Entrevistei o quadrinista japonês Naoki Urasawa sobre a versão brasileira da exposição Isto é Mangá – A Arte de Naoki Urasawa, em cartaz na Japan House de São Paulo até o dia 5 de janeiro de 2020. Escrevi aqui pro blog uma matéria na qual falo sobre a mostra e também sobre a vida e a carreira do autor de obras como Pluto, 20th Century Boys e Monster. Você lê esse texto clicando aqui.
Na minha entrevista com o autor ele comenta sobre a curadoria da exposição na Japan House, fala sobre técnicas e influências, exalta o trabalho de Osamu Tezuka e trata um pouco de sua paixão por música – citando inclusive uma canção brasileira.
Recomendo uma ida à exposição Isto é Mangá – A Arte de Naoki Urasawa e também a leitura dos trabalhos de Urasawa, dos meus quadrinistas favoritos no momento. Agora deixo vocês com a versão completa da minha entrevista com o autor. Papo bão, saca só:
(Na imagem que abre o post, ilustração do quadrinista Naoki Urasawa exposta na mostra Isto é Mangá – A Arte de Naoki Urasawa. Crédito: Divulgação)
“O mangá é uma paixão para mim”
Qual a memória mais antiga da presença de mangás na sua vida?
O Astro Boy (o volume que continha o episódio O Maior Robô da Terra), Jungle Taitei (volume depois da metade da história). Na época que eu tinha quatro ou cinco anos, me deram esses dois livros e eu fiquei lendo repetidas vezes.
O senhor pode falar um pouco sobre a origem da exposição Isto é Mangá? Como ela teve início? Qual o seu envolvimento com ela?
O projeto foi realizado por ter sido selecionado como exposição itinerante nas três sedes da Japan House (São Paulo, Los Angeles e Londres), iniciativas do Ministério das Relações Exteriores do Japão.
Quanto à exposição, eu produzi todos os assuntos envolvidos nela, desde o conceito da exposição até a criação do espaço expositivo. O mangá é uma paixão para mim, e por isso pensei na melhor forma de se expor a essência do mangá, que para mim é pela experiência de se ler um capítulo inteiro.
“Quando trabalho com uma obra, sempre me pergunto se ela possui universalidade”
O que o senhor vê de mais interessante na linguagem dos mangás? O que mais te interessa fazer e ler em termos de mangás?
Tem muita coisa interessante no mangá, então é impossível dizer apenas com uma palavra. Histórias maravilhosas, falas que mexem o coração e o mais importante, a originalidade dos desenhos de cada um dos mangakás.
Acho que o que faz fisgar a coração dos leitores são as emoções vívidas dos personagens que são expressadas, e que por sua vez, expressam a paixão dos mangakás.
Os mangás chegaram com força ao mercado editorial brasileiro nos anos 90. Até então, havia um predomínio dos comics norte-americanos e de obras europeias. Qual você vê como o elemento mais distinto dos mangás em relação às outras formas de quadrinhos ao redor do mundo?
Acredito que a grande diferença entre o mangá e os quadrinhos como B.D e comics americanos seja a quantidade de quadros. Eu acho que o mangá usa vários quadros e páginas em uma cena em que o B.D ou comic americano fariam com apenas um desenho.
Penso que isso transmite com mais profundidade, e de forma mais detalhada, o impacto e a alteração das emoções.
“Tento trabalhar com materiais relativamente comuns e fáceis de achar”
Aqui no Brasil já foram lançados três dos seus mangás: Pluto, Monster e 20th Century Boys. Você costuma ter algum ponto de partida em comum para o desenvolvimento do seus trabalhos? O que te inspira?
Meu ponto de partida é a ideia geral da obra, que surge repentinamente, de forma abstrata.
A partir daí, eu pego a ideia geral, que pode ser algo como ‘uma pessoa flutuando no espaço’, e vou amadurecendo ela por um período, entendendo se ela cabe em diferentes realidades e se o tema é universal, inserindo personagens que ganham vida e personalidade própria dentro da minha cabeça, deixando com que eles ajam livremente. E quando esses elementos se transformam em uma certeza, começa o trabalho.
E sobre as suas técnicas: quais materiais você gosta de usar? Você tem algum método preferido de produção? Alguma rotina de trabalho que gosta de seguir?
Eu desenho o name (esboço do esboço, é algo como a planta inicial do mangá) em papel sulfite.
Não uso o caderno porque preciso rasgar a página quando acho que que errei. Se for papel sulfite, posso jogá-lo logo no lixo.
Fora isso, tento trabalhar com materiais relativamente comuns e fáceis de achar. Usar algo muito raro pode acabar gerando dependência e o medo de que um dia possa ficar indisponível.
“Durante o lançamento do mangá, eu sempre trabalho presumindo o último capítulo da obra”
Aliás, você pode falar um pouco sobre o seu ambiente de trabalho?
Ultimamente tenho trabalhado com name em cafeterias. Na minha casa tenho muitas coisas do meu hobby (discos, livros, DVD, etc.) e acabo me desconcentrando. Na cafeteria não levo nenhum livro que gosto e proíbo o uso de SNS (social network service). Me concentro apenas no name.
Eu desenho no ateliê e antes trabalhava no mesmo quarto onde trabalhavam os assistentes. Atualmente, peço para os assistentes trabalharem em casa. Quanto ao andamento, confiro e oriento por meio de imagens enviadas por Line.
20th Century Boys é uma série longa, que me marcou muito pelos cliffhangers presentes ao final de cada edição. Como é desenvolver e planejar um projeto longo como esse? O quanto a história já estava finalizada quando você começou a desenvolvê-la?
Durante o lançamento do mangá, eu sempre trabalho presumindo o último capítulo da obra já naquele momento. Em hipótese alguma desenho sem pensar no final.
Quando começo a trabalhar em uma obra, penso, por exemplo: essa série vai ter uns 20 volumes, a duração da série deve ser de uns 5 anos. Penso o volume da obra e nesse momento, na minha cabeça, já tenho a imagem da última cena. Porém, há casos em que depois de passar 5 anos desenhando, a história acabou ficando bastante diferente ao que era previsto. Isso acontece porque um drama gera outro drama, os personagens são desenvolvidos ao longo do tempo e principalmente eu, que sou o autor, acabo sendo desenvolvido pela minha própria obra.
“Acredito que seja muito difícil que o mundo vá em uma boa direção”
O que você pensa ao ver o seu trabalho sendo publicado e exposto em um país como o Brasil? Você fica curioso em relação à forma como seu trabalho é lido e interpretado em uma realidade tão distinta da sua?
Quando trabalho com uma obra, sempre me pergunto se ela possui universalidade. E a universalidade pode ter vários caráteres, como temporal e regional. Por isso, o fato das minhas obras serem lidas em vários países é como uma prova de que o que eu exijo de mim estava certo, e fico muito feliz com isso.
Pluto e 20th Century Boys são obras distópicas, ambientadas em uma realidade futuristas nas quais a humanidade passou por grandes guerras e traumas. O mundo vive hoje momentos políticos muito conturbados. A atual realidade político-social do mundo te assusta? Você acha que existe a possibilidade de estarmos caminhando para cenários semelhantes às suas histórias distópicas?
Infelizmente, acredito que seja muito difícil que o mundo vá em uma boa direção. Acho que o mangá pode ter tanto a função de alertar a sociedade quanto um oferecer um lazer para as pessoas que vivem o duro cotidiano. Além disso é uma cultura de fácil entendimento como a música rock, por isso, penso também que seria muito bom se o mangá se tornar uma ponte que liga as pessoas do mundo inteiro.
“O Osamu Tezuka deixou muitas obras fantásticas, mas para mim, a mais importante é Hi no Tori”
Você tem um interesse grande por música. O que você está ouvindo hoje? Você tem algum conhecimento de música brasileira?
Eu sempre ouço músicas de vários tipos.
Eu sou amante de disco de vinil e fico muito feliz que ultimamente a cultura de vinil tenha voltado. Outro dia, quando estive na loja de discos usados, comprei o Asa Branca, do Quinteto Violado. Lendo a apresentação do disco, descobri o que a palavra ASA significa em português, e a minha mais recente obra ASA DORA é sobre uma menina chamada ASA que é piloto de avião. Fiquei muito emocionado por ter encontrado esse disco, é como um destino.
Você tem alguma obra – seja livro, filme ou mangá – recente que tenha consumido e poderia recomendar?
Tenho muitos livros e filmes que gostaria de recomendar, por isso, é difícil citar só um. Se for filme, eu recomendo o Fargo dos irmãos Coen. A série Fargo que foi inspirada pelo filme é maravilhosa demais e também recomendo para todo mundo.
Apesar do trabalho de Osamu Tezuka ser bastante conhecido no Brasil, algumas publicações mais longas e adultas dele estão saindo em português pela primeira vez, como Ayako. O que você vê de mais especial no trabalho do Osamu Tezuka? Qual obra dele você considera mais importante e indispensável?
Aos 13 anos de idade, descobri a obra Hi no Tori, de Osamu Tezuka e fiquei chocado com a grandiosidade, a estruturação livre e a profundidade do drama humano. O Osamu Tezuka deixou muitas obras fantásticas, mas para mim, a mais importante é Hi no Tori.