O quadrinista Fábio Zimbres é o autor da HQ impressa na 21ª edição dos Ugritos, a coleção de quadrinhos de bolso da editora Ugra Press. Com o título Eu Fiz Uma História em Quadrinhos, a obra de 20 páginas (quatro a mais do que as edições regulares) trata de “um indivíduo internado em um hospício por causa de seus delírios persecutórios”.
O lançamento do Ugrito estrelado por Zimbres é marcante não apenas por ser o primeiro título do quinto ano da coleção, mas também pelo fato do autor e seus saudosos MiniTontos terem servido de inspiração para a série da Ugra Press. Editor do selo, Douglas Utescher expôs essa referência em entrevista ao blog em junho de 2015, quando revelou o projeto.
“Os MiniTontos eram uns gibizinhos no formato A6, em que cada edição era de um autor e publicou Lourenço Mutarelli, Schiavon, Allan Sieber… Era muito legal, um modelo que eu curtia muito”, disse Utescher na época. Em nova entrevista ao blog, o editor conta que Zimbres foi o primeiro artista convidado a participar dos Ugritos, mas só agora é chegada a vez da edição do autor do clássico Músico Para Antropomorfos.
“Como há muito tempo ele não lançava uma nova edição dos MiniTontos, entrei em contato com ele para explicar nossa ideia e pedir sua benção”, lembra Utescher dessa primeira interação em 2015. “Devidamente abençoado, aproveitei para perguntar se ele toparia fazer um Ugrito. Vinte edições e mais de cinco anos depois, rolou”.
No papo a seguir, o editor fala sobre as origens da HQ de Zimbres, expõe sua admiração pelo autor e faz um balanço desses cinco primeiros anos de Ugritos. Ainda deu tempo de uma passada rápida por temas como pandemia, Amazon e o novo trabalho de Xavier Ramos publicado pela Ugra Press (Urinoir). Saca só:
“É o autor de Vida Boa, a melhor tira da história dos quadrinhos nacionais”
Queria começar sabendo como estão as coisas por aí. A loja física ficou um bom tempo fechada por conta da pandemia. Imagino que esse combo trágico COVID + crise econômica + parças da Amazon surtados deve estar criando todo um contexto bem difícil para vocês.
Salve, Ramon! Obrigado pela pergunta. Sim, 2020 tem sido um ano especialmente ‘desafiador’ para livrarias independentes. Para nossa sorte, desde o início da pandemia nós nos preparamos para o pior e em momento algum menosprezamos a gravidade da situação. A parceria de algumas editoras que espontaneamente renegociaram acertos, além de iniciativas como o Projeto de Retomada das Livrarias, da Câmara Brasileira do Livro, também foram muito providenciais. Ainda assim, são meses a fio buscando o difícil equilíbrio entre fazer uma gestão de caixa extremamente severa e tentar manter as coisas tão aquecidas quanto possível. Tudo isso enquanto Mr. Jeff Bezos praticamente dobrou sua fortuna solapando os caminhos para um mercado editorial saudável e pondo em risco a vida de seus mal remunerados trabalhadores. Mas isso é assunto para outra conversa…
Em junho de 2015 batemos um papo longo em que você anunciou a inauguração da loja física da Ugra e o início da coleção Ugritos. Na época você contou como essa coleção era inspirada nos MiniTontos do Fábio Zimbres. Então imagino que publicar um Ugrito do Zimbres tenho um significado especial…
E como! Conheci os quadrinhos do Zimbres no encarte MAU, da saudosa revista Animal, onde ele também escrevia a coluna Maudito Fanzine. Instantaneamente me tornei fã tanto do autor quanto do colunista. Pouco depois, ele começou a publicar os MiniTontos e me tornei fã também do editor. Adorava o formato e a curadoria da coleção.
Em 2015, quando era evidente que havia uma efervescência rolando no quadrinho independente nacional, eu e a Dani [Utescher, sócia da Ugra Press] sentíamos falta de algo que servisse como um panorama daquela produção. Algo colecionável, acessível e que também fosse uma porta de entrada para novos leitores. Não foi difícil juntar as peças e lembrar dos MiniTontos. Como há muito tempo o Zimbres não lançava uma nova edição, entrei em contato com ele para explicar nossa ideia e pedir sua benção. Devidamente abençoado, aproveitei para perguntar se ele toparia fazer um Ugrito. Vinte edições e mais de cinco anos depois, rolou.
De qualquer forma, os Ugritos definitivamente ganharam a cara da Ugra. Muito do que publicamos durante estes anos pareceria deslocado entre os MiniTontos, na minha opinião.
O que você pode contar sobre essa edição do Zimbres? Do que se trata?
Como as histórias são curtinhas, é sempre um desafio fazer sinopse de Ugrito. Mas, sem dar muitos spoilers, dá para dizer que a HQ fala sobre um sujeito que vai parar no hospício por causa de seus delírios persecutórios. E no meio disso rola um lance “quadrinho-dentro-do-quadrinho” que eu acho incrível. Tudo recheado com aquele humor desgostoso característico do Zimbres.
E o que você pode contar sobre os bastidores dessa edição? Como foi o convite para o Fábio Zimbres? Ele topou de cara? Você pode falar um pouco sobre a produção dessa edição?
Sem dúvidas esse foi o Ugrito com mais idas e vindas que já lançamos. Como eu adiantei agora há pouco, o Zimbres foi a primeira pessoa que convidamos para a coleção. Eu não lembro detalhes da conversa, lembro apenas que ele agradeceu o convite mas explicou que não daria para ser o primeiro porque estava comprometido com outros projetos. A partir daí, toda vez que nos encontrávamos em algum evento eu entregava para ele as novas edições dos Ugritos e finalizávamos o papo concordando que a qualquer hora lançaríamos o dele.
Anos e edições se passaram até que, no final de 2018, o Zimbres me conta que publicaria uma história de 20 páginas na kuš!. Para quem não conhece, kuš! é uma antologia da Letônia conhecida por publicar quadrinhos autorais com uma pegada bastante experimental. Apesar de ser um calhamaço, é uma revista de bolso no mesmo formato dos Ugritos. Há, inclusive, uma coleção paralela às edições regulares chamada mini kuš!, que se parece bastante com os Ugritos e os MiniTontos.
Mas enfim, havia finalmente uma HQ do Zimbres dando sopa. Colorida e com quatro páginas a mais do que o padrão da coleção, mas inédita no Brasil e no mesmo formato dos Ugritos. Sem erro, é só traduzir e adaptar para escala de cinza. Valia a pena abrir uma exceção e incluir as páginas extras. É uma HQ do Zimbres, porra! Segue mais uma sucessão de percalços e desencontros, uma pandemia no meio do caminho e, finalmente, em outubro de 2020, o gibi nasceu.
Já ouvi de alguém como o Fábio Zimbres é um desses “artistas de artistas”, o quadrinista mais admirado pelos quadrinistas mais admirados. O que o trabalho dele representa para você? Qual você considera a relevância e o impacto das obras dele para as HQs nacionais?
Eu gosto muito de quadrinhos experimentais, mas é comum neste meio que os autores tenham uma espécie de estupefação diante do próprio trabalho. É como se fizessem um esforço danado para esfregar na cara do leitor quão autorais, herméticas ou “fora da caixinha” são suas obras. O lado experimental no trabalho do Zimbres, pelo contrário, surge de forma muito natural e fluida, sem abrir mão do senso de humor. Vale lembrar que o cara é o autor de Vida Boa, a melhor tira da história dos quadrinhos nacionais, na minha opinião.
Boto fé que muita gente se sentiu impelida a assumir ou buscar seu próprio jeito de desenhar e escrever depois de ler o Zimbres. Nada contra o domínio técnico, mas uma escola pode ensinar qualquer pessoa a desenhar um corpo humano anatomicamente perfeito. Inventar o seu jeito de fazer a parada e desenvolver uma linguagem visual própria e consistente são outros quinhentos.
“Seguimos apostando no público que não compreende livros e quadrinhos como uma simples experiência de consumo”
Vocês recentemente publicaram Urinoir, HQ bem legal do Xavier Ramos. Como esse trabalho do Xavier chegou em vocês? Vocês têm planos de outras publicações do tipo?
Acompanhamos e gostamos do trabalho do Xavier e da irmã dele, Frida, desde que eles começaram a produzir os primeiros zines. Particularmente, curto muito quadrinhos com temas do cotidiano e eles sempre trabalharam isso muito bem. Jovens como eram – ele com 15 anos, ela com 12 – é óbvio que havia muito a ser lapidado, mas o potencial era inegável.
Alguns anos se passam e o Xavier agora faz faculdade em Amsterdam e tem um belo bigode. Quando ele anunciou no Instagram que havia finalizado sua primeira HQ solo, entramos em contato para pensar um jeito de disponibilizá-la na Ugra. A ideia inicial era ele enviar alguns exemplares para o Brasil, tão simples quanto isso. Mas o preço do frete ficaria uma pequena fortuna e, devido à pandemia, poderia demorar muito para chegar – se chegasse. Foi quando pensamos que seria mais prático ele mandar os arquivos para imprimirmos por aqui. Só que, quando recebemos o PDF, nós nos apaixonamos pelo quadrinho e propusemos ao Xavier que fosse um lançamento da Ugra.
No final, acabou servindo de pontapé inicial para algo que vínhamos matutando há muito tempo: explorar as possibilidades da impressão sob demanda para projetos que nos encantam, mas que dificilmente conseguiríamos vender 500 ou 1000 exemplares, que é o padrão para impressão offset. É cedo para adiantar, mas temos vários planos para outras publicações neste esquema.
Para encerrar, a loja física da Ugra e a coleção Ugritos completaram cinco anos. A nossa atual realidade sócio-econômica-política-pandêmica não ajuda em nada, mas que balanço você faz desses dois projetos até aqui?
Não só isso: este ano a Ugra, como projeto, completou 10 anos de atividade. Foi uma longa caminhada desde o nosso início como um blog de cultura independente até uma pequena editora, loja virtual e, finalmente, comic shop. O balanço é que, enquanto ainda tivermos tesão nisso tudo, continuará valendo a pena. Nós fizemos muitas coisas que nos enchem de orgulho, e também erramos muito. Seguimos aprendendo e procurando melhorar todos os dias.
Os Ugritos conquistaram uma visibilidade que me alegra bastante. Publicamos alguns dos nossos autores preferidos e também fomos os primeiros a apostar em alguns artistas que hoje gozam de certa popularidade. Acho que fomos razoavelmente bem sucedidos em nossa ideia inicial de ajudar a desenhar um panorama do que rola na HQ autoral brasileira, mas ainda tem bastante lenha para queimar neste projeto.
A loja física é meu xodó. Soa meio piegas, mas eu amo aquele lugar. Neste momento, porém, é a parte da Ugra que mais demanda cuidados. Optamos por reabri-la duas vezes por semana após cinco meses com as portas fechadas. Para além disso, a loja é conhecida por sua programação intensa de eventos e cursos. Por hora, é impossível prever quando poderemos retomar essas atividades e o risco de uma segunda onda de Covid-19 já surge no horizonte. Seguimos apostando no público que não compreende livros e quadrinhos como uma simples experiência de consumo, e para o qual a livraria será sempre a primeira opção.