar um pouco, por favor, sobre o ponto de partida de O Alpinista? Houve alguma inspiração em particular que te levou a começar a produzir esse trabalho?
Olá Ramon! Obrigado pelo espaço! Então, há muitos anos eu tinha na minha cabeça uma idéia boba de dois alpinistas que viviam disputando pra ver quem era o melhor. Até que um deles morre em um ato heróico e é considerado o melhor pra sempre, o que frusta totalmente o outro alpinista. Isso ficou guardado/esquecido e quando surgiu a vontade de fazer um novo quadrinho pra Escória Comix, vi que poderia usar isso para começar a minha nova história. Inspiração em particular eu não lembro, mas estava com muita vontade de fazer uma história sobre algum esporte. Peguei o alpinismo, que é um esporte praticado em todo o mundo, praticado até por bebês e velhinhos senis, e vi que poderia abordar muitas questões com isso. E, se tratando de esporte, não posso deixar de citar os filmes do Will Ferrel como uma influência, sabe aquele da patinação artística? E o da nascar? E de basquete? São tantos filmes bons!
Duas coisas que me impressionam muito nos seus trabalhos: a quantidade de personagens, sendo cada um deles muito desenvolvidos, e a as várias reviravoltas e tramas paralelas que você cria. O que vem primeiro na sua cabeça: os personagens ou as histórias que você quer contar? Ou eles vão se desenvolvendo ao mesmo tempo?
Obrigado! Acredito que primeiro vem a história. Conforme vou desenvolvendo a história, aí surgem os personagens.
“Todo mundo pode aparecer e todos os personagens têm história, assim como todas as pessoas no mundo tem sua história também! “
Enquanto o Úlcera Vórtex era protagonizado principalmente pelo Adriano Gás, o Alpinista tem vários coprotagonistas. Como você administra a presença, o desenvolvimento e a participação de cada um desses personagens no quadrinho?
Complicado, é algo mais instintivo. No Alpinista, depois da introdução, fiquei num pingue-pongue entre duas histórias separadas. Tento apresentar os personagens e a história individual de cada um deles aos pouquinhos, com mais sugestões do que revelações, pra atiçar a curiosidade e a imaginação da leitora e do leitor. Sem isso a história fica mortinha. Quanto à participação deles, como são muitos para administrar, prezo sempre pelo ritmo mais acelerado, cenas curtas, com rápida resolução ou um gancho. As vezes o personagem nem era pra ter importância, como o Guguto Milk. Neste caso, a história foi pra uma direção que acabou fazendo ele ser importante, aí vou vendo a necessidade de apresentar mais características dele, desenvolvê-lo, etc. No Úlcera Vortex, por exemplo, o dono da Agropecuária Iron Maide não ia aparecer, mas aí eu penso: por que não? Todo mundo pode aparecer e todos os personagens têm história, assim como todas as pessoas no mundo tem sua história também!
“O principal eu consegui fazer: colocar uma cena de onda gigante no gibi, coisa que não consegui em Úlcera Vortex. Se eu morrer hoje, morro feliz”
Voltando à trama: O Alpinista tem muitos personagens e a história é repleta de reviravoltas. Eu precisei ir e voltar algumas vezes para não me perder no enredo. Como você construiu essa história? Você também teve alguma dificuldade para não se perder durante a trama?
Então, não há muito método em como construo a história, eu faço uma página e vou imaginando todos os possíveis desenrolos da trama, o que mais me agrada é colocado nela. A parte da investigação foi mais difícil, pois tive que voltar mais vezes na história para não deixar furos. Como os investigadores são meio burrinhos, é uma característica dessa trama uma certa dose de confusão, eles vão construindo o caso a partir de pistas que parecem não fazer sentido ou tirando conclusões precipitadas, indo por caminhos estranhos, etc. Acho que as pessoas podem se perder em algum momento… Ficaria feliz se todos tiverem essa paciência de voltar, ler de novo… Esse comprometimento com a história é legal e importante. Mas não sei como as pessoas vão receber, espero que se divirtam. De qualquer modo, o principal eu consegui fazer: colocar uma cena de onda gigante neste gibi, coisa que não consegui em Úlcera Vortex. Se eu morrer hoje, morro feliz.
Aliás, você chega a finalizar um roteiro antes de começar a desenhar? Como foi a dinâmica de produção de O Alpinista? Quanto tempo levou pro quadrinho ficar pronto?
É tudo bem amador hahaha Não consigo escrever roteiro. Anoto, claro, algumas idéias soltas e palavras chaves. Tem coisa que eu guardo na cabeça e depois esqueço, aí já era, mas se eu esqueci não era importante. Quando começo a desenhar eu nunca sei no que vai dar, então é mais fácil ir pra vários caminhos, criar histórias paralelas e vários personagens. O quadrinho demorou mais ou menos um ano. Comecei a produzir pra valer a partir de setembro de 2018. Mas em janeiro daquele ano eu já havia feito as primeiras cinco ou oito páginas. Terminei no final de julho de 2019.
“No começo ia ter 70 páginas, depois 100. De repente tinha 150, mas falei pro Lobo que não passsaria disso. Quando contei no final tinha 210, por aí”
Você pode me falar, por favor, um pouco sobre as suas técnicas? Que materiais você usa? É tudo feito com papel e caneta? Tem algum elemento digital?
Trabalho com papel no formato A5, lápis e caneta nanquim. Em alguns momentos usei nanquim diluído em água. No computador eu pinto de preto as partes maiores dos desenhos. Também utilizo alguns tons de cinza e também aplico algumas retículas.
Como é a dinâmica do seu trabalho com o editor da Escória, Lobo Ramirez?
O cara é o chefe, né… A gente tem que respeitar. No caso do Alpinista, ele sabia pouco do que eu tava produzindo, mas é um carinha que confia em mim. Tinha mandado umas sete páginas pra ele, disse que seria uma história de um alpinista serial killer e eu até ia fazer isso, mas a história não rolou na minha cabeça, não ficava legal (inclusive acabo citando esse plot num diálogo entre Jimy Ioiô e Landoni). No começo ia ter 70 páginas, depois 100. De repente tinha 150, mas falei pro Lobo que não passsaria disso. Quando contei no final tinha 210 por aí, nem sei quantas páginas tem na verdade hahaha
“Hoje sonhei que dava uma bochada na cara daquele Weintraub, o incel, enquanto chutava os bago do Paulo Guedes, o babidi”
Em maio de 2019 Carlos Bolsonaro fez um post imbecil no Twitter atacando um leitor do Úlcera Vórtex que fez uma homenagem ao quadrinho nas redes sociais. O que você pensa dessa galera que tá no poder e das merdas que eles têm feito?
O Alessio Esteves postou uma foto com a coletânea Porta do Inferno e alguns apetrechos do Adriano Gás e uma jaqueta do Asteroides (do Lobo), disse que ia dar porrada em bolsominions e foi muito engraçado a repercussão. Bom, o Carlos Bolsonaro, que fez o post, é um dos brasileiros mais burros e filhos da puta do momento, junto com seu pai e aquela trupe bizarra de ministros (hoje sonhei que dava uma bochada na cara daquele Weintraub, o incel, enquanto chutava os bago do Paulo Guedes, o babidi). Depois do golpe que deram na Dilma e da tramóia que fizeram pra prender o Lula não tem como esperar coisa boa. O Bolsonaro é a encarnação de tudo que há de mais repulsivo na sociedade e política brasileira, representa um Brasil vira-lata, racista, que odeia pobres… Um cara envolvido até o pescoço com merda pesada, com milícia. Ele, e quem tá do lado dele, só vai fazer merda, quem espera o contrário merece uma enxadada nas costas também.
“Eu e Emilly Bonna, autora de Esgoto Carcerário, criamos a Bufa Produções e pretendemos lançar uma revista de quadrinhos já no início de 2020”
Pergunta meio injusta porque você acabou de lançar um quadrinho de mais de 200 páginas e imagino que mereça um descanso, mas acho importante fazer: você já está trabalhando em algum projeto novo? Se sim, o que você pode adiantar?
Sim! Eu e Emilly Bonna, autora de Esgoto Carcerário, criamos a Bufa Produções e pretendemos lançar uma revista de quadrinhos já no início de 2020. Além disso, quero começar um novo gibi, de umas 40 páginas, mas ainda não confirmei com a editora que vai publicar, por isso não dá pra revelar muita coisa haha. Mas envolve sinuca!
Qual a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?
Uma caixa cheio de gibi da Turma da Mônica, era a única coisa que eu lia quando criança. Gostava muito de uma história do Cascão no ferro-velho. E também meu irmão me dando um Teia do Aranha que ele tinha comprado num sebo.
O que mais te interessa em termos de HQs atualmente? Que tipo de quadrinho você gosta de ler? Tem algum autor ou alguma obra que te chama mais atenção?
No momento estou lendo pouco quadrinhos, infelizmente. Gosto dos desenhos do Derf Backderf, Johny Ryan, Lawrence Hubbard, Hideshi Hino… Muitas coisas que só vi pelo Google Imagens. Mas o que mais acompanho é essa cena independente de quadrinhos do Brasil, mais voltado pro humor e nojeira, o que vem sendo publicado pela Escória Comix, Pé-de-cabra, etc. Tem muita coisa aí que gostaria de ler, mas ainda não li. Fora isso estou com muita vontade de ler Carolina, da Sirlene Barbosa e do João Pinheiro.
Você pode recomendar algo que esteja lendo /assistindo /ouvindo /jogando no momento?
Recomendo muito o seriado Nathan for You, que só consegui legenda em português para as duas primeiras temporadas. Se tem alguma boa alma que sabe legendar e esteja lendo isso, por favor, legende as outras temporadas de Nathan For You.