Escrevi na segunda edição da Sarjeta, minha coluna sobre quadrinhos no site do Instituto Itaú Cultural, sobre os trabalhos dos quadrinistas e editores Lobo Ramirez e Panhoca à frente dos selos Escória Comix e Pé-de-Cabra. Comentei algumas obras publicadas por eles e chamei atenção para a importância dos disparates lançados pelos dois em tempos de conservadorismo crescente como aqueles que estamos vivendo.
Compartilho aqui no blog as entrevistas que fiz com os dois autores antes de escrever a coluna, tratando da história de seus selos, de algumas das percepções deles em relação à cena de HQs na qual eles estão inseridos e sobre planos futuros de suas editoras.
No papo com Panhoca, ele ainda lembra de seu primeiro contato com alguns dos autores de obras que hoje compõem o catálogo da Pé-de-Cabra – como Cristiano Onofre (Realidade), Pedro D’Apremont (Notas do Underground) e Galvão Bertazzi (Vida Besta). Você lê a Sarjeta #2 clicando aqui, lê a entrevista com Lobo Ramirez clicando aqui e lê a seguir a minha conversa com Panhoca. Ó:
“Investi meu 13º pra fazer acontecer esse lance de ser um selo de HQ independente”
Como surge a Pé-de-Cabra? Quando surge a Pé-de-Cabra?
Essa é um pergunta difícil. Acho que surgiu como ideia na minha cabeça num aniversário de 9 anos, quando ganhei Elektra – Assassina e Skreemer de um tio que tava sendo obrigado a por os gibis pra fora de casa porque casou e faltava espaço. Ou talvez em 2012, quando conheço o Diego Gerlach na primeira Gibicon e ele expande o meu conhecimento de HQ brasileira pra fronteira de outra paixão minha, o punk. Como empreitada mão na massa mesmo, ela surge em 2017, quando o Alex Vieira foi pra Portugal e percebi um vácuo deixado pela Prego, pela Samba, pela Gibi Gibi e tanta outras antologias que sempre foram meu formato favorito de HQ. A partir daí foi investir meu 13º pra fazer acontecer esse lance de ser um selo de HQ independente.
Por que o nome Pé-de-Cabra?
A lista de nomes que eu escrevi antes de finalmente fechar em Pé-de-Cabra é enorme. Desde “Pau no Cu do Mundo” até “Pé-de-Cabra” foram uns 30 ou 40 nomes. O nome acabou ficando pela utilidade do objeto. É o mal pelo mal, o vandalismo, o desrespeito à propriedade privada, a solução suja e sem volta pra abrir algo. A ideia de mundo contemporâneo na cabeça da classe média medíocre é a dualidade de ideias. Bem x Mal. Branco x Preto. O pé-de-cabra se posiciona instantaneamente do lado mal, que é o lado em que quero estar posicionado. Convido todo mundo a digitar Cidadão de Bem no Google e entender que a escolha é bem fácil.
“É o mal pelo mal, o vandalismo, o desrespeito à propriedade privada, a solução suja e sem volta”
Qual é o público dos quadrinhos da Pé-de-Cabra?
Eu ainda tô tentando entender isso. Eu sempre achei que o público era de adolescentes e jovens que pareciam comigo há uns anos, mas cada vez mais vejo que não consigo fazer uma distinção etária do meu público. Acho que é uma grande parte das pessoas que estão incomodadas com o cenário nacional e buscam na HQ uma diversão que sabem que não estão financiando alguém com ideia errada. E também acho que é um público que busca mais o entretenimento do que a “arte” (seja lá o que isso signifique). O cenário de HQ brasileira parece apostar muito nesse lado de sensibilidade e poesia sentimental. A nossa linha editorial aponta pra um lado mais inflamável do entretenimento. Acho que isso reflete bastante no tipo de público que temos. A gente vende muito para pessoas banguelas também.
A Pé-de-Cabra é um negócio rentável? Você administra a editora dentro de algum plano de negócios?
Depende. Desde que botei a grana pra Pé-de-Cabra #1, eu nunca mais precisei injetar grana ali dentro. Mas isso porque eu não pego nada pra mim e pago todas as minhas viagens do bolso. Então se é um selo que tem zero gastos e todo lucro fica nos cofres para publicar a próxima edição, então é rentável. Se eu tentasse viver disso eu tava muito fodido. Acho que nem os peixes grandes devem conseguir fazer isso. Angeli, Zimbres, Adão. Repara que todo mundo é artista plástico agora.
Você vive exclusivamente da Pé-de-Cabra? Você tem alguma carreira em paralelo à administração da editora?
Nada. Eu sou funcionário público (bibliotecário) fervoroso e torço pela estatização de absolutamente tudo. Não vejo a hora de comer a comida da sua geladeira, Ramon.
Qual o maior sucesso de vendas da Pé-de-Cabra?
Sem contar camisetas? Se eu investisse só em roupas eu quebrava a C&A em dois meses. Mas, ainda é muito cedo pra falar. A Pé-de-Cabra #1 vendeu super bem. O Notas do Underground tá a menos tempo em circulação, mas não me surpreende em nada se esgotar no próximo semestre também. Todas as publicações acho que já se pagaram, com exceção do Pinacoderal, que saiu não tem nem um mês mas tá vendendo acima da média. Acho que é porque os autores são muito bonitos fisicamente.
“Sou funcionário público (bibliotecário) fervoroso e torço pela estatização de absolutamente tudo”
Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Diego Gerlach? O que você vê de mais especial no trabalho dele?
Meu primeiro contato foi com Ano do Bumerangue, pra mim um marco na HQ nacional. Até então eu não havia visto uma apropriação de personagens norte-americanos para se contar uma história interessante. A maior parte dos trabalhos que via acontecendo isso eram paródias de humor (normalmente fracas) ou histórias mais do mesmo, num nível meio amador. Até hoje eu não entendo direito, mas é dessas HQs que releio com certa frequência, talvez pelo teor antimperialista-voodoo da coisa toda. Dessa primeira parte do trabalho do Gerlach eu gosto muito da quantidade de informação por quadros. Tudo pulsa ação o tempo todo. Cada objeto em cena tem uma energia inerte pronta a explodir. E basta dar uma olhada em qualquer história do Pinacoderal pra perceber que ele sabe como fazer uma cena de ação como poucos. Mas vai além. É fácil pegar uma história do Gerlach dessa época e cair nessas de achar que é só porradaria e é isso, vlw. Tem algo de anárquico na narrativa dele, diálogos bem construídos e frases de efeito que funcionam bem. É perceptível que o cara leu um monte de filosofia de gente puta antes de cheirar cola e escrever aquelas coisas ali. Ver essas histórias todas se perdendo pelo fechamento de revistas e tiragens esgotando foi um estopim pra que enchesse o saco dele até lançarmos o material todo coletado. Fiquei muito feliz com o resultado, mas ainda assim ressalto que passa longe de ser o melhor material dele. O trabalho atual dele em Know Haole ultrapassa o nível nacional, podia estar facilmente saindo na Fantagraphics. Chega de confete pra ele agora, senão me estendo por mais seis páginas.
Como foi o seu primeiro contato com o trabalho da Emilly Bonna? O que você vê de mais especial no trabalho dela?
Eu não tenho certeza, mas acho que foi pelo Instagram. Deve ter sido o Pablo Carranza quem me mostrou. A Emilly é um ponto fora da curva. Você conta nos dedos os artistas que você olha os primeiros trabalhos e já tem uma estética tão bem definida. Compare os trabalhos mais antigos de diversos artistas com o trabalho atual e vai ver o quanto o traço e a consistência das histórias muda. É cedo pra falar, mas acho que o dela não vai se alterar tanto: ela começou com uma estética e temática tão própria que você reconhece que é ela sem pensar duas vezes. É tudo tão desesperançoso e pustulento e nojento que dá sensação de o gibi ter sido impresso em esgoto. Deviam inventar uma tinta que literalmente fedesse pra imprimir os gibis dela. E ao mesmo tempo, toda aquela desgraça nojenta te prende porque as histórias são boas demais e o senso de humor dela é fantástico. Sou grande fã.
Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Pedro D’Apremont? O que você vê de mais especial no trabalho dele?
D’Apremont é um desses caras que conheci antes de conhecer trabalho dele. Foi bem fácil de simpatizar com ele porque nós temos um (péssimo) gosto musical muito parecido. Acho que nossos primeiros diálogos foram sobre camisetas de bandas que estávamos usando ou algo assim. O D’Apremont tem uma coisa muito especial no trabalho dele porque ele subverte o que a gente vai esperar de um gibi de metal. O traço é extremamente limpo, cores bonitas e leves, facilmente seria um desenho animado da Nickelodeon se ninguém lesse o texto e prestasse atenção nas histórias. E ele tem consciência do quão chato o metal, o punk, e todo rolê do rock consegue ser. Basicamente ele consegue fazer gibis de música bons porque ele reconhece o quão tosco é grande parte daquilo tudo. Metade dos caras que tão por aí fazendo HQ de humor se levam a sério demais. Metade dos caras do planeta se levam a sério demais. O Pedro faz isso da forma certa: ele leva o desenho a sério e tira sarro de todo o resto. Conversa com ele e vai ver que ele estudou MUITO tudo que é cartunista e estilos. A quantidade de referência que ele tem é absurda. Ainda torço pra Netflix animar algo dele.
Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Galvão Bertazzi? O que você vê de mais especial no trabalho dele?
O Galvão Bertazzi além de ser muito bonito também tem uma ótima lábia. Ele devia ter seguido a carreira de galã global nos anos 90, mas preferiu ir pelo lado difícil da vida. Meu primeiro contato foi um gibi que ele me vendeu num evento da Itiban que eu fui pra comprar um gibi do Eduardo Medeiros. O formato de tiras é algo que muito artista começa por ali, mas são poucos os que conseguem desenvolver uma piada em tão poucos quadros. Galvão tem uma potência enorme nisso. Rola muito esse papo sobre o que o humor tem ou não tem que ser. Ele sabe direcionar isso. Ele sabe que o humor ofende e ele sabe muito bem QUEM ele quer ofender. Ele quer ofender o teu tio, o tio dele, a classe média quase inteira, os religiosos fanáticos, os pseudorrevolucionários, bom… Ele quer ofender praticamente todo mundo que MERECE MUITO ser ofendido. E faz isso com classe e ritmo absurdos. São poucos os dias que não tem tiras (e reacionários inflamados nos comentários) nas redes deles. Galvão foi o primeiro cara que fui atrás para publicar algo solo dele. Fico feliz que isso saiu da conversa.
“Dou sorte de trabalhar com autores que já conheço há alguns anos, sei mais ou menos como se comportam, o que comem e outras coisas que vi no Discovery Channel”
Como foi o seu primeiro contato com o trabalho do Cristiano Onofre? O que você vê de mais especial no trabalho dele?
Eu conhecia o Cris de uns trabalhos dele pra revista Prego e de umas tiras que ele tinha na internet. Essas tiras e cartuns faziam uma vibe adolescente triste que nunca foi muito minha praia, mas sempre gostei muito dos desenhos dele. O Cris tem uma capacidade muito grande de ser sucinto em poucas palavras. A maior parte dos trabalhos dele que viralizam seguem uma estrutura básica: um desenho mais solto e uma frase curta grifada. Adiciona o elemento carioca de deboche com uma visão forte sobre a forma como consumimos o entretenimento e nos relacionamos e vai chegar ao trabalho dele. Eu vejo muito de uma versão carioca do David Shrigley no trampo dele. Ele é muito bom em provocar e tirar sarro de gente que nem percebe que tá sendo tirado sarro. É fácil demais imaginar famoso ficando putinho com o trabalho dele.
Como é a dinâmica do seu trabalho como editor com os autores da Pé-de-Cabra? O quanto você desenvolve e influencia na obra ao lado dos seus autores?
Eu tento dar o máximo de liberdade para desenvolverem os trabalhos. Se algo não tá funcionando aí eu converso e tento pensar junto com o autor sobre alternativas pra rolar melhor. E cortar asas porque no final a gente é um selo fodido financeiramente. Acabamos sendo muito limitados pelos preços de impressões. Até agora não tivemos muitos problemas, mas a maior parte das publicações são de histórias que já existiam, então pouca coisa foi realmente alterada. Dou sorte também de trabalhar com autores que já conheço há alguns anos, sei mais ou menos como se comportam, o que comem e outras coisas que vi no Discovery Channel.
Qual balanço você faz das publicações da Pé-de-Cabra em 2019?
Esse ano foi péssimo pro país. A gente toma uma atrás da outra, então eu me sinto até meio culpado da Pé-de-Cabra fechar o ano BEM. O ano foi ótimo pra gente! De duas publicações, fechamos o ano com seis, todas vendendo legal e com um retorno bom do público e da crítica, sem tirar o pé e fazendo o que a gente mais gosta: HQ de maloqueiro. Fecho o ano feliz com as apostas e olhando positivo para 2020.
Você tem alguma meta para os quadrinhos da Pé-de-Cabra para 2020? Você tem em mente algum número de publicações para o próximo ano?
Os últimos lançamentos já renderam o dinheiro necessário para imprimir a terceira edição da revista. Estou trabalhando nisso desde já. Além disso tem outras duas ou três HQs que talvez saiam em 2020. Tudo sempre depende de eu conseguir manter a peteca sem cair, vender bem, não ter filhos, não ser preso, morto, etc etc.
O que você vê de mais interessante acontecendo hoje nos quadrinhos brasileiros?
É clichê falar em diversidade, né? Mas é bom ver quanta coisa nova vem surgindo e está para surgir. Eu gosto muito dessa corrente que tá rolando abaixo do grande radar. Nós temos a Mino, a Veneta, a Zarabatana, o Pipoca e Nanquim publicando uns medalhões nacionais e alguns autores novos mais garantidos de retorno e abaixo deles tem a galera independente, que é onde meus olhos estão. A gente pode apostar mais. A gente não vive unicamente disso.
Eu gostei muito dos lançamentos da Escória Comix. Destaco a HQ de estréia da Arame Surtado, Ketacop; Esgoto Carcerário, da Emilly Bonna; e finalmente o Fábio Vermelho fazer coisa em português. Fiquei feliz de ver um novo gibi dos O Miolo Frito que são sempre um destaque; João B. Godoi e Kainã com trabalhos novos; lá no sul teve uma HQ nova da Tietbo que me deixou com vontade de ler algo mais longo dela. Isso só falando na galera que tá imprimindo. O Instagram, mesmo com o alcance reduzido, parece proliferar cada vez mais gente. Tem muita gente boa por lá. Pietro Soldi, Iara Darkka, Fronha, João Silva… enfim, a lista vai longe. É difícil escolher só alguns destaques.
“A gente não usa dinheiro público e tá cagando pro que qualquer pastor, cidadão de bem, dentista, e odiadores no geral pensam”
Vivemos tempos muito conservadores, qual você considera o papel de uma editora de quadrinhos underground como a Pé-de-Cabra dentro desse contexto?
Conforme eu falei ali em cima, a Pé-de-Cabra tá voando baixo, o radar não acha a gente. Isso nos dá uma liberdade maior para bater e abordar temas polêmicos. A gente não usa dinheiro público, a gente não tem necessidade de retorno financeiro e a gente tá cagando pro que qualquer pastor, cidadão de bem, dentista, e odiadores no geral pensam. O pirú dos políticos não funciona? Poxa. Eles ficam putinhos com desenhos? Eu fico ~bolado~. Tua vizinha fica pistola se alguém fala do diabo? Que pena, né? Essa galera toda não saca o que eles fizeram com quem mora desse lado do muro. A gente morreu. Sem entrar no Belchior, a gente continua morto. Mas a gente vai continuar sendo um cadáver sentado na poltrona da sala, fedendo e apodrecendo e não deixando ninguém confortável. PEGA FOGO, CABARÉ.
Qual a importância de feiras e eventos de quadrinhos e publicações independentes para a manutenção das atividades da Pé-de-Cabra?
As feiras e os eventos em geral são nossa principal forma de contato direto com o público. Claro que a gente consegue passar vergonha online, mas ao vivo a gente tem a oportunidade de mostrar que não estamos com a saúde bucal em dia e despertar sentimentos de pena no público. Grande parte das nossas vendas são feitas dessa forma. Além disso podemos levar em consideração que todas nossas publicações são pensadas de acordo com o conteúdo. Por exemplo: o Notas do Underground é um gibi com foco no público que frequenta shows, um gibi colorido, em formato revistona. Ele tem aquele formato e aquele papel específico pensado em como o conteúdo e as cores ficam nele. Isso acontece em todas as outras publicações. Esse tipo de coisa só vai ser perceptível com o público tendo contato com o nosso material. Tirando são Paulo e Curitiba, quase nenhuma cidade tem lojas especializadas em HQ independente. Fica difícil conseguir mostrar nosso trabalho sem esse contato olho no olho onde prevalece minha lábia barata de vendedor alcoólatra. Quando o público para pra olhar minhas coisas nos eventos eu consigo conversar um pouco com eles e indicar melhor o que eu acredito que eles vão gostar.