Uma das coisas que mais gosto em Gravidade é o fato do filme do Cuarón ser muito pouco didático. Tirando duas cenas bastante autoexplicativas – a entrada da Sandra Bullock na estação russa e a sequência final – o filme inteiro é bastante legível, mas cheio de nuances e possibilidades de leituras que vão muito além da sinopse básica de “thriller-espacial-sobre-dois-astronautas-abandonados-na-atmosfera-terrestre”. Das muitas interpretações possíveis para as várias metáforas presentes no longa, uma das leituras mais bem sacadas que vi foi a do André.
Assim como outras pessoas, ele também interpretou o filme como uma imensa alegoria religiosa, mas com alguns dos melhores argumentos que encontrei. De referências explícitas, como o santinho presente na estação russa e a estátua de Buda na nave chinesa, a outras mais elaboradas, como o nome do personagem de George Clooney – Matt em inglês significa presente de Deus e no filme inteiro ele trabalha como o anjo da guarda da Ryan de Bullock, né não? Segue o começo da análise dele. O resto tá aqui, cheio de spoiler.
A busca por Deus e a elevação espiritual em Gravidade
“Minha visão do nosso planeta foi um vislumbre de divindade” – Edgar Mitchell
“Olhar este tipo de criação lá fora e não acreditar em Deus é impossível para mim…apenas reforçou minha fé. Eu gostaria que houvessem palavras para descrever como é” – John Glenn
“Eu senti o poder de Deus como nunca senti antes” – James Irwin
Os exemplos são infinitos. Astronautas que dizem ter uma revelação divina em sua primeira experiência no espaço, ao olhar para a Terra do lado “de fora”. O motivo, a priori, parece ser simples: no espaço, você está desprovido da maior força terrena, aquela que melhor caracteriza tudo o que está “vivo”: a gravidade. Como alguns também descrevem, a sensação é de como estar fora do corpo, flutuando num estado de sublimação existencial. Visualizar a Terra de fora, para estes, é um choque de perspectiva; é como observar a si mesmo, num “extra-vida”; como estar “próximo de Deus”.
E é exatamente este choque existencial que “Gravidade” explora de forma tão autêntica. Que o filme na verdade é sobre o ‘renascimento’ da personagem de Sandra Bullock é bem claro (a cena em que ela adormece flutuando em posição fetal, assim como a iconográfica cena final, são bastante óbvias na referência e deixam bem explícito o que quer ser dito). Entretanto, se “Deus está nos detalhes”, são nos simbolismos e nas sutilezas espalhadas ao longo do filme que o tornam uma obra tão rica, complexa e significativa para os nossos tempos. Porém, como sempre, a leitura que eles permitem vai depender do quão aberto o espectador está.
Muito se tem comparado “Gravidade” com o “2001″ de Kubrick e, de fato, talvez seja a primeira vez desde então que um filme de espaço se utiliza da tecnologia de sua época com maestria e visual tão impressionante para discursar sobre a existência humana. Mas se para Kubrick o conhecimento humano leva ao exterior e à expansão espacial, para Alfónso Cuarón leva ao interior, à libertação do espírito, ao retorno à natureza e à redescoberta da essência humana.
E é a partir dessa premissa que pretendo me aprofundar aqui. Não é porque o filme possui ritmo frenético do gênero ação e carece dos momentos contemplativos de “2001” ou “Solaris” que ele também não tenha sua complexidade metafísica e autenticamente autoral (sempre achei, aliás, a ideia comum entre os cinéfilos mais xiitas de que só é possível alcançar “profundidade” com contemplação uma grande falácia).
Antes de qualquer coisa, que fique claro que esta leitura do filme é alegórica, pessoal, e obviamente não é a única possível, não é exclusiva nem absoluta, tampouco acredito que seja mero delírio associativo, já que Cuarón já havia recheado seu excelente “Filhos da Esperança” com diversas imagens icônicas e referências religiosas.