A quadrinista equatoriana-colombiana Powerpaola vê paralelos entre andar de bicicleta e criar uma história em quadrinhos. Ela diz que as HQs a permitem inventar seu próprio universo, se relacionar com o mundo, estar imersa em suas práticas e se apropriar da própria vida. Da mesma forma, pedalando ela vai aonde quer, conhece o mundo e se conhece dentro dele.
Recém-lançado pela editora Lote 42, com tradução de Nicolás Llano Linares, Todas as bicicletas que eu tive une as duas paixões de Powerpaola. Ela narra em quadrinhos, como diz o título, a relação dela com todas as bicicletas que passaram por sua vida.
“As bicicletas sempre foram minhas grandes companheiras e principalmente nestes últimos anos da minha vida, por isso era algo que insistia em ser desenhado e escrito”, conta a autora sobre as origens de seu mais novo título.
O projeto começou a tomar forma quando Powerpaola contou para a colega de profissão argentina Maitena sobre seus planos para uma HQ sobre suas bicicletas. Como resposta, foi informada de um conto da escritora argentina Cecilia Pavón chamado Todas as Bolsas que eu Tive. Estimulada pela coincidência, ela participou de uma oficina de poesia de Pavón ao longo de 2020.
Todas as bicicletas que eu tive foi produzido aos trancos e barrancos. Ela diz se entendiar com roteiros e lembra que quadrinhos não são sua principal fonte de renda – apesar de fazê-los “para sobreviver emocionalmente”. Então, em meio a vários outros projetos e alguns problemas de saúde, acabou se tornando sua obra mais trabalhosa.
“Não tive rotina, fora encontrar a maneira de fazer o livro e terminá-lo”, lembra a autora. “Estive em várias oficinas de escrita e no final consegui terminá-lo numa residência em Tigre [cidade argentina]. Fui desenhar e escrever sozinha durante uma semana no meio do Delta [encontro dos rios Tigre e Luján] sem internet, somente assim consegui chegar ao fim”.
O resultado final é um livro de 112 páginas que costura as memórias de Powerpaola sobre suas bicicletas, suas moradias e seus relacionamentos. Nômade, ela lembra de pessoas com quem conviveu e se relacionou e de bicicletas usadas por ela em passagens por países como Equador, Argentina, El Salvador, Colômbia e França. Uma ausência de endereço fixo, aliás, muito impactada por sua vida em duas rodas.
“Com certeza foram elas [bicicletas] que me permitiram conhecer profundamente as cidades em que vivi. Termino fazendo um desenho com elas nesse labirinto que é a própria vida”.
Powerpaola conta no livro, por exemplo, a origem de sua primeira bicicleta, que ganhou da mãe em um Natal, quando tinha 11 anos. O presente foi usado para impressionar um grupo de garotos que frequentava um parque de Quito.
Ela lembra da experiência: “Saí para o parque La Carolina com a minha bicicleta e senti que podia trocar de direção e ir ainda mais longe, me perder um pouco pela cidade, fazer o percurso que fazia no ônibus do colégio. Foi maravilhoso experimentar isso. Nunca na minha vida eu tinha ido tão longe sozinha. Comprei umas bolachas deliciosas com chips de chocolate na volta e levei para a minha mãe para que não me desse uma bronca por não ter seguido o combinado inicial, que era ir até o parque”.
São narradas histórias de bicicletas que ela herdou ou ganhou e outras que a acompanharam em inícios, ápices e términos de diferentes relacionamentos. Ela apresenta tramas que refletem o próprio significado das bicicletas em sua vida: “São os dispositivos que permitem me deslocar em total liberdade, me tornar dona de mim, ir aonde eu quero ir, ir quando eu quero ir, o mais parecido com a felicidade e a independência”.
E a autora retratou essas memórias e sentimentos em torno de bicicletas em preto e branco, com usos pontuais de amarelo e vermelho.
“Sempre me proponho usar técnicas diferentes e novas em cada livro, técnicas que tenham relação com a história e a narrativa”, explica a artista. “Fiz este livro todo com tintas preta, amarela e vermelha, algo completamente novo para mim. Queria que fosse como se a bicicleta tivesse pisado uma poça cheia de lama e tivesse desenhado tudo com os pneus”.
Ela diz que até gostaria de fazer uma HQ toda colorida, mas que não consegue imaginar quanto tempo levaria finalizando um projeto do tipo. Sua preferência por publicações mais baratas também pesam (“Quero que um adolescente possa comprar”). Ela ainda atribui o visual da obra à sua influência das HQs underground norte-americanas dos anos 1990.
A obra de Powerpaola dialoga, por exemplo, com os trabalhos da canadense Julie Doucet – publicada pela primeira vez na América do Sul em 2022, pela editora Veneta, com Meu Diário de Nova York – um título também extremamente pessoal e em primeira pessoa, assim como os trabalhos prévios da autora publicados em português, Vírus Tropical (Nemo) e QP (Lote 42). Todas as bicicletas, no entanto, tem ares mais poéticos.
É uma abordagem que também ecoa os atuais interesses da autora como leitora de HQs: “Gosto muito das pessoas que experimentam com a linguagem do comic em todo sentido. Gosto das boas histórias e um desenho que também esteja me contando algo mais, que tenha uma linguagem própria e não se pareça aos demais”.