Está marcado para as 18h de sábado (7/12), em João Pessoa (PB) o lançamento de São Francisco, reportagem em quadrinhos assinada pela quadrinista e jornalista Gabriela Güllich e pelo fotojornalista João Velozo. A sessão de autógrafos será no bar Recanto da Cevada (Rua Bancário Waldemar de Mesquita Três Ruas, Bancários).
São Francisco é fruto de uma jornada de 15 dias e mais de 1000 Km percorridos por Güllich e Velozo, saindo de Belém do São Francisco, no Pernambuco, e indo até Monteiro, na Paraíba, passando por todas as cidades do Eixo Leste da transposição do Rio São Francisco.
O livro de 110 páginas em preto e branco mescla as ilustrações em nanquim da quadrinista com os registro feitos pelo fotógrafo para tratar de três temas principais: água, seca e as obras da transposição. O diálogo mais próximo do álbum é com a trilogia O Fotógrafo, dos franceses Didier Lefèvre e Emmanuel Guibert.
“Nosso objetivo nunca foi usar a foto como uma ferramenta de ‘comprovação’ visual e sim como uma ferramenta de narrativa”, diz Güllich em relação à estrutura pensada por ela e seu parceiro de projeto.
Além da estética singular, também chamo atenção para as fontes consultadas pelos autores e para a decisão dos dois em não se apresentarem como personagens da HQ – hábito muito comum e nem sempre necessário em projetos de jornalismo em quadrinhos.
Na conversa a seguir, Güllich e Velozo falam sobre o ponto de partida de São Francisco, apresentam alguns bastidores da reportagem e expõem algumas de suas reflexões decorrentes da produção do álbum. Papo massa, saca só:
“Desde o início o formato foi pensado em quadrinho + foto”
Qual foi o ponto de partida do livro? Vocês sempre estiveram certos em relação ao formato HQ + fotografia?
João: Joguei a ideia pra Gabi há uns dois anos, a gente já tinha trabalhado juntos pra Deutsche Welle e depois também publicamos na VICE Brasil (num modelo mais tradicional, foto minha e texto dela) e achei que tava na hora da gente tentar trabalhar com desenho e fotografia, então desde o início o formato foi pensado em quadrinho + foto. Na época ficou só na ideia porque ainda tinha muita coisa pra amadurecer. Aí no passado a Gabi publicou a HQ Quatro Cantos de Um Todo pelo Sesc Paraíba e já tava trabalhando na HQ-reportagem dela pro TCC sobre agricultoras assentadas na PB e eu estava trabalhando numa reportagem na mesma região do nosso itinerário, e resolvemos que seria um bom momento pra colocar a ideia em prática. Fui premiado com o Yunghi Grant 2018 por esse trabalho, o que garantiu meus custos da viagem, e a Gabi já vinha juntando dinheiro pra isso também. Traçamos um itinerário, fizemos nosso orçamento, decidimos a pauta e em janeiro desse ano fomos pra estrada.
Vocês levaram quanto tempo entre o início do projeto e o lançamento? Que tipo de planejamento vocês fizeram antes de dar início à apuração das histórias?
Gabriela: Considerando como ponto de partida o dia que a gente realmente sentou pra planejar custos, itinerário, pautas etc., que foi em meados de novembro do ano passado, até o lançamento (que aconteceu em novembro em Fortaleza e teremos mais um em João Pessoa e outro em Recife agora em dezembro), deu mais ou menos um ano de produção. Primeiro, nós traçamos um itinerário que seguiu as cidades do Eixo Leste da Transposição. Em seguida, nós escolhemos a pauta que abordaríamos em cada região pra facilitar a estimativa de tempo que passaríamos em cada cidade. E aí veio a questão do orçamento que envolveu basicamente passagens de ônibus, locomoção nas cidades, alimentação, estadia, custos com equipamento e custos com possíveis imprevistos.
Em relação a esse planejamento, o quanto ele mudou a partir do momento em que vocês saíram viajando para produzir o que viria a ser o livro?
João: Tivemos alguns gastos a mais com locomoção e o planejamento com o itinerário variava muito de acordo com as cidades, mas isso era algo que a gente já esperava. Às vezes pode acontecer de perder um dia inteiro de trabalho esperando uma única entrevista e às vezes parece que um dia inteiro rende mais do que uma semana.
“Monto uma estrutura de reportagem e adapto pra narrativa de uma história em quadrinhos”
Como foi a dinâmica de trabalho entre vocês? O quanto a Gabriela influenciou nos trabalhos do João e vice-versa?
João: No começo da viagem ainda rolou umas adaptações, a Gabi precisava de referência visual pros desenhos e eu precisava focar na fotografia, então fiquei com minha câmera e ela com uma menorzinha mais pra filmar as coisas que interessavam nessa parte de narrativa sequencial do quadrinho.
Como foi o trabalho de decupagem do material que vocês reuniram? Vocês precisaram deixar muita coisa de fora?
Gabriela: A gente já viajou pensando nas três pautas principais, que são os capítulos do livro: água, seca e obra. Então na hora de selecionar os relatos, buscamos aqueles que mais correspondiam a esses temas. Nós entrevistamos muitas pessoas, então tentamos não colocar relatos que fossem muito parecidos e prezamos por aquelas histórias que tinham um pouco mais detalhes. Conseguimos utilizar um pouco mais da metade das entrevistas.
Encerrado esse trabalho de apuração, vocês chegaram a construir um roteiro fechado? Se sim, como foi esse trabalho?
Gabriela: Todo dia assim que a gente chegava do trabalho eu já abria o notebook pra transcrever as entrevistas, isso facilitou muito a produção do roteiro depois porque eu já tinha a fala completa pronta, era só fazer a decupagem. Fiquei responsável pelo roteiro porque já tinha essa experiencia prévia com quadrinho então fui organizando como geralmente faço: monto uma estrutura de reportagem e adapto pra narrativa de HQ.
Gabriela, quais materiais você utilizou durante a produção desse livro?
Gabriela: Eu trabalho basicamente com tradicional, então levei um caderninho e uma caneta pra fazer rascunhos e anotações durante a viagem e quando realmente fui pra produção do livro trabalhei tudo com nanquim, fiz a arte-final toda na caneta e usei o Photoshop depois só pra ajustes de níveis e contraste mesmo.
Por que a opção pelo preto e branco? Em algum momento vocês cogitaram fazer o livro em cores?
João: O livro sempre foi pensado em preto e branco mesmo, é como eu fotografo na maioria dos meus trabalhos e é como a Gabi prefere trabalhar também.
É explícita a influência de O Fotógrafo no trabalho de vocês, principalmente pela mescla “fotografia + quadrinhos”. Esse trabalho foi a principal influência de vocês durante a produção de São Francisco? Houve alguma outra obra que influenciou o desenvolvimento do quadrinho de vocês?
João: Quando tive a ideia do projeto, emprestei O Fotógrafo pra Gabi dar uma olhada. Acho que foi o pontapé inicial mas não a principal influência, não acho que tenha tido algo muito específico, o livro é uma mistura de vários autores que gostamos junto com o nosso olhar.
“Prefiro deixar o foco da narrativa totalmente na pessoa que conta a história”
Um padrão habitual em obras de jornalismo em quadrinhos está nos jornalistas se colocando como personagens das obras. Por que a opção de vocês em não se retrataram na HQ?
Gabriela: Eu prefiro deixar o foco da narrativa totalmente na pessoa que conta a história, é como trabalhei nas minhas produções anteriores também. Particularmente não acho que me desenhar ouvindo a pessoa seja algo necessário na narrativa – e isso eu acho um ponto legal da fotografia: você sabe que tem alguém fotografando, mas o foco visual é em quem tá do outro lado da lente, e é assim que eu prefiro trabalhar minhas reportagens.
Eu gosto de uma reflexão proposta pelo Joe Sacco no livro Reportagens que ele questiona “como conciliar a subjetividade inerente aos desenhos com a verdade objetiva que se aspira em uma matéria jornalística?”. Eu repasso a pergunta para vocês: como? Vocês acreditam que o uso de fotografias auxilia nessa aspiração à “verdade objetiva”?
Gabriela: Acho que seria um pouco presunçoso da nossa parte dizer que chegamos à fórmula secreta de como deixar o desenho ou até mesmo a foto totalmente objetivos. O que a gente busca é ser fiel à história que nos foi contada, mas é impossível retirar toda a subjetividade de um relato até porque o próprio relato já vem carregado da subejtividade de quem conta. O que podemos fazer é buscar estar de olhos e ouvidos abertos durante uma entrevista, tentando não trazer nossas impressões pessoais antes de ouvir o que a pessoa tem a dizer. Nosso objetivo nunca foi usar a foto como uma ferramenta de “comprovação” visual e sim como uma ferramenta de narrativa. A foto não torna o desenho mais verdadeiro, ela constrói a narrativa junto com o desenho.
“Nosso objetivo nunca foi usar a foto como uma ferramenta de ‘comprovação’ visual e sim como uma ferramenta de narrativa”
Vejo muitos quadrinistas independentes lamentando a falta de um editor. Também sei como é difícil para jornalistas freelancers trabalhar sem o auxílio de um editor. Não consta no expediente da reportagem em quadrinhos de vocês nenhum crédito a editores. Vocês sentiram falta de alguém exercendo essa função? Como foi o trabalho de edição desse quadrinho?
Gabriela: Não tive editores nos meus últimos trabalhos em quadrinhos então fui pegando a experiência que adquiri pra montar essa estrutura do livro, mas já trabalhei com editores em matérias só com texto mesmo e sim, faz falta ter esse olhar. O que ajudou nessa parte foi contar com a Ana Gabriella, do projeto gráfico, e a Isabor, nossa revisora. Os apontamentos que elas faziam me ajudaram a construir melhor a edição do quadrinho.
João: Quando começamos a parte da elaboração do livro, falei com a Gabi que gostaria de alguém experiente pra fazer o trabalho de edição de fotografia, por isso convidamos a Cris Veit pra cuidar desse aspecto.
Eu queria saber um pouco sobre a experiência de vocês com o financiamento coletivo. O livro de vocês entrou no Catarse em uma temporada muito concorrida da campanhas de financiamento por conta da Comic Con Experience. Que balanço vocês fazem dessa experiência?
Gabriela: Olha, foi uma correria e tanto. A gente não vai lançar o livro na CCXP, mas eu tô em processo de mudança então não daria pra adiar o lançamento pro ano que vem, acabou que tivemos que pegar essa onda de catarses que é esse período de setembro a dezembro. No começo ficamos com um pouco de receio por não ser algo muito conhecido, o jornalismo em quadrinhos ainda tá ganhando espaço – tanto no mundo do jornalismo quanto no mundo dos quadrinhos -, ainda mais que resolvemos misturar desenho e foto… A campanha deu super certo, conseguimos arrecadar mais do que a meta prevista e foi bem legal perceber o interesse das pessoas no jornalismo independente.
“O que fica é a história e nossa profissão é ser testemunha dessa história, aconteça o que acontecer”
Uma pergunta que tenho feito bastante aqui no blog: desde o dia 1º de janeiro de 2019 o Brasil é governado por um presidente de extrema-direita, militarista, pró-tortura, fascista, misógino, machista, xenófobo, homofóbico e racista que reflete muito do que a nossa sociedade é hoje. Vocês são otimistas em relação ao nosso futuro?
João: Não acredito que caiba ao jornalista ser otimista ou pessimista, enquanto jornalistas decidimos abdicar das nossas vivências e vozes para sermos veículos para a voz daqueles que mais precisam. No caso atual do Brasil, creio que devamos focar no nosso trabalho, mesmo com a máquina estatal comprovadamente sendo usada para espalhar mentiras, não há mentira no mundo que supere o julgamento da história. E se nós fizermos nosso trabalho bem feito, acordando todos os dias pela manhã com o ímpeto de contar historias, de contar a verdade, de ser essa caixa de ressonância para as vozes de quem está sofrendo, nós seremos peças fundamentais para que no tribunal da história os fatos sejam considerados e a verdade prevaleça. Esse governo vai passar, e nós passaremos por ele, pode durar quatro anos, pode durar vinte, o que fica é a história e nossa profissão é ser testemunha dessa história, aconteça o que acontecer.
No que vocês estão trabalhando agora? Vocês já têm algum próximo projeto em vista?
João: Por enquanto estamos mais focados em entregar as recompensas dos nossos apoiadores e fazer o livro circular, ainda vamos fazer a venda do livro digital em inglês também então temos vários detalhes a serem cuidados desse projeto ainda.
Gabriela: O João tem engatado projetos de fotorreportagem e eu tenho meus projetos de jornalismo em quadrinhos. Tenho flertado com a possibilidade de trabalhar um pouco com terror, venho conversado com uma roteirista e estamos vendo no que vai dar. Por enquanto, a única coisa certa mesmo é focar em colocar o São Francisco pra rodar.
Para encerrar: o que vocês veem de mais interessante sendo feito hoje no formato de histórias em quadrinhos?
Gabriela: Acho muito interessante o trabalho que a Carol Ito e o Pablito Aguiar vêm desenvolvendo com perfis e matérias curtas nesse campo do jornalismo em quadrinhos. Também tenho gostado bastante de acompanhar o trabalho de quadrinistas que conheci recentemente, como a Brendda Maria e a Débora Santos, do Ceará e a Luiza (ilustralu), do RN.