Entrevistei o quadrinista escocês Tom Gauld pela primeira vez em 2019, quando a editora Todavia publicou Golias, primeira obra longa do autor lançada em português. Voltei a conversar com ele há algumas semanas para saber mais sobre as origens e a produção de Guarda Lunar, segundo título longo do artista lançado por aqui.
A nossa conversa de 2019 virou matéria para o jornal O Globo e essa segunda transformei em texto para a Folha de S. Paulo. Dessa vez foquei mais na relação de Gauld com ciência e ficção científica, dois dos temas mais queridos do autor e bastante ligados a Guarda Lunar e às suas tiras para os jornais Guardian e New York Times e para as revistas New Yorker e New Scientist.
Ainda falamos nesse papo mais recente sobre pandemia, negacionismo, os filmes de Jim Jarmusch, ritmo e os próximos trabalhos de Gauld. Deixo outra vez o link da minha matéria e reproduzo a seguir a integra da minha nova entrevista com o quadrinista britânico. Saca só:
“Quanto mais a ciência entra na imaginação popular, mais material eu tenho para trabalhar e me divertir”
Queria começar sabendo como estão as coisas por aí. Estamos no meio de uma pandemia, é um momento de muita tensão e risco para todo o mundo. Como você está lidando com isso tudo? Como essa situação afetou a sua rotina? A sua produção foi influenciada de alguma forma por esse realidade que estamos vivendo?
Estou bem, obrigado por perguntar. Posso trabalhar em casa e estou acostumado a trabalhar sozinho, então tenho conseguido manter o ritmo. Mas há muitas pequenas coisas de que sinto falta. Eu costumava passear por museus e desenhar muito em cafés, mas não posso fazer isso agora. No início, não consegui abordar a pandemia nas minhas tiras semanais porque parecia grandiosa demais e assustadora, mas, mais recentemente, consegui fazer algumas tiras divertidas sobre ela.
Há uma presença intensa de temas científicos nos seus trabalhos e estamos vivendo em uma realidade na qual a ciência é mais necessária do que nunca. Vejo pelas redes sociais um interesse crescente sobre ciência desde o início da pandemia – está todo mundo falando sobre vacinas, contágio e por aí vai. Esse interesse afetou de alguma forma o seu trabalho? Eu imagino que você esteja lidando a cada dia com mais “especialistas”…
Sim, acho que a ciência e os cientistas estiveram mais no centro das atenções no ano passado. No Reino Unido, nosso médico-chefe e cientista-chefe quase se tornaram celebridades. Não consigo pensar de nenhuma maneira específica como isso afetou meu trabalho, mas quanto mais a ciência entra na imaginação popular, mais material eu tenho para trabalhar e me divertir. Também acho bom que as pessoas percebam que a ciência faz parte de suas vidas, não é algo à parte que só importa para professores.
E em relação a negacionistas da pandemia e grupos antivacinas? Você já teve algum problema com leitores do tipo? O que você acha que está acontecendo com o mundo quando ouve sobre questionamentos de fatos e informações científicas? Tem gente por aí que acha que a terra é plana ou que nós nem fomos à Lua…
Quando as minhas tiras são tuitadas pelo Guardian ou pela New Scientist, frequentemente há alguma resposta a elas que nada tem a ver com a tira, mas vem de uma pessoa furiosa com uma teoria conspiratória para compartilhar. Isso me faz perceber quantas teorias malucas existem e quanta energia algumas pessoas colocam para promover essas coisas. A internet e as mídias sociais definitivamente ajudam a gerar essas ideias e acho que a Lei de Brandolini (‘A quantidade de energia necessária para refutar uma besteira é uma ordem de magnitude maior do que produzi-la’) parcialmente explica isso.
“Amo a ideia de criar todo um mundo (ou universo) fictício“
Quando terminei Guarda Lunar fiquei curioso sobre a sua relação com ficção científica. Você lembra dos primeiros livros de ficção científica que você leu e os primeiros filmes do gênero que assistiu? Quais são as suas principais referências de ficção científica?
Quando criança, fui extremamente influenciado pelos filmes de Star Wars, eu era absolutamente apaixonado por eles. Acho que foram uma porta de entrada para toda a ficção científica: 2001: Uma Odisséia no Espaço, quadrinhos da 2000Ad, os livros da série Culture de Iain M Banks, William Gibson e etc. Eu amei (e ainda amo) a ideia de criar todo um mundo (ou universo) fictício. Eu também fui influenciado pelos documentários ‘Making of’ que você às vezes via na televisão, com homens barbados fazendo enormes modelos de espaçonaves ou fantoches de alienígenas.
Eu gosto muito do ritmo dos seus livros. Eles não têm pressa nenhuma e isso é algo que relaciono muito com os clássicos da ficção científica – estou pensando em 2001, Solaris, Planeta dos Macacos e Blade Runner, por exemplo. Você vê alguma relação entre esse ritmo mais lento dessas obras e o gênero da ficção científica?
Acho que um dos prazeres da ficção científica é a sensação de visitar um mundo estranho fictício. Não foram os enredos de Blade Runner e 2001 que chamaram a minha atenção, mas seus mundos intrincadamente imaginados e convincentes. Fico feliz em diminuir o ritmo da história, me permitindo revelar todos os detalhes.
E você pode comentar um pouco sobre os ritmos dos seus livros? Como você chegou nessa narrativa mais lenta?
Na faculdade de artes fui influenciado pelos filmes de Jim Jarmusch. Eu gostava da forma como eles brincam com seus gêneros, têm um humor irônico descontraído e são subestimados em suas fluências. Então eu queria fazer algo assim nos meus quadrinhos. Descobri como é divertido brincar com o tempo nos quadrinhos pela distribuição dos painéis na página, e gosto de como você pode sugerir lentidão e passagem do tempo sem entediar o público.
Nas minhas tiras semanais não há muito espaço e, portanto, há menos escopo para brincar com pausas e sequências lentas. Nas graphic novels tenho todo o espaço que quero, então gosto de usá-lo.
Você pode contar um pouco sobre os seus métodos e suas técnicas durante a produção de Guarda Lunar?
Guarda Lunar começou como uma ideia simples para um quadrinho curto. Seriam apenas vinte páginas muito pequenas com alguns poucos painéis em cada uma. Era realmente mais uma piada do que uma história. Mas gostei e queria pensar mais sobre esse personagem e seu ambiente. A história ficou um pouco mais complexa, mas a maior parte do que acrescentei foram detalhes de sua vida e de seu mundo. Fiz muitas anotações e desenhos, imaginando a colônia lunar, como funcionava e como era a história dele.
“Acho que a lua, depois de um ou dois dias, seria um lugar um tanto chato para se visitar”
Quando te entrevistei pela primeira vez você me contou como um brinquedo foi a sua inspiração para esse conto sobre um policial fazendo patrulha na lua. Como você desenvolveu essa história? Como você decidiu qual seria o personagem e qual seria a história que você iria contar?
Tive uma ideia para o início da história (na verdade, apenas o comecinho mostrando um policial entediado em uma colônia lunar silenciosa e sem crimes) e sabia o final que queria contar (que não vou estragar aqui). Depois, apenas escrevi muitas cenas da vida do policial, tentando imaginar todas as pequenas coisas que poderiam acontecer com ele, pequenos episódios que iriam compor sua vida. Os personagens e as situações cresceram naturalmente enquanto eu imaginava as cenas.
Eu queria usar a linguagem da ficção científica para contar uma história sem armas, guerra, morte e nem mesmo muita ação, sabendo que a diversão viria em parte das memórias do público de toda a ficção científica emocionante, grandiosa e cheia de ação que eles já viram.
Não retornamos à Lua desde 1972 e você nasceu em 1976. Qual é o seu nível de decepção por nunca ter visto uma viagem à Lua ao vivo?
Fico desapontado. O pouso na lua me parece uma conquista humana incrível e otimista e é triste que o espírito de aventura tenha se dissipado depois disso. Por outro lado, é meio compreensível. Acho que a lua, depois de um ou dois dias, seria um lugar um tanto chato para se visitar. As ilustrações que vemos nos anos 60 de hotéis lunares e similares parecem quase infantilmente inocentes.
“Com certeza fui atrás da melancolia”
Para mim o sentimento predominante de Guarda Lunar é de melancolia. Era esse o sentimento que você queria ver presente nesse livro?
Eu com certeza fui atrás da melancolia. A arte que eu mais gosto costuma ser triste e engraçada ao mesmo tempo (mas não completamente sombria). Você teria que perguntar a um psicólogo por que essa combinação me atrai tanto, mas atrai.
Você pode falar alguma coisa sobre o seu próximo trabalho? Qual é o projeto no qual você está trabalhando no momento?
Estou finalizando os últimos trechos do meu trabalho em um livro ilustrado chamado The Little Wooden Robot and the Log Princess. Tem sido um processo fascinante, fazer um livro para crianças e descobrir como usar minha escrita e imagens neste novo gênero. Será lançado em inglês em agosto e logo depois em outros idiomas. Quando terminar, começarei uma nova história em quadrinhos para adultos.
A última! Você poderia recomendar alguma coisa que tenha lido/visto/ouvido recentemente?
Enquanto trabalhava no meu livro infantil li muitos contos de fadas e livros relacionados a contos de fadas. Três livros que realmente me inspiraram foram Complete Grimm’s Tales, de Jack Zipes; The Bloody Chamber, de Angela Carter; e Possession, de A.S. Byatt. Todos eles usam a linguagem de forma brilhante e me fizeram pensar de forma diferente em contos de fadas, especificamente sobre como contar histórias.