A escritora Isabor Quintiere diz ter ido atrás de seus medos de infância quando foi convidada pela quadrinista Gabriela Güllich para desenvolver uma HQ de terror. Ela então resgatou seus incômodos com os apagões recorrentes vivenciados por ela em João Pessoa no fim dos anos 90 e histórias de assombração do interior da Paraíba para conceber a trama de Jogo de Sombras, primeira parceria entre as duas autoras e primeiro quadrinho de terror de ambas.
“A dinâmica de um blecaute funcionaria muito bem com o estilo de desenho da Gabi, de alto contraste”, conta a autora da coletânea de contos A Cor Humana sobre suas reflexões antes de apresentar para a amiga a história que se tornaria um quadrinho de 44 páginas.
E sim, realmente funciona a dinâmica entre a arte em preto e branco de Güllich e a trama de Isabor, ambientada em uma noite de falta de energia nos anos 90 em uma casa no brejo paraibano.
Jogo de Sombras tem início com a chegada da jovem Cícera em sua casa sem luz. Ela então sugere ao irmão e à avó uma brincadeira ingênua com as sombras das mãos usando a luz de velas que acaba por atrair a presença de um quarto elemento na casa.
Conversei com as duas autoras de Jogos de Sombras sobre as origens do quadrinho, o desenvolvimento da obra e a relação de ambas com o gênero de terror. Coautora da reportagem em quadrinhos São Francisco, em parceria com o fotojornalista João Velozo, e da série de entrevistas em quadrinhos Entre Quadros, Gabriela Güllich também falou sobre sua primeira incursão no terror e Isabor Quintiere contou sobre essa sua estreia nas HQs. Papo bem legal, saca só:
“Uma história de terror é excelente quando faz você ficar inquieto com coisas que nem te incomodavam até então”
Vou começar com uma pergunta que faço para todo mundo com quem conversei nos últimos meses: como estão as coisas aí? Como vocês estão lidando com a pandemia? Ela afetou de alguma forma as produções de vocês e suas rotinas de trabalho?
Isabor: Por aqui, na minha casa em João Pessoa, sigo em isolamento desde março do ano passado, trabalhando remotamente. Não tem sido fácil, mas o contato constante com as mídias como videogames e livros ajudou muito a diminuir o impacto negativo disso em mim. Demorou uns meses pra que eu me adaptasse o suficiente ao isolamento e voltasse a produzir, mas enfim retomei o ritmo e estou escrevendo novamente.
Jogo de Sombras é pré-pandemia, mas foi afetado por ela também. Tínhamos planos de lançá-lo em 2020, mas com o caos do coronavírus decidimos ‘esperar até a pandemia acabar’… O que não aconteceu! Hahahah Então conversamos e optamos por lançar mesmo assim.
Gabriela: Cheguei inclusive a conversar contigo no início do ano sobre o cancelamento dos eventos, né, Ramon? A gente queria lançar a HQ no FIQ, mas houve essa mudança de planos. Aqui sigo nos trabalhos remotos também e faço todas as minhas entrevistas para a coluna na Mina de HQ via Zoom. Felizmente, tivemos uma procura muito grande por Jogo de Sombras agora na pré-venda (bem maior do que eu imaginava, confesso! Hahaha) então vai dar pra cobrir todos os gastos.
E qual a memória mais antiga de vocês com obras de terror? Vocês têm uma obra de terror que consideram de alguma forma mais marcante na vida de vocês? Se sim, qual e por quê?
Gabriela: Eu tenho uma memória boa e uma ruim! Minha irmã assinava a revista Mundo Estranho, e teve um especial sobre o filme O Exorcista. Eu era muito criança, peguei pra ler de enxerida e fiquei completamente apavorada com as ilustrações (pensando bem, agora tá na hora de pesquisar quem foi que ilustrou aquela edição porque a arte tava incrível! Hahaha). Fiquei com tanto medo dos desenhos que passei bem uma semana sem dormir direito, acredita que até hoje não vi esse filme?
A memória boa foi a primeira vez que peguei um Dylan Dog pra ler, era com o Johnny Freak. Já gostava muito de preto e branco com contraste forte, também já gostava de ler terror, mas ainda não tinha lido HQs no estilo. Me apaixonei logo de cara, e segue sendo uma das minhas leituras favoritas.
Isabor: A minha memória mais antiga é do filme No Cair da Noite, que eu assisti quando criança. Uma cena dele me marcou muito, que é quando um personagem está dentro do banheiro iluminado e vemos a criatura se movendo no escuro, do lado de fora. É quase impossível distinguir suas formas na escuridão, mas dá pra notar o suficiente pra sabermos que ela está lá. Gostei muito dessa sua pergunta porque ela me fez perceber que eu trouxe para a história de Jogo de Sombras esse mesmo medo do quase-invisível, do pouco-discernível que habita as sombras, sem nem mesmo perceber essa referência tão remota. Foi o subconsciente trabalhando.
Mas a minha obra favorita e que mais me marcou não foi essa, e sim o mangá Uzumaki, de Junji Ito. O que eu mais gosto no terror não é de tomar sustos, mas da sensação de desconforto que fica depois de uma leitura, de que algo está fundamentalmente errado com o universo. Uma história de terror é excelente quando faz você ficar inquieto com coisas que nem te incomodavam até então. Foi o caso desse mangá, que me deixou nervosa com espirais por alguns dias após a leitura.
“Quero sentir apreensão, desconfiança, nervosismo, dúvida”
Qual elemento vocês consideram mais essencial para uma boa obra de terror?
Isabor: É fundamental para mim que eu não me sinta ‘bem’ lendo uma obra de terror. Eu quero sentir apreensão, desconfiança, nervosismo, dúvida. Quando termino uma leitura que me causa isso, eu penso: ‘uau, passei mal, 10 estrelas!’ E ajuda muito o fato de eu ser meio covarde. As coisas ficam mais imersivas assim.
Gabriela: Acho que a tensão é um fator muito importante mesmo. Eu não gosto de filmes de terror, não me chamam muita atenção, mas amo ler terror. E o que mais adoro na leitura é segurar as páginas com apreensão, querer e não querer ao mesmo tempo saber o que vai acontecer em seguida.
Vocês podem contar um pouco, por favor, sobre as origens de Jogo de Sombras? Como esse projeto teve início?
Gabriela: Tudo começou porque eu não aguentava mais embalar livro e comecei a mandar mensagem pras amizades falando ‘ei, bora lá em casa! Comer um bolinho, empacotar umas recompensas, tomar um café…’ Hahahaha Foi bem no fim do Catarse de São Francisco, aí Isabor foi lá em casa me ajudar a organizar os livros. Conversa vai, conversa vem, joguei o verde: ‘bora fazer um quadrinho de terror?’ E fizemos!
Isabor: Gabi tinha vontade de fazer uma HQ de ficção, porque até então só tinha feito jornalismo em quadrinhos, então conversamos e decidimos criar algo juntas. Ela sugeriu que fosse no gênero de terror, e eu fui atrás de procurar, na infância, algo que me causava medo e que eu pudesse explorar em uma HQ. Pensei logo nos apagões dos anos 90 (que eram muito recorrentes aqui) e nas histórias de mal-assombro interioranas. Decidi jogar essa ideia para a Gabi porque a dinâmica de um blecaute funcionaria muito bem com o estilo de desenho dela, que é de alto contraste, com pretos e brancos.
“Queria incitar essa agonia de não enxergar tudo em quem tá lendo”
Como foi a dinâmica de vocês durante o desenvolvimento do quadrinho? Vocês chegaram a fechar um roteiro antes da Gabriela começar a ilustrar? Como era a troca entre vocês à medida que as páginas eram finalizadas?
Gabriela: Sim, Isabor fez o texto todo em formato de conto, e eu fui adaptando. Tanto é que optamos por deixar algumas partes só de texto no quadrinho, achei que ficava legal intercalar narração e imagem. Até porque, é uma história que se passa numa noite de breu, né? E a gente queria muito incitar essa agonia de não enxergar tudo em quem tá lendo. Aí eu ia fazendo os rascunhos e mandando pra Isabor, a Ana Gabriella que fez o projeto gráfico também recebia e ajudava a dar uns pitacos.
Acho que essa é a primeira HQ de horror de vocês, certo? Qual balanço vocês fazem do uso da linguagem dos quadrinhos para contar uma história de horror? Quais aspectos da linguagem vocês acham que mais contribuem para contar uma história de horror? E há algum aspecto da linguagem que vocês concluíram ser um empecilho para histórias desse gênero?
Isabor: Pra mim, foi um desafio muito divertido transpor o que causa medo na prosa para o que causa medo na arte visual. Na prosa, a gente calcula cada palavra, cria tensão através da construção das frases, através do que a gente descreve ou deixa de descrever. Isso não acontece com a HQ. Nela, a questão foi saber o que mostrar e o quanto mostrar. Decidimos pesar muito no preto para criar essa atmosfera opressiva de escuridão, de só enxergar vultos e poucas luzes. Foi muito bom explorar isso.
Gabriela: Eu acho que o fator principal pra essa história ter dado certo visualmente foi o jogo com as figuras. Logo no início, tem a cena do jogo de sombras da família, que é essencial pros eventos que ocorrem no decorrer da história. Foi a parte que mais gostei de desenhar, Isabor deu a sugestão das figuras que ela queria formar e eu fui assistindo vários vídeos de brincadeiras com velas e lanternas pra estudar as projeções, foi muito interessante poder brincar com isso. O que poderia ter sido um empecilho são as cenas de breu total (meio que difícil de desenhar o que não aparece, né?), mas intercalando com a narração acredito que a gente conseguiu manter a atmosfera de suspense.
Gabriela, com quais técnicas e materiais você trabalhou nesse projeto? São as mesmas usadas por você no São Francisco?
Gabriela: Foi basicamente o mesmo material de São Francisco: tudo em nanquim. Uma coisa que explorei foi fazer um jogo de cores aplicando uns cinzas no Photoshop, porque achei que seria legal deixar o preto e branco de alto contraste para algumas cenas específicas de mais impacto.
Vocês podem recomendar algo que estejam lendo/assistindo/ouvindo no momento?
Isabor: No momento, estou lendo o novo livro de contos de terror de Bruno Ribeiro, conterrâneo que recebeu o Prêmio Machado Darkside ano passado. Recomendo muito todos os trabalhos dele pra quem curte bastante gore e violência na literatura.
Gabriela: Eu estou lendo O Corpo Dela e Outras Farras, de Carmen Maria Machado, e gostando bastante, ela mistura muito humor e terror. Ah, ouvi MUITO o álbum Se O Caso É Chorar, de Tom Zé, enquanto fazia essa HQ.