Depois que o Brasil Acabou reúne trabalhos do quadrinista João Pinheiro publicados na revista Cavalo de Teta, na coletânea Na Quebrada – Quadrinhos de Hip Hop #1, no blog da editora Veneta, no programa Convida do Instituto Moreira Salles e outros títulos. São HQs e ilustrações produzidas pelo autor a partir do golpe contra Dilma Rousseff em 2016, centradas na ascensão de Jair Bolsonaro e no caos do Brasil em meio à pandemia do novo coronavírus.
“O recorte para o livro foi reunir essas HQs que tratam da vida social brasileira dos últimos cinco anos”, me contou o autor sobre a coletânea recém-publicada pela editora Veneta.
Pinheiro é autor de Kerouac, (2011), Burroughs (2015), Carolina (2016, em parceria com Sirlene Brabosa) e Diário Vagulino: Desenhos das Quebradas (2017). Depois que o Brasil Acabou consiste em registros das perspectivas e leituras de um dos autores mais relevantes da cena nacional de HQs sobre um país em crise crescente. São histórias curtas, com propostas e abordagens distintas de trabalhos prévios do autor, tanto trágicas quanto divertidas.
Na conversa a seguir, Pinheiro fala sobre suas inspirações, suas técnicas e suas avaliações sobre o Brasil contemporâneo. Saca só:
“Voltamos a ser uma colônia extrativista”
Tenho perguntando para todo mundo que entrevisto desde o início do ano passado: como estão as coisas por aí? Como você está lidando com a pandemia? Ela afetou de alguma forma a sua produção e a sua rotina diária?
Estamos caminhando, é a resposta mais positiva que consigo dar. Ainda é difícil avaliar, mas parece acertado dizer que essa pandemia será um trauma coletivo para várias gerações. Aqui, aos poucos, fomos nos acostumando com a rotina de cuidados e restrições que, no meu caso, não foi tão alterada na questão do isolamento, já que trabalho a maior parte do tempo em casa há mais de dez anos. Em 2020 fiquei alguns meses paralizado, sem conseguir produzir, apenas trabalhando no necessário pra pagar as contas, mas sem ânimo pra criar nada pessoal.
João, você pode contar um pouco sobre as origens de Depois que o Brasil Acabou? O álbum reúne trabalhos publicados por você apenas na internet ou em publicações de tiragens menores. Você já tinha em mente reunir esses trabalhos um dia? Qual foi o recorte, o filtro editorial de vocês, durante o processo de edição desse livro?
A origem foi a criação do zine Cavalo de Teta, que começou quando conheci pessoalmente meu ídolo Schiavon, em 2016, durante as manifestações dos book blocs, quando participei com meu escudo do Abajur Lilás, de Plínio Marcos, e o Schiva tava lá com o escudo que reproduzia a capa da revista Dundum número 1. Trocamos ideia e nos identificamos. Depois, quando da ocasião da Ugra Fest, que rolou no SESC Belenzinho, combinamos de fazer um zine, 12 páginas de cada e tal (ele mesmo escreveu sobre aqui). Na empolgação falei de chamar outros caras que eu acompanhava e curtia: Gerlach, Evandro Alves e MZK. Logo na primeira edição pensei no bordão: ‘Cavalo de Teta, a primeira revista pós-Brasil do mundo’. Infelizmente não era um exagero de retórica, pois o clima do golpe já estava todo lá e as garras do imperialismo já faziam sombra do Oiapoque ao Chuí. No entanto, as HQs foram sendo feitas sem a ideia pré-concebida de reuní-las no futuro. Eu estava com vontade de fazer histórias curtas, de experimentar abordagens diferentes e, ao mesmo tempo, de fazer uma revista que fosse divertida para quem lesse. O recorte para o livro foi reunir essas HQs que tratam da vida social brasileira dos últimos cinco anos.
Você pode falar, por favor, sobre a escolha do título? Como vocês chegaram em Depois que o Brasil Acabou? Por que esse título?
Inicialmente eu havia sugerido esse título: Quadrinhos Pós-Brasil, porque era uma expressão constante que utilizei durante esse último período pra divulgar a Cavalo de Teta. Porém, o Rogério [de Campos, editor da Veneta] sugeriu Depois que o Brasil Acabou, e eu achei que soava melhor e amarrava bem o conteúdo geral da coletânea. Batemos o martelo nessa segunda opção. Para mim o título não é uma hipérbole, pois acho que realmente deixamos de ser um país oprimido, mas com algum desenvolvimento econômico autônomo, para nos tornarmos uma neocolônia dos EUA e demais países dominantes do capitalismo.
Aliás, você consegue estabelecer algum ponto específico na nossa história em que esse pós-Brasil tem início? Em meio aos vários ocorridos trágicos recentes, você consegue estabelecer algum fato ou conjunto de eventos em particular que impulsionou a chegada da nossa atual realidade?
A história recente do Brasil é complexa e seriam necessários vários volumes pra dar conta de tantos golpes sucessivos aplicados contra o povo somente nessa quadra histórica que abrange o final da ditadura militar, em 1985, e a chamada Nova República até os dias atuais. Mas resumidamente, e sem querer defender tese sobre o assunto, apenas como um cidadão de 40 anos que presenciou isso tudo da periferia dos acontecimentos, vejo que o povo derrubou a ditadura com as manifestações populares, greves, movimento estudantil etc… Acuados, a burguesia e os militares prepararam o primeiro golpe, que foi o de sequestro dessa luta pelas oligarquias e a consequente eleição indireta do cidadão chamado Tancredo Neves, avô do Aécio Neves, mas provavelmente mais eficaz na arte de realizar maldades contra o povo por ser um homem dos militares e do poder econômico. Daí esse cidadão teve um piripaque providencial e quem assumiu foi o líder dos militares no congresso: o ilmo. sr. José Sarney, que tinha sido o líder do Arena – principal partido militar. Transição melhor que essa não poderia existir, do ponto de vista dos militares é claro. Em seguida, a burguesia fabricou o Collor, com todo seu poder financeiro e midiático, e foi aquele desastre que conhecemos. Após o governo Itamar, finalmente Fernando Henrique eleito, começa a implementação da política neoliberal que deu início às privatizações de várias estatais importantes seguindo as orientações do Consenso de Washington e FMI. Ali começa verdadeiramente a liquidação do país que levou milhões de brasileiros à fome e liquidou parte substancial da indústria nacional que vinha sendo construída pelo menos desde os anos 1930.
No início desse século o país estava em pedaços e milhares morriam de fome. Nessa situação, o Partido dos Trabalhadores assumiu o governo em 2003 e, através de uma série de programas sociais, conseguiu conter a explosão social que já ocorria concomitantemente nos países vizinhos da América Latina, como resposta desses povos por problemas muito semelhantes. Com algumas concessões, o governo petista conseguiu governar por três mandatos, mas após a crise capitalista de 2008, os capitalistas nacionais e internacionais viram a necessidade de retomar a sanha privatista a fim de salvar o capitalismo agonizante. Ou seja, a alternativa deles diante da crise, foi fazer com que os países pobres do globo paguem a conta da crise. O golpe de 2016 foi dado para retomar essa política iniciada lá atrás de liquidação do país e para os golpistas do momento a ordem é privatizar tudo, liquidar o país. Estão conseguindo. A aprovação do teto de gastos, da autonomia do Banco Central, a retirada de direitos dos trabalhadores etc… Tudo configura a perda total de nossa soberania. Voltamos a ser uma colônia extrativista.
Acho que Depois que o Brasil Acabou é uma grande amostra da sua versatilidade, tanto em termos de estilo de desenho quanto em termos de investidas em diferentes gêneros. Fico curioso em relação aos seus critérios para optar por uma ou outra abordagem e estabelecer esse ou aquele traço para uma determinada HQ. Como funciona esse processo para você?
Eu sou mais fascinado pela linguagem dos quadrinhos do que por algum estilo, autor ou gênero específico. Acho que ideias são mais legais de seguir do que um estilo. Nos meus diários gráficos sempre experimentei com diferentes abordagens e quando decidi fazer histórias curtas para publicar na Cavalo, achei que era uma boa oportunidade de colocar pra jogo essas propostas diferenciadas. No geral procurei me manter mais fiel a ideia, e ao que determinado argumento pedia, do que a um estilo específico.
“Acho que ideias são mais legais de seguir do que um estilo”
Você pode me falar um pouco sobre as suas técnicas preferidas? Quais são os materiais que você costuma usar com mais frequência? Há alguma técnica predominante nos seus trabalhos em Depois que o Brasil Acabou?
O que eu mais gosto é do bico de pena e nanquim sobre papel Bristol. Mas nesse livro temos algumas histórias que foram desenhadas totalmente no computador.
Tem dois trabalhos seus em Depois que o Brasil Acabou com a presença de cores. São cores discretas e usadas com parcimônia, mas estão lá. A maior parte dos seus trabalhos publicados até hoje é em preto e branco. Você tem alguma preferência em particular pelo preto e branco? Como foi essa experiência trabalhando com cores?
Sempre preferi os quadrinhos em preto e branco. Um dos primeiros gibis que lembro de ter lido, foi um do Conan do meu irmão mais velho. Era desenhado pelo John Buscema, com toda aquela elegância que lhe é característica. Depois tiveram as revistas nacionais que em sua imensa maioria eram em PB também. É meio que minha escola. Sei que naquela época as publicações também eram publicadas desse modo por questões econômicas, mas como essas histórias a que você se refere, foram feitas para serem publicadas na internet, aproveitei para usar esse recurso a mais onde auxiliasse a narrativa.
E é fácil para você alternar os seus “modos de produção”? Digo, é tranquilo para você ir do “João galhofeiro e bem-humorado” de alguns desses trabalhos para o “João mais reflexivo e sóbrio” de outros? A experiência de produção para você é muito distinta, por exemplo, quando você está trabalhando em uma Cloro Maldita de uma Farol de Quebrada?
Sim, porque, na verdade, na infância e na adolescência, eu fazia mais HQs de humor do que ‘sérias’. Meu estilo era mais cartum, mas depois que publiquei meu primeiro livro, um estilo mais realista passou a prevalecer. Até agora.
O que mais te interessa hoje na linguagem das histórias em quadrinhos?
Eu sou completamente tarado pela linguagem das histórias em quadrinhos. Os desenhos separados por quadros ou não, o balão e as letras que funcionam como desenhos também, a leitura muito rápida desses vários elementos. Tudo isso é fascinante. Mas o principal é contar histórias.
Acho que Depois que o Brasil Acabou faz um panorama e um registro muito precisos do Brasil pós-golpe. Você fez quadrinhos sobre os golpistas logo após o golpe, escreveu sobre o Temer enquanto ele estava no poder, tratou do início do governo Bolsonaro com ele em curso e fez trabalhos sobre a pandemia ainda no começo dela. Como é para você a experiência de produzir todos esses trabalhos no calor do momento?
Ao mesmo tempo, me angustia e me obriga a refletir e pesquisar pra tentar entender o que aconteceu. Parafraseando o cineasta Jeferson De: só de raiva, desenho com amor.
João, você consegue fazer alguma previsão para o futuro do Brasil? Você consegue vislumbrar alguma perspectiva de melhora para o país?
É muito difícil prever essas coisas que dependem de muitos fatores, mas sim, acho que o povo um dia vai fazer a revolução no Brasil. E pra desespero dos lunáticos direitista só digo o seguinte: Brasil significa Vermelho como uma brasa. Ser um país vermelho é nosso destino manifesto desde o nome.
No que mais você está trabalhando no momento, João? Você tem algum outro quadrinho em vista para um futuro próximo? Alguma perspectiva para um possível novo número da Cavalo de Teta?
Estou finalizando uma adaptação da peça Barrela, de Plínio Marcos, para os quadrinhos e minha HQ A Tragédia dos Cães até o final deste ano. Inclusive, a HQ dos Cães tem um site onde pretendo publicar o processo e extras periodicamente.
Eu gostaria muito de fazer uma nova edição da Cavalo de Teta. Se sobrevivermos, vou tentar convencer meus parceiros pra fazermos algo pro ano que vem.
Você pode recomendar algo que tenha visto, ouvido ou lido recentemente?
Tenho lido HQs brasileiras dos anos 70/80, principalmente de terror. Redescobri uma caixa de HQs antigas com trabalhos do Elmano Silva, Mozart Couto, Shimamoto, Flavio Colin, E.C. Nickel, Watson Portela, Rodolfo Zalla, Jayme Cortez, Eugênio Colonnese… Foi incrível relê-los tantos anos depois e perceber o quanto estão impregnados no meu trabalho sem que eu me desse conta. Também estou lendo toda a obra do William Blake e sua biografia, além de textos sobre as seitas gnósticas do início da era cristã. É um tema fascinante.