Entrevistei o quadrinista J.T. Waldman, parceiro do lendário Harvey Pekar (1939-2010) em Não é a Israel que Meus Pais Prometeram. O álbum foi publicado por aqui pela editora Veneta, com tradução de Cris Siqueira. Usei algumas falas desse papo na mais recente edição da minha coluna no blog da Veneta. Recomendo a leitura. Contei sobre a trama do livro, as origens da parceria dos dois autores e as lembranças do ilustrador sobre seu relação com Pekar. Você lê o meu texto clicando aqui. Compartilho agora a íntegra da minha conversa com J.T. Waldman. Saca só:
“A imagem rabugenta que Pekar projetou para o mundo não combina com a minha experiência com ele“
Quero saber sobre a sua relação com histórias em quadrinhos. Qual é a sua memória mais antiga relacionada a histórias em quadrinhos?
A história em quadrinhos que me transformou em um leitor vitalício foi provavelmente Guerras Secretas # 5. Foi um curso intensivo para o universo Marvel e fiquei viciado. Eu também gostava de DC, Jovens Titãs era minha [série] favorita. Por volta dos 10 anos, comecei a criar e desenhar meus próprios personagens e a gastar todo o meu tempo e dinheiro em materiais de arte e quadrinhos.
Você vive na Filadélfia, certo? Você nasceu na Filadélfia?
Sim, terceira geração da Filadélfia.
Você se lembra da primeira vez que ouviu falar no nome do Harvey Pekar? Qual a primeira obra dele que você leu? Você tem um livro preferido dele?
Verdade seja dita, o pôster da adaptação cinematográfica de Anti-Herói Americano foi onde conheci o Harvey. Fui apresentado ao personagem antes do homem. Enquanto crescia, os quadrinhos dele não estavam disponíveis na farmácia local ou promovidos com destaque na loja de quadrinhos do shopping. Acho que o primeiro trabalho dele que li foi The Quitter, que ele fez com Dean Haspiel. Foi quando nos conhecemos pessoalmente, em 2005. Estávamos na Small Press Expo (SPX) nos arredores de Washington DC e ambos divulgávamos nossos livros. Dei a ele um exemplar do meu livro Megillat Esther e saí maravilhado e contente por saber que ele tinha um exemplar do meu trabalho. Achei que seria o fim de tudo.
E como você acabou trabalhando com ele? Como aconteceu a parceria em Não é a Israel que meus pais prometeram? Você pode falar um pouco, por favor, sobre a sua dinâmica de trabalho com o Harvey Pekar?
Colaboramos pela primeira vez em 2007, num ensaio gráfico de quatro páginas sobre o papel do povo judeu nos quadrinhos americanos do século 20 (From Krakow to Krypton). Ele me enviou um roteiro manuscrito e então eu o traduzi em uma sequência de seis painéis por página e os enviei de volta para ele para confirmar que era o que ele queria e então eu arte-finalizava. Foi uma boa colaboração de seis semanas via correio e telefone. Aí, seis meses depois, o Harvey me ligou um dia, eu mal tinha acordado e ele me deixou uma mensagem de voz dizendo que tinha um contrato para um livro e um projeto que seria ‘especialmente adequado para mim’. Me senti ganhando na loteria. Ainda tenho as mensagens de voz que ele me deixou. O roteiro passou por três grandes revisões antes de se tornar o que foi publicado em 2012.
Qual você considera o maior mérito do trabalho do Harvey Pekar? O que foi mais revelador para você sobre o Harvey Pekar ao trabalhar com o Harvey Pekar?
Sempre fui fascinado por seu senso de identidade. Sua voz como autor. Ele simplesmente sabia quem ele era com pura convicção e refletiu essa confiança para mim. Sempre que eu tinha uma dúvida ou dúvida sobre um rascunho ou a direção do layout do livro ele dizia ‘estou com você cara, em 110% do caminho. Basta ser você!’. Quero cultivar em mim o mesmo senso de identidade inabalável de Harvey.
Acho Não é a Israel que meu pais prometeram um livro muito revelador sobre as origens do Harvey Pekar. O que você acha que esse livro representou para ele?
Eu não tenho certeza. Ele estava trabalhando em vários projetos, incluindo este livro, quando morreu. Só posso presumir que ele estava ciente de sua mortalidade e estava focado em seu legado… Nas histórias e ideias que ele se sentiu mais compelido a contar antes de partir.
O que Não é a Israel que meu pais prometeram significou para você? E o que esse livro representa para você hoje, 12 anos após seu lançamento original?
Sendo sincero, os últimos dois anos do projeto foram pesados. Topei este projeto para trabalhar com Harvey. Finalmente encontrei um colaborador e um mentor nos quadrinhos. Ele era o tio que não me ridicularizava por amar quadrinhos, mas me respeitava exatamente por causa disso. Ele foi tão gentil e encorajador comigo. A imagem rabugenta que ele projetou para o mundo não era a minha experiência com aquele homem. E então um dia ele se foi.
No judaísmo temos uma tradição chamada Chevra Kadisha. São os “amigos sagrados” que ficam com um corpo 24 horas por dia, 7 dias por semana, depois da morte, antes do enterro. De 2010 a 2012, quando o livro foi lançado, tive que desenhar meu colaborador morto, diariamente. Joyce (sua viúva) e eu criamos um relacionamento enquanto trabalhávamos juntos no epílogo. Então eu fui um apoio para o luto dela. Pensar nisso tudo me deixa triste. Tive que compartimentar muitos aspectos do livro. O seu significado pessoal e a sua recepção/interpretação pública são para mim universos à parte.
Sobre a sua arte: gostei muito da forma como você fez uso de referências estéticas distintas em função do contexto histórico sobre o qual você e o Harvey estavam conversando. Fiquei pensando o quão desafiador foi isso para você… Foi desafiador?
Obrigado. Estudei história da arte na universidade, então esse aspecto foi provavelmente o mais fácil e divertido para mim, em termos da produção do livro. Eu adoro mídias mistas, então poder brincar com estéticas diferentes evitou que eu ficasse entediado. Também precisei fazer a pesquisa visual, o que é metade da diversão para mim. Eu amo bibliotecas. O Harvey também amava.
E também fiquei pensando que deve ter sido extremamente desafiador condensar uma histórias de milhares de anos como vocês fizeram. Enfim, como foi esse trabalho de editar uma história tão complexa e controversa como vocês fizeram?
O Harvey e o nosso editor, Thomas, eram contadores de histórias eficientes. Eles definiram a estrutura e eu segui em frente. Como eu disse, havia dois roteiros prévios para me basear e eu tinha um registro em vídeo que eventualmente se tornou a longa cena de diálogo na Biblioteca Lee Road, no ato final do livro. Então, de certa forma, foi uma colagem de histórias.
Qual é a sua leitura sobre o que está acontecendo hoje no Oriente Médio?
É horrível e estou com medo pelos meus amigos em Israel. Estou triste pelos palestinos. E estou preocupado com os judeus de todo o mundo com 25 anos ou menos que têm menos contexto para lidar com o aumento do anti-semitismo. São muitos sentimentos complexos e a maioria deles vem com dor de cabeça.
“Deveríamos nos comprometer com as crianças que tentam sobreviver em Israel e na Palestina”
Você diz no livro que acredita em uma solução econômica para os conflitos entre Israel e Palestina. Passados 12 anos do lançamento do livro, você segue pensando da mesma forma?
Pois é, não tenho tanta certeza agora. Olhe só para os grandes protagonistas que estão por aí hoje. Elon, Mark e Jeff não me encorajam muito. Talvez [a solução] passe por um movimento espiritual ou a próxima geração transcendendo digitalmente? É óbvio, as pessoas e os políticos por lá precisam de novas opções. Espero que organizações como A Land for All possam ganhar alguma força, mas a situação é certamente assustadora. A influência dos EUA e da Arábia Saudita e do Irã e da Rússia complica ainda mais as coisas, tudo isto não acontece no vácuo.
Acho que os quadrinhos do Harvey Pekar colaboraram para uma imagem dele como uma pessoa rabugenta e, talvez, pessimista. Confesso que fui surpreendido com o fim do seu livro, com ele me soando otimista e pregando diálogo. Você acha possível otimismo e diálogo dentro da atual realidade? Você consegue apostar qual seria a leitura e o posicionamento do Harvey Pekar em relação aos atuais ataques israelenses à Palestina?
Veja, a atual liderança de ambos os lados está moralmente falida. Tudo se resume a uma pergunta simples. Você quer estar certo ou quer ser feliz? Até que esta questão seja resolvida, o derramamento de sangue vai seguir. Precisamos de algo criativo, não destrutivo. É tão fácil se sentir desesperançoso e simplesmente jogar as mãos para o alto e desistir. Mas uma coisa que trabalhar neste livro com Harvey reafirmou para mim é que a violência e a esperança estão enraizadas nesta terra e já estão por aí há muito tempo. Deveríamos nos comprometer com as crianças que tentam sobreviver em Israel e na Palestina, em um esforço por algo diferente.
Vocês retratam no livro a transformação das posições do Harvey Pekar em relação a Israel. Acho que os últimos meses de ataques israelenses à Palestina tem contribuído para que mais pessoas também mudem seus posicionamentos. Você também tem notado essa tendência? Uma transformação da opinião pública em relação a Israel?
Bem, sim, o antissemitismo é mais visível agora do que foi durante a minha vida. Tem havido uma grande fusão entre o sionismo e o judaísmo na cultura de massa e isso impacta toda a Diáspora Judaica. A guerra atual tem feito com que muitas pessoas façam perguntas sobre como chegamos aqui e, de certa forma, Não é a Israel que meu pais prometeram pode ajudar a contextualizar algumas partes da violência atual. Mas, por outro lado, o livro me parece um pouco desatualizado, pois não aborda o nível atual de antissemitismo global que ocorreu como resultado da guerra na Israel/Palestina. Mas o Harvey se esforçou para aprender sozinho sobre esse assunto e tentar entender mais. Precisamos nos manter informados e fazer perguntas. As pessoas hoje estão procurando coisas para culpar e os judeus, as pessoas LGBT +, nós somos um grande alvo para clickbait de ódio.
Você defende no livro a importância de uma visão aprofundada da história ao se falar sobre Israel e também de se aceitar diferentes pontos de vista. O fluxo de informação hoje é muito rápido, as notícias chegam extremamente fragmentadas e as redes sociais difundem opiniões habitualmente rasas. Como você se informa e busca esse contraste de opiniões sobre o que está acontecendo hoje na Palestina?
Leio a Aljazeera, meu jornal local, o Drudge Report e várias agências de notícias judaicas. E acompanho meus amigos pelas redes sociais.
O que mais te atrai hoje na linguagem das histórias em quadrinhos? Qual aspecto dessa linguagem que você considera mais singular?
A acessibilidade e flexibilidade do formato nunca deixam de me surpreender. Crianças, adolescentes e adultos podem se conectar com eles. Quadrinhos nos permitem estar sozinhos e juntos, criar significados entre as partes e o todo. Não é a singularidade da linguagem dos quadrinhos, mas sim a sua universalidade que adoro.
Você pode recomendar algo que tenha lido, visto ou ouvido recentemente?
Série de TV recente favorita: Scavengers Reign e Extraordinária. Quadrinho recente favorito: Asa Nortuna, de Tom Taylor e Bruno Redondo, e As Muitas Mortes de Laila Star. Álbum novo favorito: Dina Ogun (Orion) ou Kali Uchis (Orquedas). Não vi nenhum filme que me empolgou desde Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo.