Papo com Rafael Sica e Paulo Scott, autores de Meu Mundo Versus Marta: “As leituras distópicas de nossa realidade são incontornáveis”

Escrevi para o jornal Folha de S. Paulo uma crítica de Meu Mundo Versus Marta, parceria do quadrinista Rafael Sica com o escritor Paulo Scott publicada pela editora Companhia das Letras. Chamo atenção no meu texto para vários dos méritos da obra, uma das minhas leituras preferidas de 2021 até aqui, mas destaco principalmente o espetáculo narrativo em preto e branco de Sica e os paralelos da trama com o Brasil distópico de Jair Bolsonaro. Você lê a minha crítica clicando aqui.

Entrevistei os autores da obra há algumas semanas. A nossa conversa foi focada principalmente na dinâmica dos dois durante o desenvolvimento do quadrinho, mas eles também contaram sobre o início dessa parceria, comentaram alguns dos temas tratados na HQ e analisaram essas semelhanças entre o cenário do quadrinho com a atual realidade sócio-econômica-pandêmica do país. Leia a HQ, depois o meu texto e volte aqui em seguida para conferir essa conversa. Papo massa, saca só:

“O que fizemos não está nem próximo de uma relação roteirista e desenhista”

Quadro de Meu Mundo Versus Marta, parceria de Paulo Scott e Rafael Sica (Divulgação)

Tenho perguntado para todo mundo que entrevisto ao longo dos últimos meses: Como estão as coisas por aí? Como vocês estão lidando com a pandemia? Ela afetou de alguma forma a produção e a rotina de vocês?

Paulo Scott: Para quem escreve e trabalha em casa não há muita mudança de rotina. Penso, entretanto, que, havendo essa trágica justificativa para ficar trabalhando em casa em tempo integral, a pandemia, o confinamento exigido, facilitou o desenvolvimento de ideias e projetos que demandariam muito mais tempo e foco direcionado em condições de existência normal para acontecerem.

Rafael Sica: Quando começou a pandemia recém tínhamos lançado o livro Triste e foi impossível trabalhá-lo como gostaríamos. Minha produção não foi diretamente afetada pois trabalho em casa e de certa forma já é um tipo de isolamento. O livro Brasil, que desenhei e foi lançado durante a pandemia é um reflexo desse período e, nesse sentido da temática, afetou a produção.

O que vocês podem contar sobre o ponto de partida de Meu Mundo Versus Marta? Desde quando esse projeto está em desenvolvimento? Como teve início a parceria de vocês nesse livro?

Paulo Scott: Sou um fã confesso dos desenhistas e quadrinistas do meu tempo, da minha geração. Tenho trabalhos feitos em parceria com a Laerte, com o Fabio Zimbres – com ele criei o projeto Na TáBUA, que é só uma de nossas invenções –, Adão Iturrusgarai, Guazzelli entre outros e estou sempre atento aos novos. Entre os nomes geniais que apareceram no início deste século, não lembro de ter ficado tão impactado por outro como fiquei com o Rafael Sica, com o seu trabalho, sua singularidade, sua potência, sua inteligência.

A iniciativa foi minha. Procurei o Rafael, a quem fui apresentado pelo Fabio Zimbres, e disse que tinha escrito um roteiro de graphic novel para ele, um roteiro inspirado no trabalho dele, nas idiossincrasias dos desenhos e narrativas dele. Foi uma história que meio que surgiu pronta na minha cabeça, sem diálogos, dentro de um arco narrativo bem simples.

Ele foi muito generoso ao responder que gostaria de ler o que escrevi. E ainda mais generoso ao aceitar a proposta de parceria. Importante dizer que isso que chamo de roteiro nunca foi visto por mim como um roteiro tradicional, um roteiro escrito a ser cumprido por um quadrinista. Não. O que fiz foi apresentar ao Rafael Sica uma história escrita, uma ideia, minha para que, a partir dela, ele contasse a história dele.

Nesse sentido, eu diria que a graphic novel Meu Mundo Versus Marta é trabalho autoral do Rafael Sica feito a partir da leitura exclusiva dele de uma ideia minha, de uma história que eu escrevi.

Rafael Sica: Eu já tinha visto algumas coisas do Paulo por conta do Na TáBUA, projeto que ele faz junto do Fabio Zimbres. Já era um fã mas conhecia pouca coisa. O Paulinho Chimendes, artista plástico fundamental em Porto Alegre, foi quem me emprestou Ainda Orangotangos, livro do Scott. Primeiro livro que li dele. Depois fui conhecer pessoalmente o Scott numa festa literária em Porto Alegre. Não lembro quem nos apresentou, mas em poucos dias eu já recebia um texto no meu mail e a pergunta se eu gostaria de desenhar. Topei na hora. Isso foi lá por 2012. De lá pra cá, tive tempo de ler quase todos os livros do Scott e ir aos poucos pensando como desdobraria aquele texto de sete páginas em uma narrativa gráfica longa.
 
E como foi a dinâmica de trabalho de vocês? Vocês chegaram a fechar a trama inteira e um roteiro antes do Rafael começar a desenhar? Qual foi a influência do Rafael na trama? Como era a relação do Paulo com a arte à medida que o Rafael ia produzindo as páginas?

Paulo Scott: Sobretudo por se tratar de uma história de resultado final muito baseada na estética, na imagem, o desenho é o que dá a complexidade para uma história que, sem dúvida, é bastante simples, elementar. A trama pode ser resumida em duas linhas – embora o roteiro tenha tomado cinco ou seis laudas, pelo que me lembro –, mas o contar, em formato de graphic novel, envolve um grau de detalhamentos sem os quais o fabular da narrativa jamais aconteceria.

Como eu disse, apresentei ao Rafael a história escrita. E, quando ele começou a desenhar, fez as alterações que achou necessárias. À medida que ia produzindo as páginas, ele ia me mostrando, mas eu jamais tive qualquer ingerência sobre o que ele estava realizando, jamais dei qualquer sugestão, limitei-me a aplaudir e agradecer a oportunidade da experiência.

Rafael Sica: Tive toda a liberdade que você possa imaginar pra criar a narrativa. Já tive roteiros de quadrinhos em minhas mãos e o que fizemos não está nem próximo de uma relação roteirista e desenhista.

“Tudo é narrativa, a vontade e a urgência de contar”

Página de Meu Mundo Versus Marta, parceria de Paulo Scott e Rafael Sica (Divulgação)

Paulo, você já escreveu romances, contos, poesias e peças. Meu Mundo Versus Marta (MMXM) é sua primeira HQ, certo? Como foi essa experiência? Escrever uma HQ se aproximou mais de alguma outra experiência de escrita sua?

Paulo Scott: MMXM é o meu terceiro roteiro para graphic novel. Antes fiz dois, pelos quais recebi adiantamentos de direitos autorais e tudo, mas que acabaram não se realizando na época programada. Um deles, eu pretendo concretizar no ano que vem, porque os desenhos já estão prontos, é o Não Me Mande Flores, em parceria com outro gaúcho, o talentoso Eduardo Medeiros, do Sopa de Salsicha. Estou escrevendo um quarto roteiro – é um projeto meio paralelo à empreitada de escrita do romance Rondonópolis para o qual estou me dedicando no momento.

Para mim, tudo é narrativa, a vontade e a urgência de contar. A adequação às formas e aos tempos é uma questão importante, mas não é o principal. Mesmo na escrita de romances, se você for honesto com o processo e consigo mesmo, cada livro demanda uma nova trajetória, uma série de novas descobertas, formatos, lógicas, de novas inquietudes e perplexidades.

Aliás, Paulo, você pode falar um pouco, por favor, sobre a sua relação com HQs?

Paulo Scott: Sempre fui leitor de gibis, colecionava. Mas foi a chegada às minhas mãos de um exemplar de segunda mão da Heavy Metal com o Ranxerox na capa no início de 1984, eu tinha 17 anos, que mudo a minha vida. Foi quando começou minha busca apaixonada pelas revistas europeias, sobretudo, graphic novels, uma busca que reverberou – assim como aconteceu com o rap novaiorquino na mesma época – diretamente sobre minha poesia. Os quadrinistas de Porto Alegre foram fundamentais nesse processo também.

“É bem cansativo mesmo nas ideias curtas, imagina numa história longa”

Página de Meu Mundo Versus Marta, parceria de Paulo Scott e Rafael Sica (Divulgação)

Rafael, Meu Mundo Versus Marta é sua primeira experiência em parceria com um escritor, correto? Fico com a impressão que seus trabalhos são muito intimistas e pessoais, como foi essa experiência de trabalhar com outra pessoa?

Rafael Sica: É a primeira vez que desenho com texto de outra pessoa, também é meu primeiro quadrinho mais longo. Foram muitos desafios e acredito que esse tempo todo com o texto na mão, pensando a história, buscando caminhos. Por vezes eu até esquecia que outra pessoa tinha escrito, de tanta intimidade que criei com o argumento do Paulo.

Rafael, você pode me falar um pouco sobre sua dinâmica de trabalho durante o desenvolvimento dessa HQ? Você trabalhou dentro de alguma rotina enquanto desenhava esse quadrinho? Você pode me falar, por favor, quais materiais usou?

Rafael Sica: Comecei a desenhar lá em 2012, quando fiz dois capítulos. Depois, ficou um longo tempo parada. Quando voltei a desenhar, já em 2018, fiz uma média de duas páginas por dia, inclusive refiz os dois primeiros capítulos. Pra desenhar usei bico de pena e nanquim.

Mais uma para o Rafael: você está mais habituado a trabalhar com tiras e HQs curtas. Como foi a experiência de desenvolver esse trabalho mais longo?

Rafael Sica: Geralmente, depois que faço um desenho, deixo ele de lado e já não quero mais saber. Parto pra outra ideia e persigo ela. É bem cansativo mesmo nas ideias curtas, imagina numa história longa. Foi uma relação bem íntima e dolorosa. Mas gosto do resultado. Próximas histórias longas só farei se for muito bem pago por esse tipo de trabalho, o que suspeito que não irá acontecer tão cedo. 

“Se fosse um tempo verbal, diria que MMXM se passa no futuro do pretérito”

Página de Meu Mundo Versus Marta, parceria de Paulo Scott e Rafael Sica (Divulgação)

Um dos elementos mais marcantes de Meu Mundo Versus Marta para mim é o design das páginas, como vocês administram a velocidade da trama com o uso de mais ou menos quadros por página ou quadros menores e maiores. Vocês podem falar um pouco, por favor, sobre a construção dessa estética da HQ?

Rafael Sica: O texto do Paulo tinha esse ritmo, de acompanhar os personagens a cada minuto do dia. Então optei por deixar bem fragmentada, marcando um tempo que é quase um tempo de animação ou cinema mudo. O gestual foi muito trabalhado. Quando a personagem levanta da cama e vai até a cozinha e sai de casa, todo esse caminho é mostrado. É uma história muito íntima, você entra na vida daqueles dois seres e pra isso era preciso mostrar tudo nos mais intrincados detalhes.

O ambiente urbano tem um peso grande em trabalhos do Sica, penso principalmente em Fachadas e Ordinário. Obras distópicas como Meu Mundo Versus Marta tendem ser ambientadas em grandes centros urbanos. Vocês veem alguma justificativa para isso? Vocês sempre estiveram claros em relação a essa ambientação do quadrinho?

Paulo Scott: A aglomeração urbana é o lugar do absurdo racional, da loucura, dos excessos, onde o futuro, que é sempre aposta, se coloca como uma obsessão, um projetar que é disputa, a ilusão de que se pode projetar. Achei magnifico o cenário que o Rafael armou para a MMXM, deu um aspecto lúdico que dilui o lado aterrador da narrativa. Uma solução genial.

Rafael Sica: No texto do Paulo tinham algumas referências a lugares aqui de Pelotas, cidade onde vivo atualmente e sempre foi o cenário dos meus desenhos. Em Fachadas, Ordinário e etc é sempre o mesmo cenário.

Agora, temos essa ideia de ficção científica e obras distópicas ambientadas em grandes centros urbanos, mas esquecemos que numa cidade de interior a loucura também chega. Então, desde o começo do projeto, minha ideia era ambientar a história em uma cidade de interior imaginada. Se fosse um tempo verbal, diria que MMXM se passa no futuro do pretérito.

Há muitas comparações entre o atual cenário político-social-pandêmico brasileiro com uma distopia. Essa realidade impactou de alguma forma o desenvolvimento do trabalho de vocês?

Paulo Scott: Não há grande impacto, no meu caso. A história do Brasil se desenvolve sobre as tragédias e violências mais injustificadas imagináveis, fomos o último país a abolir a escravatura de pessoas raptadas do continente africano e trazidas como produtos mercantis, desfeitas de sua identidade, de sua mínima dignidade, somos um país marcado pela perversidade militar, o país mais dominado e desrespeitado pelos bancos no mundo, o país de uma das elites mais covardes e insensíveis do planeta, basta saber ler o que se passa, o que passou. As leituras distópicas de nossa realidade são incontornáveis, me parece, são uma consequência natural.

Penso, no entanto, que MMXM trata de um terror que é mundial, expressado no século XX e perpetuado nas ambições de muitos. A presença do personagem Marta remete a uma intervenção heterônoma com a qual a humanidade ainda não sabe muito bem como lidar. O medo é a paz, mas uma paz que só aumenta o terror. Marta é o juízo final sempre retardado, sempre contornado, o que não impede que a humanidade prossiga com seus abusos, com suas maldades, com seus totalitarismos.  

Rafael Sica: Especificamente, não. Foi produzida anteriormente a toda essa situação atual desastrosa em que nos encontramos.

“Tendo a achar que a leitura é o que dá o caminho da obra”

Página de Meu Mundo Versus Marta, parceria de Paulo Scott e Rafael Sica (Divulgação)

Pesou muito para mim na leitura do quadrinho o clima de desconfiança e conspiração da história. Foi intenção de vocês fomentar essa impressão de desconforto e tensão constantes?

Paulo Scott: Penso que esta é uma pergunta para o Rafael responder.

Tendo a achar que a leitura (no caso a sua) é o que dá o caminho da obra. Não gosto de falar em dimensão mais profunda dos meus poemas, por exemplo. A magia está na leitura. Acho que sua pergunta já coloca um interessante caminho possível.

Rafael Sica: Como falei, é uma história muito íntima, você entra fundo na intimidade das personagens e isso gera essa sensação de insegurança a angústia. É tão íntimo que parece com a nossa vida. Tão íntimo que vira público.

Mando essas perguntas cerca de um mês antes do lançamento do quadrinho. Ele ainda não foi impresso, mas o arquivo final já foi entregue para a editora. Qual balanço vocês fazem dessa experiência de produção de Meu Mundo Versus Marta?

Paulo Scott: Uma alegria indescritível ver, dez anos depois, a leitura de uma ideia minha realizada por um artista tão incomum, um artista que eu tanto admiro, impressa no papel, impressa para ficar – o trabalho do Rafael é daqueles que ganham outra dimensão quando impressos no velho e bom papel. Isso é inegável. Não é a mesma coisa ver uma tela de uma grande pintora, de um grande pintor, num monitor eletrônico. Com a MMXM, do Rafael Sica, tenho certeza de que é a mesma coisa.

Penso que exercitamos a paciência e a determinação de realizar, tenho orgulho da amizade que se formou e se fortaleceu em torno de um projeto que combinou dois trabalhos distintos, que foi diálogo entre dois caras que se admiram e se respeitam e, sobretudo, que aprendem um com o outro. Da minha parte, o que posso dizer é que foi uma escola.

Rafael Sica: Não acredito que enviaram um PDF pra você. [Nota do editor: no caso, o artista expressa seu incômodo em relação ao envio da obra, pela editora, em formato de PDF antes do lançamento de sua versão impressa.]

Vocês podem recomendar algo que tenham lido/assistido/ouvido nos últimos meses?

Paulo Scott: Poesia. Há muitos bons livros de poesia lançados no último ano.

Rafael Sica: Frequente e alimente bibliotecas comunitárias. Aqui no bairro tem uma que me salvou durante a pandemia. Você vai lá e pega um livro, outra vez vai lá e deixa um livro, tudo no auto-serviço. Tudo na confiança, além de seguro em tempos de vírus circulando.

A capa de Meu Mundo Versus Marta, HQ de Paulo Scott e Rafael Sica publicada pela editora Companhia das Letras (Divulgação)
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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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