A designer e ilustradora Giovanna Cianelli é a autora da arte do postal de sete anos do Vitralizado. O postal será lançado oficialmente no próximo fim de semana, dias 19 e 20 de outubro, na Feira Des.Gráfica, realizada no Museu da Imagem e do Som de São Paulo (saiba mais clicando aqui). Eu estarei por lá distribuindo os postais de graça e com alguns poucos exemplares de um pôster com a mesma arte. Fica o aviso: vai acabar rápido!
Fiz o convite para Cianelli produzir o postal por conta da leva recente de trabalhos extraordinários publicados por ela. Passei a acompanhar atentamente sua produção com o lançamento da webcomic Garota Galáctica, uma ficção científica com ares kirbyanos lançada no final do ano passado e produzida em parceria com o editor Daniel Lameira.
Nos últimos meses ela assinou uma leva de projetos gráficos impressionantes. Pela Aleph trabalhou com quadrinista Rafael Coutinho em Ubik, O Homem do Castelo Alto e Blade Runner, os três de Philip K. Dick; e com a artista Marcela Cantuária em A Mão Esquerda da Escuridão e Os Despossuídos, de Ursula K. Le Guin. Também pela Aleph foi a responsável pelo projeto gráfico e pela arte da capa da mais recente edição de Laranja Mecânica, de Anthony Burgess.
Ela é responsável pelos belíssimos projetos gráficos da editora Antofágica – como as novas edições de A Metamorfose, de Franz Kafka, com artes de Lourenço Mutarelli; e A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, com ilustrações de Paula Puiupo – e também pelo design das edições de três títulos recém-anunciados da editora Pipoca & Nanquim: Sob o Solo, de Bianca Pinheiro e Greg Stella; Gastaria Tudo com Pizza, de Pedro Duarte; e A Floresta das Árvores Retorcidas, de Alexandre Callari.
Bati um papo com Cianelli sobre a arte do postal de sete anos do Vitralizado e também conversamos sobre toda essa leva de grandes trabalhos assinados por ela. Ela falou um pouco sobre técnicas e inspirações, prometeu a retomada de Garota Galática em um futuro próximo e adiantou seus planos para outra HQ autoral, Diabo Diabinho – já pronta e em breve em campanha de financiamento coletivo no Catarse. Papo massa, saca só:
“O resultado geralmente é uma colagem de ideias e a partir delas crio a ilustração. É minha forma preferida de criar.”
Quando fiz o convite para você produzir a arte do postal eu não dei muitos direcionamentos. Falei dessa minha leitura do blog como um espaço meio anacrônico e antiquado em meio a tantos canais de YouTube e também dos ares cada vez mais retrôs de um blog dentro desse mesmo contexto. O quanto dessa minha orientação ajudou no desenvolvimento do seu trabalho? Geralmente você prefere direcionamentos mais específicos do que esse?
Eu fiquei muito feliz com o convite. Já acompanho o blog há anos e sempre fico impressionada com as entrevistas, os conteúdos e o bom gosto de modo geral.
A partir do direcionamento que você me deu, comecei a pensar em como representar esse espaço anacrônico. Queria fazer algo mais complexo, não tão fácil de ser entendido em um primeiro momento, algo que prendesse a atenção e fosse mais rico do que poderia parecer a primeira vista. Surgiu uma ideia de trabalhar com vários planos. Pensei que seria interessante usar cômodos de uma casa e brincar com a espacialidade.
É sempre bom ter liberdade, mas também pode ser bem intimidador. Então, quando os direcionamentos são mais abertos a criação é mais demorada, procuro muitas referências para chegar a novas interpretações sobre aquele assunto. O resultado geralmente é uma colagem de ideias e a partir delas crio a ilustração. É minha forma preferida de criar.
“O trabalho do quadrinista Joost Swarte, foi minha principal inspiração, especialmente como ele explora a falta de sincronia entre conteúdo e traço”
Quais foram as primeiras referências que vieram à sua mente quando você começou a trabalhar nesse projeto do postal? Houve algum elemento em particular que você teve como meta utilizar e que ficou no trabalho final?
Durante esse processo de pesquisa, demorei para achar a linguagem que queria explorar. Fiquei pensando sobre desenho animado dos anos 30, tipo Bimbo’s Initiation, Skeleton Dance e Betty Boop. A inocência no traço, os cantos arredondados e a simplicidade contrastando com desconforto fantástico, exageros e alegorias. O trabalho do quadrinista Joost Swarte, foi minha principal inspiração, especialmente como ele explora a falta de sincronia entre conteúdo e traço. Tentei misturar isso com um pouco de sci-fi pra acentuar o tom anacrônico.
“Algumas cenas são referências diretas a quadrinhos de Swarte redesenhadas com outros personagens e outro contexto”
Você pode falar um pouco das suas técnicas nesse postal? Como foi a produção dessa? Que material você utilizou?
Antes de começar a pensar na versão final, fiquei desenhando em cadernos como seriam os personagens e os elementos que gostaria de usar. Com uma ideia mais clara de como seria o desenho, fiz uma colagem para me ajudar na composição e comecei a desenhar direto no digital. Algumas cenas são referências diretas a quadrinhos de Swarte redesenhadas com outros personagens e outro contexto.
“O que tem mais me impactado são os livros do Charles Burns e do Daniel Clowes, que são os meus quadrinistas preferidos”
Você pode me falar um pouco sobre a sua relação com quadrinhos? O que você mais gosta de ler? Quais são as suas lembranças mais antigas em relação à presença de quadrinhos na sua vida? Há algum elemento da linguagem dos quadrinhos pelo qual você tem mais interesse?
Minha primeira lembrança com quadrinhos é bem antiga. A mais longínqua que consigo pensar é aos três anos: eu adorava ficar vendo as páginas dos gibis, minha mãe achava interessante eu gostar tanto e me deixava brincar com eles. Até que um dia ela percebeu que eu estava comendo parte dos gibis hahaha
Meu pai foi minha maior influência, ele lê Disney, Tintim e Fantasma até hoje. Quando eu era criança tinha muito gibi espalhado pela casa toda. Minhas amigas também tinham e a gente fazia um rodízio pra ter histórias diferentes para ler. Na adolescência, li muito Chiclete com Banana e isso me marcou bastante. Aliás, durante a adolescência, o punk esteve muito presente na minha vida, e comecei a acompanhar a produção independente. Não lia muita coisa gringa porque não tinha dinheiro para comprar muitos livros. Às vezes, ia nas livrarias ou bibliotecas e ficava lendo por lá mesmo.
Atualmente, o que tem mais me impactado são os livros do Charles Burns e do Daniel Clowes, que são os meus quadrinistas preferidos. Esse surrealismo bizarro flertando com questionamentos existencialistas me atrai muito e o que me encanta mais no quadrinho é justamente essa imersão fantasiosa que sinto quando leio uma boa história.
“Eu queria criar uma personagem que fosse uma anti-heroína porradeira”
Eu gosto muito das cinco páginas que você e o Daniel Lameira produziram até hoje para a Garota Galactica. Como essa série teve início? Vocês têm planos de dar continuidade ao projeto?
Lembro que uma vez vi uma entrevista da LoveLove6 falando sobre a falta de personagens icônicas no quadrinho brasileiro. Aquilo ficou na minha cabeça e fiquei pensando como seria a personagem que eu gostaria de criar. A temática sci-fi, foi meio óbvia porque eu já consumia muitas coisas relacionadas a isso. Eu queria criar uma personagem que fosse uma anti-heroína porradeira. Uma das minhas referências foi a Barbarella e muito também do 2001, do Kirby, obra que sou apaixonada.
O Dani tem importância gigantesca em tudo que eu produzo. Muitas vezes eu me sinto insegura, fico questionando se o que eu faço é suficientemente bom e acabo não sendo muito gentil comigo mesma. Sou muito exigente com o meu trabalho e o apoio dele é fundamental. Faz um tempão que queremos produzir uma história em quadrinhos juntos (essa já é a terceira ou quarta tentativa). Conversei com ele sobre essa personagem e ele criou um roteiro incrível que me ajudou a enxergar possibilidades maiores para aquele universo.
Quero muito continuar produzindo a Garota Galáctica. Passei por um período de produção intensa de trabalhos mas quero arrumar algum jeito de encaixar isso na rotina para a produção se manter frequente.
Tenho uma outra HQ pronta há quase 2 anos, se chama Diabo Diabinho. Vou lançar uma campanha no Catarse para financiar a impressão desse projeto e tirar isso da gaveta. A narrativa é um pouco mais experimental, em relação ao estilo tem bastante influência das HQs de romance que o Kirby produzia antes de se dedicar quase que totalmente aos super-heróis. Tem uma pegada meio brega que eu acho divertida. Acho que a volta da produção da GG vai ser depois disso.
“Tento absorver o que o cliente quer comunicar e misturar esse conceito com coisas que eu gosto”
Sobre as capas e projetos editoriais nos quais você trabalha: você tem alguma técnica ou método para encontrar qual a investida “certa” para um livro?
Eu me apoio em referências o tempo todo. As coisas que eu consumo influenciam diretamente onde eu quero chegar com determinado projeto. Geralmente, tento absorver o que o cliente quer comunicar e misturar esse conceito com coisas que eu gosto. Os editores também tem grande influência nessa decisão de qual abordagem é a mais adequada.
Eu gosto muito dessa leva recente de trabalhos seus para a Aleph, tanto seus projetos solos, como as parcerias com ilustradores – como o Rafael Coutinho e a Marcela Cantuária. Como é a dinâmica do seu trabalho com esses ilustradores?
É uma honra enorme trabalhar com tanta gente foda. Com o Coutinho, às vezes rola dele mandar o sketch e eu ja começar a encaixar a tipografia antes da finalização para o conjunto ficar mais coeso. Na maioria das vezes eu recebo a ilustração pronta e aí vou tentando selecionar um enquadramento legal, e começo a pensar no type. Para o Ubik, por exemplo, cheguei a fazer umas 50 opções de lettering. Foi um processo cansativo. Em outros casos, como por exemplo Blade Runner, acertei a fonte de primeira. Sempre aprovamos o design junto com o artista.
“Esse estilo de desenho psicodélico com proporções estranhas me encanta”
Eu já queria muito te chamar pra fazer o postal de 7 anos, mas tive certeza que deveria ser você depois que a Aleph divulgou a capa da mais recente edição do Laranja Mecânica. Você pode me falar sobre o desenvolvimento desse projeto em particular?
Laranja Mecânica é um ícone da cultura pop e criar uma cara nova para uma obra que já está tão estabelecida é difícil. Esse projeto tem grande influência do trabalho de Heinz Edellman, animador alemão que produziu coisas muito interessantes nos anos 60 (ele participou também da animação de Yellow Submarine). Esse estilo de desenho psicodélico com proporções estranhas me encanta. Amo a adaptação feita pelo Kubrick, a estética do filme, com certeza, foi um norte também.
Eu pensei nessa capa aberta (de orelha a orelha) como uma linha do tempo de animação, então os elementos têm uma certa sincronia de movimentos e direções. A ilustração central da capa é a cena clássica de Alex recebendo o tratamento Ludovico enquanto os droogies estão se afastando dele e do outro lado estão facas e a cobra (reiterando a violência e simbolizando traição). Na quarta capa, os policiais estão andando em direção aos droogies. Com isso, queria representar uma relação de passado/futuro e também de conflito iminente entre a violência do estado e a violência das gangues.
Em relação a escolha de tipos: fiquei apaixonada por uma tipografia, Ginger Snap, que vi na capa de um livro dos anos 70 sobre repolhos. Pesquisando mais sobre ela, descobri que também tinha sido usada na capa do Transa, do Caetano Veloso. Não achei nenhuma versão digital disponível, o que me deixou bem triste. Então, com a imagem de catálogos e alguns outros materiais onde ela tinha sido utilizada, redesenhei as letras. Deu trabalho até ficar bom.
O projeto gráfico do miolo também faz referências a pop art com repetição, cores chapadas, tipos redondos. No manuscrito do autor, existem pequenos doodles do próprio Burgess. Peguei esses desenhos, vetorizei e apliquei eles bem grandes.
Para o miolo também criei uma colagem com recortes de jornal da época da ditadura quando Laranja Mecânica (tanto o filme quanto o livro) foram censurados aqui no Brasil. Essa colagem é sobreposta com a palavra ‘ultraviolência’ repetida muitas vezes. Não deixa de ser uma crítica ao momento político que estamos vivendo. Esse projeto foi bem especial pra mim.
“Orbitamos entre a liberdade e a opressão, fazendo pouco progresso de fato”
Uma pergunta que tenho feito bastante aqui no blog: desde o dia 1º de janeiro de 2019 o Brasil é governado por um presidente de extrema-direita, militarista, pró-tortura, fascista, misógino, machista, xenófobo, homofóbico e racista que reflete muito do que é a nossa sociedade hoje. Você é otimista em relação ao nosso futuro?
Acho que dias melhores virão, mas não no futuro próximo. A política brasileira é surreal e essa falta de previsibilidade me assusta bastante.
Ano passado, li aquele livro O Universo Numa Casca de Noz, do Stephen Hawking, e aprendi que o tempo pode não ser linear, com começo, meio e fim. Existe uma teoria que o tempo é circular, então o que já passou pode ser o nosso futuro. Pensar nisso é bem doido mas essa percepção me fez pensar sobre o comportamento social. Muitas vezes não acho que estamos evoluindo como sociedade e sim num looping maluco sobre permissões, proibições e preconceitos. Orbitamos entre a liberdade e a opressão, fazendo pouco progresso de fato.
Você pode recomendar algo que esteja lendo, assistindo ou ouvindo no momento?
Quero indicar o Sob o Solo, novo quadrinho da Bianca Pinheiro com o Greg Stella, que vai ser lançado pelo Pipoca & Nanquim. A Bianca já era a minha quadrinista preferida e acho que essa é uma de suas melhores obras.
parabéns você é um sucesso pela sua competência e criatividade , muito orgulho, beijos