Meu Diário de Nova York é uma das minhas melhores leituras no ano e possivelmente o maior acerto da editora Veneta no primeiro semestre de 2022. Primeiro título da canadense Julie Doucet publicado na América do Sul, o álbum chega ao Brasil seis meses após a autora ser homenageada com o Grand Prix da 49ª edição do Festival de Angoulême, mais tradicional festival de histórias em quadrinhos do Ocidente.
A honraria concedida pelos organizadores do evento francês celebra anualmente o conjunto da obra e as contribuições de um artista para a linguagem dos quadrinhos. Ao anunciar a vitória de Doucet, os organizadores do festival exaltaram sua arte “sem concessões, radical e subversiva”.
Entrevistei Doucet e transformei esse papo em matéria exclusiva aqui para o blog. No meu texto eu contei mais sobre a história da autora, a relação dela com o mundo dos quadrinhos e também sobre as origens e a produção de Meu Diário de Nova York. Reproduzo agora a íntegra da minha conversa com a artista. Papo bem massa, saca só:
“Nunca fui uma autora de grandes sucessos”
As HQs de Meu Diário de Nova York foram publicadas pela primeira vez em 1998. O que significa para você ver esse trabalho sendo republicado ainda hoje, 24 anos depois? Aliás, o que significa para você ver o seu trabalho sendo publicado pela primeira vez no Brasil?
Oh la la os anos passam!! Isso me deixa muito feliz, claro… Foi muito inesperado, uma bela surpresa. Trata-se da minha primeira edição brasileira, e também na América do Sul, isso não é pouca coisa!
A Nova York em que você morou na década de 1990 é muito diferente da Nova York do presente. Existem aspectos desta “velha Nova York” que você sente falta? Há algum aspecto de Nova York que você acha que é melhor hoje em dia do que o seu tempo morando lá?
De fato, a cidade mudou muito desde então… Mas o mesmo pode ser dito de tantas outras grandes cidades atualmente. Gentificação, aluguéis crescentes, pessoas pobres e oprimidas cada vez mais longe dos centros, o mesmo valendo para os artistas… Deste ponto de vista a vida com certeza parecia mais fácil naquela época. Uma vida underground, quando era tudo na base do boca a boca… E ainda havia toda uma aura de mistério…
Você poderia comparar a recepção do seu trabalho no início da Dirty Plotte e atualmente? O mundo parece estar mais aberto a obras independentes, pessoais e antiestablishment como as suas, mas há um conservadorismo crescente e problemas sociais e financeiros que me parecem ser um obstáculo para tudo isso.
Eu nunca fui uma autora de grandes sucessos, o meu sucesso foi de crítica, nunca comercial. O que quero dizer é que nunca chamei atenção da impresa, que talvez não estivesse tão interessada em quadrinhos na época. Quadrinhos são mais bem aceitos como meio artístico hoje, com certeza… Há um conservadorismo crescente, mas há o movimento Me Too, que ainda é muito forte na França. O que posso lhe dizer é que tenho vendido muitos livros recentemente!
“Eu jamais poderia distorcer a realidade”
Existe algum aspecto do início da carreira da jovem Julie retratado em Meu Diário de Nova York você sente falta?
Não. Para dizer a verdade, não mudaram muitas coisas no meu estilo de vida. Só que agora bebidas alcoólicas me dão enxaquecas.
Para mim, o que mais se destaca em Meu Diário de Nova York é sua honestidade, a sua sinceridade como autora. Quais você acha que são as principais qualidades de Julie, autora, da época de Meu Diário de Nova York?
Falando especificamente sobre a minha época desenhando Meu Diário de Nova York, eu diria que naquela época eu estava no auge da minha arte, pelo menos em termos gráficos. Em termos narrativos, foi meu trabalho mais ambicioso. Olhando para trás, eu gostaria de ter investido em uma abordagem mais complexa, menos convencional, mas tudo bem. Sobre a sinceridade, sim… Eu jamais poderia distorcer a realidade. Eu omiti muita coisa, mas não por causa de alguém ou qualquer coisa.
Você fez parte de uma geração lendária de quadrinistas – artistas que até aparecem em Meu Diário de Nova York (como Charles Burns, Françoise Mouly, Art Spiegelman e Peter Bagge). Como foi para você fazer parte desse grupo? Aliás, você se sente parte desse grupo?
Em Nova York mais ou menos, não fiquei lá tempo suficiente e morava muito longe, no Uptown, e não havia tantas oportunidades de encontrá-los (e o meu inglês naquele primeiro ano nos Estados Unidos não era dos melhores). Só quando fui morar em Seattle (onde vivem Peter Bagge e Jim Woodring) passei a me sentir parte do grupo. Eu me sentia meio caída de paraquedas no meio desses artistas famosos de Nova York, chegava a ser intimidante.
“Só tínhamos a opção de trabalhar em preto e branco”
Um elemento muito característico de seu trabalho com quadrinhos é o preto e branco. Imagino que esta não seja apenas uma opção estética, mas também financeira. Enfim, qual é a sua relação com o preto e branco? Como você acha que esse elemento contribui para as suas histórias?
Na verdade, originalmente nós só tínhamos a opção de trabalhar em preto e branco. Mas com a prática, posso dizer que toda a alma do meu trabalho está no preto e branco, sou irresistivelmente atraída por esse contraste da ausência de cores. Eu gosto de sua franqueza, sua dureza… E dos desafios estéticos decorrentes dele.
Como você se sente ao reler livros antigos como Meu Diário de Nova York? Aliás, você tem o hábito de reler suas obras mais antigas?
Não, não muito.
Em Meu Diário de Nova York, você apresenta um pouco da sua rotina de trabalho naquela época. Você pode nos contar um pouco sobre suas técnicas e seus materiais de trabalho quando fez esses quadrinhos? E qual é a sua rotina profissional hoje? Você segue alguma rotina específica?
Naquela época eu costumava usar papel Bristol e tinta indiana Pelikon e caneta bico de pena. Mais recentemente passei a usar uma Rapidograph, que eu usava quando estava começando nos quadrinhos, e desenho em cadernos Leporello. Eu tinha uma rotina quando fazia parte de uma oficina de gravura comunitária (desenhos pela manhã, oficina de tarde), mas não mais atualmente.
“Gosto de quadrinhos que buscam reinventar o formato”
O que mais te interessa hoje em termos de quadrinhos, tanto como autora quanto como leitora?
Histórias em quadrinhos criadas por mulheres. Eu gosto quadrinhos/ensaios, quadrinhos mais experimentais, mais desconstruídos, que buscam reinventar o formato.
Qual sua memória mais antiga relacionada aos quadrinhos?
De fazer as comprar longe de casa, em uma cooperativa que parecia um grande galpão. Toda vez que íamos lá a minha mãe me dava um Tintim – havia uma banquinha de histórias em quadrinhos por lá, principalmente de Tintim, se não me engano. Eu obviamente adorava.
Você poderia me dizer o que você mais gostou de ler, assistir e ouvir no momento?
Buru Quartet, de Pramoedya Ananta Toer; Todos os livros da Yoko Tawada; Eveils, de Juliette Mancini (Atrabile); Rave, de Jessica Campbell (D&Q);
Eu amo escutar música eletrônica velha… Daphne Dram, Eliane Radigue, Bernard Parmigiani, Conrad Schnitzler… E também a Laurie Anderson.
Você está trabalhando atualmente em algum projeto específico? Se sim, é algo relacionado a quadrinhos?
Acabei de publicar um livro pela Drawn & Quarterly que é uma espécie de retorno às história em quadrinhos, um grande painel de 144 Páginas. Mas tem toda uma história, autobiográfica também. Chama Time Zone. Para o futuro, não faço ideia.