No fim da tarde do dia 15 de maio de 2024 me encontrei com o quadrinista francês Matthias Lehmann no Constantino Hotel, no centro de Juiz de Fora (MG). Começamos ali uma entrevista sobre Chumbo, obra assinada por ele e publicada em português pela editora Nemo (com tradução de Fernando Scheibe e Bruno Ferreira Castro). Trata-se de uma saga familiar, parcialmente inspirada nas vivências da família de Lehmann. Grande parte do álbum gira em torno dos movimentos que resultaram no golpe militar de 1964 e suas consequências.
O hotel no qual Lehmann ficou hospedado em Juiz de Fora fica a menos de três quilômetros da antiga sede da 4ª Região Militar. Foi de lá que saíram as tropas lideradas pelo general Olympio Mourão Filho (1900-1972), um dos marcos iniciais do golpe militar de 1964. A iniciativa do general, a mobilização de suas tropas e a ida dele com seus soldados rumo ao Rio de Janeiro estão retratadas nas páginas 130 e 131 de Chumbo.
Também foi ali, na antiga sede da 4ª Região Militar, hoje sede da 4ª Brigada de Infantaria Leve de Montanha do Exército Brasileiro, que vários seguidores juiz-foranos de Jair Bolsonaro se instalaram nos meses seguintes à vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2022. Na mesma época, Lehmann estava entregando aos seus editores franceses a última página de Chumbo. O livro saiu na França pela tradicional editora Casterman no início de 2024. Os editores brasileiros correram para publicar a obra por aqui em abril, no aniversário de 60 anos do golpe.
Lehmann nasceu na França, filho de mãe brasileira, mas passou parte da infância no Brasil, em Belo Horizonte. Ele é sobrinho do escritor e jornalista Roberto Drummond (1933-2002), autor de livros como A Morte de DJ em Paris (1971) e Hilda Furacão (1991). Parte de Chumbo é protagonizado pelo escritor e jornalista Severino Wallace, livremente inspirado no tio famoso do autor, um ativista de esquerda extremamente crítico ao regime militar. Suas ideias e posturas são antagônicas àquelas de seu irmão, Ramires Wallace, inspirado em um tio reacionário e menos famoso do quadrinista.
A trama de Chumbo gira em torno dos irmãos Wallace, mas retrata as idas e vindas políticas do Brasil ao longo do século 20.
“Eu construí uma relação com o Brasil, é um país muito importante para mim, mesmo eu tendo sido criado na França”, me contou Lehmann sobre o ponto de partida da HQ. “Eu precisava de fazer alguma coisa. Eu precisava construir alguma coisa com esse país. E para mim, o melhor jeito de construir alguma coisa era fazendo um quadrinho, porque é isso que eu sei fazer. Foi daí a vontade [de criar Chumbo]. Mas, mais ainda, acho que quando Jair Bolsonaro chegou no governo, ele incentivou uma tendência revisionista da história brasileira e eu tive vontade de abordar esses fatos históricos”.
Lehmann foi ambicioso com Chumbo. Ele estudou sobre a história do Brasil e foi a fundo em suas pesquisas sobre o design e as artes brasileiras. A passagem do tempo no quadrinho é retratada pelas várias transformações estéticas pelas quais o país e suas artes foram passando ao longo das décadas. O álbum impressiona por seus ares grandiosos, em seu retrato de uma saga familiar brasileira, mas também pelos desenhos do autor.
São 368 páginas em preto e branco com traços angulares e jeito de gravura que remetem a Flavio Colin, Robert Crumb, Ziraldo e os irmãos Hernandez da série Love & Rockets.
A minha conversa com Lehmann começou no Hotel Constantino e seguiu em um evento realizado na sede da Aliança Francesa de Juiz de Fora. Compartilho agora a íntegra dessa entrevista. Falamos sobre quadrinhos, política, Brasil, memória, revisionismo histórico e muito mais. Leiam Chumbo, definitivamente, uma das grandes HQs publicadas no Brasil em 2024. Um épico necessário em tempos de conservadorismo crescente. A seguir, a minha conversa com o autor:
“Sou um péssimo leitor de quadrinhos”
Qual a memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?
Boa pergunta! A memória mais antiga… É engraçado, porque eu sei o primeiro filme que eu vi, isso eu sei.
Qual foi?
O Rei e o Pássaro. É um filme animado francês, acho que é dos anos 1950, é um clássico. Eu sei que esse foi o primeiro filme que eu vi, mas o primeiro quadrinho eu não sei, porque tinha muito quadrinho em casa. Tinha Tintim, tinha muito quadrinho francês, franco-belga,…
Mas não precisa ser a primeira coisa que você leu, qual é a sua primeira memória relacionada a quadrinhos?
É difícil dizer, quadrinhos sempre estiveram presentes na minha vida. Talvez tenha sido Mafalda em espanhol, umas daquelas edições pequenininhas da Mafalda, sabe? Eu não tenho certeza, mas deve ser.
O que mais te interessa hoje na linguagem dos quadrinhos? Tanto como leitor, como alguém que faz quadrinhos.
Eu sou um péssimo leitor de quadrinhos. Eu tenho muita dificuldade para ler quadrinhos, porque eu fico olhando… Eu não tenho esse problema com literatura, porque literatura você tem que ler de um ponto A até um ponto B, né? O problema dos quadrinhos é que você pode ficar olhando as imagens durante horas e horas e eu faço isso o tempo todo. Eu não consigo me concentrar na leitura. De vez em quando eu vou pegar um pedaço no meio, vou ler só esse pedaço e depois voltar. De vez em quando eu consigo ler um quadrinho inteiro. O que acho mais interessante é o trabalho de composição das páginas. Não sei como se fala em português, em francês seria découpage. É a narrativa, né? É isso que me interessa mais. E se puder ter um fundo mais construído, mais importante, é ainda melhor, né?
É explícita influência de Flavio Colin e de Robert Crumb no seu trabalho. Você pode falar um pouco sobre a sua relação com esses dois autores?
A última vez que eu vim ao Brasil, há cinco anos, comprei um livro do Colin em uma livraria de Belo Horizonte. Mesmo assim, eu já conhecia, porque teve um época em que um quadrinista francês me apresentou a um site que tinha todos os livros do Colin escaneados. Eu já tinha visto, mas aí, quando vi o livro, comprei.
Acho que temos um ponto em comum porque eu tenho essa influência da gravura e acho que no trabalho dele tem uma influência da gravura. Ao mesmo tempo, ele tenta ter esse desenho muito cartoon, como essa dinâmica de cartoon, é um pouco do que eu quero fazer. O Crumb também. Tem um pouco dessa herança da gravura do século XIX e tudo isso.
“No começo eu preferia o Gilbert Hernandez, depois passei para o Jaime”
O seu desenho, assim como o do Colin, também dialoga com o do Ziraldo. Com os traços retos, tudo meio quadradão…
É, ele também tem essa modernidade.
Mas me refiro também ao trabalho dele como designer. Um aspecto importante de Chumbo é a sua pesquisa relacionada ao design brasileiro.
Ah, sim. Eu tinha comprado um livro, Linha do Tempo do Design Gráfico no Brasil [de Chico Homem de Melo e Elaine Ramos]. É um livro muito bom e esteve sempre ao meu lado enquanto eu estava trabalhando, porque tem todas essas referências. Você pode ver a evolução do design gráfico brasileiro do século 19 até os anos 2000. Isso para marcar época é muito interessante. Como em Chumbo se passam até 10 anos entre cada capítulo, você tem que marcar bem visualmente a época. Eu não queria fazer assim, tipo, você passa um capítulo e tá escrito “10 anos depois…”, sabe? Não, eu acho que o interessante é mostrar as coisas e acreditar na capacidade do leitor, na intuição. Ele vai entender só vendo as coisas. Essa é a parte da narrativa que é interessante. Se você começar a sublinhar tudo, acho que é demais.
Você consegue ver uma unidade para esse design brasileiro? Nessas suas pesquisas, você viu algum elemento em comum que considera característico do design brasileiro?
Certamente o fato de ter influências tão diversas. Seja no design gráfico, no design de modo geral ou na arquitetura, tem aspectos de todas essas pessoas que vieram de outros países. Não sei, acho que é um elemento, um tipo de mistura, as várias influências… Não sei explicar se tem uma especificidade brasileira, mas visualmente acho que tem.
Não só pelo preto e branco, mas pelo aspecto de saga, Chumbo também me lembrou Love & Rockets, principalmente as histórias de Palomar.
Claro. Foi uma influência também. No começo eu preferia o Gilbert Hernandez e depois eu passei a preferir o Jaime Hernandez. Talvez porque o trabalho do Jaime tem toda essa influência dos comics americanos que eu não tenho. Então, no começo, quando vi o trabalho do Jaime eu ficava assim, “ah, não” [fazendo careta]. Depois comecei a perceber como ele é genial, como desenhista e contador de histórias. Eu adoro essa ideia grande de ramificações, todos esses personagens que são ligados uns com os outros. Acho que foi assim que eles criaram, né? Um personagem que conhece o outro e por aí vai evoluindo. Eu sempre tive essa impressão, você cria todos os personagens, eles evoluem e você segue. Não é mais você que tá com um problema, de um certo modo. Acho muito interessante Love & Rockets.
E estava pensando também na forma como você representa o ambiente urbano em Chumbo, na cidade como personagem. Eu vi um diálogo imenso com Berlim, do Jason Lutes. Você já leu?
Não, mas várias pessoas já me falaram sobre isso. Eu quero ler. Eu sei que existe, tenho que ler e nunca li e agora várias pessoas me falaram dessa semelhança e tudo isso. É verdade, parece que tem uma coisa em comum.
“Para mim, o Brasil era Belo Horizonte”
Como é a sua relação com Belo Horizonte? Você demonstra um fascínio muito grande pela cidade no livro.
De certo modo, para mim, o Brasil era Belo Horizonte. Porque quando eu era criança eu ia a Belo Horizonte e Belo Horizonte era uma cidade do futuro. Porque eu morava no subúrbio da França, de Paris, mais no campo. Então eu saia de uma cidadezinha, ia de férias para Belo Horizonte e era fascinante. E quando eu chegava, tinha meu tio que me levava para lá e para cá, o tio João. O tio Roberto, o mais famoso, ele não era muito de cuidar dos sobrinhos, não era muito o estilo dele, ele era mais de tomar um chopp com o meu pai. Mas eu tinha esse tio que falava de todos os lugares de Belo Horizonte. Ele nunca saiu de Belo Horizonte, ele vivia falando: “um dia eu vou embora para o Rio!”. Falava isso, mas nunca conseguia, porque tinha problema de dinheiro o tempo todo. E minha mãe também, sempre, com as lembranças todas. Toda vez que eu ando por Belo Horizonte com a minha mãe passamos por esses lugares onde eles viveram. Então a cidade está muito ligada à história da família. Eu tenho essa consciência das coisas que evoluíram, dos prédios que foram destruídos, de outros que foram construídos e tudo isso. Acho que era natural falar disso. Eu estive em outros lugares do Brasil, mas é diferente, eu não tenho essa relação íntima com o Rio, por exemplo.
É engraçado: Minas Gerais é um dos estados mais antigos do Brasil, mas Belo Horizonte é uma cidade mais nova.
Belo Horizonte é muito nova, mas infelizmente nada é bem conservado. Porque tem um patrimônio arquitetônico, mas acho que não é bem tratado. Atualmente, até a natureza de Belo Horizonte é maltratada. Tem muita história de árvore cortada. Eu vi informações sobre isso recentemente, cortaram um monte de árvores para fazer uma corrida de carro, um negócio completamente louco na época em que estamos vivendo. Eu não tenho intimidade com outras cidades do Brasil e não tenho o fascínio que muitos franceses têm pelo Rio. Eu gosto do Rio, mas não tenho esse fascínio, talvez por não ser uma pessoa de praia. Eu não conheço São Paulo ainda. Imagino parecida com Paris, mas 10 vezes maior.
O seu livro também retrata essa desvalorização da memória arquitetônica. E hoje, ao longo dos anos do Bolsonaro na presidência, temos encarado um revisionismo histórico que diz muito respeito à falta de preservação da memória. Tem um diálogo aí, no seu livro, uma metáfora sobre o passado que não é preservado.
É verdade. Eu não tinha pensado nisso, mas é verdade. Tem também uma coisa muito europeia, muito francesa, nessa questão do patrimônio, da preservação de tudo. Aqui isso não existe muito, né? Não é incentivado do mesmo jeito. Talvez porque o Brasil é um país muito novo? E também com preocupações sociais e econômicas bem diferentes da França. Não sei.
[A partir daqui, a conversa ocorreu na sede da Aliança Francesa de Juiz de Fora]
“Eu queria concentrar o Brasil dentro de um livro”
Qual foi o ponto de partida de Chumbo? Quando você decidiu investir nesse livro e contar a história apresentada nele?
Eu já tinha esse projeto na cabeça há muito tempo. Tipo, 15 anos atrás eu já tinha a ideia de contar essa história, com dois irmãos de uma família brasileira que são mais ou menos os personagens mais importantes da história, os personagens centrais. Eu tinha esse projeto, mas aí eu pensava, “bom, eu não vou fazer isso agora porque vai ser muito trabalho, muito trabalho de documentação”. Eu hesitei. Acho que o que criou a necessidade, talvez tenha sido o fato da minha ligação com o Brasil ser a minha família, a família da minha mãe – a minha mãe é brasileira, é mineira, aliás. Como o pessoal da minha família envelheceu e faleceu, com o tempo, despertou o sentimento.
Eu construí uma relação com o Brasil, é um país muito importante para mim, mesmo eu tendo sido criado na França. Para a minha parte brasileira era muito importante, eu precisava de fazer alguma coisa. Eu precisava construir alguma coisa com esse país. E para mim, o melhor jeito de construir alguma coisa era fazendo um quadrinho, porque é isso que eu sei fazer. Foi daí a vontade. Mas, mais ainda, acho que quando Jair Bolsonaro chegou no governo, ele incentivou uma tendência revisionista da história brasileira e eu tive vontade de abordar esses fatos históricos.
Também havia uma vontade de mostrar para um público francês que não conhece muito bem essa parte da história do Brasil. Os franceses têm uma imagem muito “exótica”, vamos dizer assim, do Brasil. A parte mais sombria eles não conhecem.
Ainda sobre esse começo, você pode falar um pouco sobre as suas pesquisas? Não só sobre a história do Brasil, mas também sobre o design brasileiro. Você já falou, por exemplo, sobre a importância dos livros do Elio Gaspari para você.
Eu queria concentrar o Brasil dentro de um livro, de certo modo. Era muita coisa que eu queria incluir, fotos históricas e tudo isso. Precisei pesquisar muito a história, comecei, talvez, pelo Elio Gaspari e pela Heloísa Murgel Starling, com quem eu vou encontrar em um bate-papo na livraria em Belo Horizonte. Ela é autora de Os Senhores das Gerais, um livro muito importante para a produção de Chumbo. Cada vez que eu lia um livro sobre a história, esse livro falava de um outro livro. E é assim que funciona. Chegava uma hora em que eu tinha que escolher o que não usar, porque eu estava acumulando um tanto de coisa.
E era complicado, né? Porque eu estava na França nesse momento, então eu tinha que encomendar uns livros do Brasil ou baixar os PDF na internet, tudo isso era complicado, depois tinha que ler… Teve uma hora que pensei, “bom, pronto, eu não posso mais acumular tanto”. E tem uma hora que, quando você leu dez livros, as coisas se corroboram e você não precisa mais acumular informações. Além do mais, em um quadrinho que é uma ficção, você não precisa colocar tudo. E como o quadrinho também é muito visual (e eu acho que é isso que é interessante), com o aspecto visual do quadrinho você pode ter uma uma leitura muito intuitiva do que você vê.
Vendo as páginas, você entende um monte de coisa que não precisa ser ressaltada pelo texto. Eu pesquisei muitas fotos antigas de Belo Horizonte, porque Belo Horizonte é o cenário principal da história. Pesquisei fotos antigas, a arquitetura e também o design gráfico. Tem o livro Linha do Tempo do Design Gráfico Brasileiro, não dá mais para achar porque a editora, Cosac & Naif, não existe mais. É um livro feito por dois designers, Chico Homem de Melo e Eliana Ramos, e é muito interessante, porque você vê toda a evolução do design gráfico brasileiro, desde o século 19 até os anos 2000. Esse livro esteve sempre perto de mim enquanto eu trabalhava, porque tinha um monte de ideias, de coisas, que usei para marcar o tempo. Quando eu queria fazer uma um momento da história que acontece nos anos 1970, achei que seria interessante usar uma mesma estética dentro das páginas.
Chumbo começa nos anos 1920 e 1930 e chega até os anos 2000. Você falou dessa ambição de concentrar o Brasil dentro do livro, algo muito grandioso. Como foi o processo de decupar e desenhar tudo isso? Você chegou a fechar um roteiro? Como foi a etapa de sentar e fazer?
Na verdade, eu pesquisei, escrevi, desenhei e fiz tudo ao mesmo tempo. Tinha uma urgência, porque eu tinha que fornecer as páginas para editora em tal data. E na verdade eu não respeitei os prazos, mas, enfim, eu tinha que entregar as páginas. Por causa dessa urgência, eu não parei para pensar muito, só fiz. E foi assim que o livro se criou. Não foi espontâneo, seria falso dizer isso, porque houve muito trabalho e muita reflexão, mas essa reflexão aconteceu muito rapidamente.
“Para Jair Bolsonaro a ditadura militar é uma referência absoluta”
Apesar de ser uma saga familiar, Belo Horizonte é não apenas uma cenário, mas também um personagem, assim como Juiz de Fora e Minas Gerais. O que Minas Gerais representa para você? Como foi esse exercício de revisitar suas memórias e representar no livro o que Minas Gerais representa para você?
Quando eu era criança, para mim, o Brasil era Belo Horizonte. Eu morava no subúrbio de Paris, mas em uma cidade muito pequena, no meio do campo. Belo Horizonte era a cidade do futuro. Tinha aqueles prédios grandes e tudo isso. Eu tinha essa relação íntima com o Belo Horizonte também porque eu ficava andando com o meu tio nas ruas e ele me explicava o que já tinha existido em cada lugar, o que aconteceu com a família em tal lugar. A minha família era muito ligada a vários lugares de Belo Horizonte, assim como do interior também, como Itabira. Itabira vocês devem conhecer, né? Porque é a cidade do Carlos Drummond de Andrade – que Inclusive tem uma ligação familiar com o meu avô, não sei exatamente, acho que é um tipo um primo afastado, alguma coisa assim. Lá tem muito Drummond, para todo lado (risos)
O livro acaba antes da onda reacionária recente pela qual o Brasil passou. O quanto estudar, pensar, escrever sobre o Brasil do passado te fez pensar sobre o Brasil do presente?
Quando eu estava trabalhando nesse livro, estava seguindo a atualidade do Brasil. Péssima, né? Eu acabei as últimas páginas no momento da tentativa de golpe de janeiro [de 2023], logo depois das eleições. Isso tudo estava muito presente. E também, as pessoas na França falavam comigo, de um certo modo elas estavam entendendo melhor a história do Brasil lendo o livro, fazendo as ramificações entre a história da ditadura e do bolsonarismo – porque para Jair Bolsonaro a ditadura militar é uma referência absoluta.
É claro, eu queria fazer essa ligação entre as coisas, mas também vejo essa reflexão sobre o autoritarismo como uma coisa mais geral, não somente no Brasil, mas para todo lado. Você sabe que na Europa está tendo uma tendência muito forte nessa direção atualmente. Também pensei nisso, naquele momento, mas a verdade é que a história do Brasil, a história direta, os acontecimentos recentes do Brasil, estão muito presentes.
Como foi o retorno que você teve dos seus leitores franceses sobre Chumbo? O quanto essa história foi uma novidade para eles?
Foi uma novidade. Todo mundo que leu o livro falou comigo sobre o Brasil, do tanto que eles conheceram melhor o Brasil. Disseram que queriam aprender mais coisas sobre o país, acho que os franceses não têm um conhecimento muito grande da história brasileira. Então esse livro, talvez, ajudou nesse sentido. Lá na França também teve muito muito artigo, muita imprensa e rádio, tudo isso, houve um interesse muito forte pelo livro. Eu já tive um pouco disso com outros livros, mas não nesse ponto.
E o livro é sobre a história do Brasil, mas também sobre as artes brasileiras. O quanto você adequou o seu trabalho, o seu traço a uma “estética brasileira”? Se é que existe algo como uma “estética brasileira”.
Eu não sei se tive consciência dessa coisa, mas acho que eu estava tão preocupado com todas essas coisas do Brasil, eu li tantas coisas que de certo modo isso se infiltrou no trabalho. Eu não decidi: “vou fazer um desenho especificamente brasileiro”. Na França as pessoas acharam até engraçado, eu fazer um quadrinho sobre o Brasil em preto e branco. Porque existe essa imagem muito colorida do Brasil. Eu não queria fazer um livro colorido sobre o Brasil, eu queria fazer um livro em preto e branco. Não sei se é o caso, mas se dá para ver a influência da estética brasileira no meu trabalho, é ótimo, eu fico feliz. Mas eu acho que eu não pensei, “eu vou fazer isso”.
É engraçado, porque o Brasil tem uma escola muito forte de humor e quadrinho underground e o preto e branco acaba sendo um pouco em comum entre essas duas vertentes. Estou pensando aqui em Laerte, Angeli, Ziraldo… E o preto e branco é algo marcante no seu trabalho, não apenas em Chumbo.
Isso é uma influência americana, né? Tanto para mim quanto para todas essas pessoas que você mencionou. Teve um impacto muito grande nessa geração de autores brasileiros. Para mim teve o Robert Crumb, uma referência absoluta, mas teve também toda a geração dos anos 1990 de quadrinistas independentes americanos. Teve a Julie Doucet, do Canadá. Teve o Daniel Clowes – que também não fica só no preto e branco. Teve o Charles Burns também, uma grande referência.
“Se o livro não fosse publicado no Brasil, ele não estaria completo”
Você começou com zines, né? Você está falando de pessoas que também começaram com publicações independentes, marcadas principalmente pelo preto e branco.
É, tem uma razão muito básica: você pode fazer fotocópia em preto e branco porque é mais barato. Quando comecei a fazer fanzine, eu tinha uns 14 anos. Era o meu tio que fazia as fotocópias no trabalho dele… Discretamente, porque ele não era autorizado a fazer. Eram fotocópias de qualidade muito ruim, aliás. Tinha esse espírito punk, qualquer um pode fazer. Quando você começa a trabalhar com cores, você precisa de uma gráfica e precisa de um material de um pouco mais de qualidade.
Chumbo saiu pela Casterman na França e aqui no Brasil pela Nemo, a repercussão é imensa nos dois países e agora você é um dos convidados do FIQ de 2024. O que significa para você esse retorno e estar lançando esse livro aqui no Brasil?
Bom, para mim é muito importante. Se o livro não fosse traduzido e publicado no Brasil, ele não estaria completo. De certo modo, eu escrevi o livro em francês, mas pensava em português. Os tradutores fizeram um trabalho tremendo, o trabalho inverso do meu, para achar a versão brasileira. Para mim era muito importante, mas eu tinha muito apreensão também, porque eu pensei, “estou chegando aí, falando da história de um país que não é o meu, será que eu sou legítimo? Será que as pessoas vão perguntar ‘quem é esse francês aí que veio falar do nosso país?'”. Parece que a recepção é muito boa, então eu estou feliz. Para mim é muito importante.
Você pode falar um pouco mais, por favor, sobre essas suas preocupações em relação a ser um cidadão francês fazendo uma obra sobre o Brasil?
Quando você tem uma dupla nacionalidade, você sempre vive com esse complexo. É claro, eu nasci e cresci na França, me formei na França, fiz minha carreira na França e tudo isso, mas mesmo assim, sempre me senti diferente. Quando eu estava na escola, quando eu era criança, eu não me sentia totalmente igual aos meus amiguinhos, porque lá em casa a gente falava português. E também tinha uma saudade do Brasil que a minha a minha mãe transmitiu para mim, para as minhas irmãs, mesmo sem viver no país. Eu sempre me senti diferente. Eu sou francês, tudo bem, mas tenho um lado brasileiro. Eu queria desenvolver tudo isso, mas sempre com esse medo de não ser considerado como verdadeiramente brasileiro. É um sentimento que existia para tudo, nesse projeto também.
É por isso também que eu li um tanto de coisa, queria realmente prestar muita atenção, para não cometer erros históricos. Aliás, eu cometi um erro, um erro que está presente na primeira versão da edição francesa. Quando o livro saiu, a minha mãe leu, ela disse que estava ótimo, “mas você desenhou um orelhão em 1964 e o orelhão só surge em 1972”. Aí, nas edições seguintes, eu modifiquei. Na versão brasileira não tem orelhão nessa cena – tem orelhão em outras cenas, mas nessa não. Espero ter sido o meu único erro histórico. Historiadores brasileiros que leram, felizmente, acharam o livro bom. Dois historiadores franceses que escrevem muito sobre o Brasil leram e acharam ótimo. Agora estou aliviado (risos).
“Só teria 150 páginas…”
Eu quero saber sobre a recepção da sua família. Como foi para eles quando você contou que estava escrevendo um livro sobre eles e depois vendo o livro publicado? Imagino que nem todo mundo se sente particularmente à vontade se vendo retratado…
Nem toda a minha família estava sabendo [sobre o livro]. Minha mãe, meu pai e as minhas irmãs tudo bem… A minha mãe de vez em quando vinha, olhava umas páginas e falava: “ah, isso é a Consuelo, a minha irmã, isso é o João”. Agora, o pai da família, para mim, é uma versão fantasma do meu avô, que eu não conheci, porque ele morreu quando a minha mãe tinha sete anos. Quando ela leu, falou, “ah, não, o meu pai não era assim”. Eu sei que tem uns personagens… Por exemplo, um dos irmãos, Ramires, ele não tem uma boa imagem, ele é inspirado em um tio meu, então acho que certas pessoas da minha família que vão achar ruim. Por enquanto eu não falei sobre isso com elas. Eu tenho uma tia que mora em Nova York e ainda não tive coragem de mandar o livro para ela (risos) Eu não sei, eu não sei o que vai acontecer.
Acho que você não precisa se preocupar, a repercussão do livro é muito limitada, não tem ninguém falando sobre ele, não está saindo em lugar nenhum, ela não vai ficar sabendo (risos).
Por enquanto ele não foi publicado nos Estados Unidos, mas vai ser no ano que vem. Então vou ter que falar com a minha tia (risos)
E qual foi a reação dos seus editores quando você propôs esse projeto? Um livro grande e caro, ambientado no Brasil…
Eles tinham muita confiança. Na verdade, quando assinei o contrato, ele só teria 150 páginas. Depois fiz 200 páginas, depois 300 e no final 360. Eles falavam, “está tudo bem”. Eles me deixaram fazer o que eu queria, com muita confiança. Eles queriam publicar o livro na França na época das eleições presidenciais brasileiras, mas não foi possível, não deu tempo.
É injusto perguntar agora sobre os seus próximos projetos em meio ao lançamento desse livro novo por aqui, mas você tem planos de voltar a falar sobre o Brasil em outras obras?
Pode ser, mas por enquanto os meus projetos são bem franceses, bem parisienses, no subúrbio parisiense, bem diferente de Chumbo. Mas quem sabe?