Assim que cheguei aqui em Londres, um dos quadrinhos ocupando lugar de destaque nas vitrines das comicshops era Neurocomic. Mas confesso só ter parado pra prestar atenção na obra depois de ver ela sendo recomendada por acadêmicos e pela Wired, já em abril. Publicado pela editora londrina Nobrow, o gibi é assinado pelos neurocientistas Hana Ros e Matteo Farinella. Fiz uma entrevista imensa com a dupla, parte dela foi publicada na edição de julho da Galileu. Conversamos sobre a relação entre memória e a linguagem dos quadrinhos, a possibilidade de trabalhos científicos serem apresentados como graphic novels e a genialidade de Chris Ware. Segue o meu texto pra revista e a íntegra da nossa conversa:
Cérebro em quadrinhos
Criada por dois neurocientistas, a história em quadrinhos Neurocomic descreve a jornada de um homem dentro da sua própria mente
Ambos possuem pós-doutorado na área de neurociência e são pesquisadores conceituados pelas Universidades de Londres e Yale. Mas, na sua última obra, a croata Hana Ros e o italiano Matteo Farinella trocaram a tradicional “introdução, metodologia e conclusão” dos trabalhos acadêmicos por ilustrações sobre “florestas de neurônios e castelos da ilusão”. O resultado é Neurocomic, história em quadrinhos lançada na Inglaterra no final de 2013 (ainda não está previsto lançamento no Brasil). A ideia é explicar de maneira acessível princípios básicos do funcionamento do cérebro. GALILEU conversou com os autores (ambos trabalharam no roteiro e as ilustrações são de Farinella), que falaram sobre a relação entre a formação da nossa memória e a linguagem dos quadrinhos.
Qual a origem do livro? Como vocês tiveram a ideia de transformar teorias e conceitos de neurologia em quadrinhos?
Matteo: Eu sempre desenhei, mesmo quando decidi estudar temas cientificos, então encontrar uma forma de combinar essas minhas duas paixões sempre foi um dos meus objetivos. Particularmente eu gosto dos quadrinhos por eles serem tão acessíveis e ao mesmo tempo tão poderosos em expressar ideias complexas. Quando conheci a Hana, um neurocientista interessada em narrativas e comunicação científica, logo começamos a falar em um quadrinho sobre o cérebro.
Hana: Eu sou fascinada por arte, mesmo sempre tendo trabalhado como neurocientista. Quando trabalhava apenas com ciência, eu sentia que algo estava faltando em minha vida, algumas coisa que a ciência não podia me satisfazer por completo. Pessoalmente, preciso de arte para ter equilíbrio e tive sorte de conhecer o Mattero, que me apresentou a rota para esse mundo. Foi um caminho natural combinar nossas paixões por arte e ciência e trabalhar junto na criação do livro.
O que torna o cérebro um cenário tão interessantes para jornadas como a de Alice no País das Maravilhas?
Matteo: O cérebro está no cerne da nossa própria existência e ainda há muita coisa sobre ele que não compreendemos. É um tipo de fronteira final do conhecimento: um território não explorado onde ainda podemos ter esperança de encontrar respostas para todas as nossas dúvidas. Acho que por isso somos tão atraídos por ele e é o que faz o cenário ideal para aventuras épicas.
Hana: Eu concordo com o Matteo. O fato de não entendermos o cérebro e dele ser como uma caixa preta mágica é o que o torna o cenário ideal para aventuras de ficção. É o lugar onde nossa imaginação pode ser selvagem, onde não encontramos regras e torna tudo possível. Para mim essa é toda a graça da ficção, um sentimento muito libertador, sem qualquer confinamento para o personagens e suas aventuras. E onde mais poderia ser mais fantático que o cérebro? Talvez no espaço…mas não qualquer conhecimento sobre esse assunto, então seria impossível escrever um livro ambientado lá!
Vocês acham possível vermos trabalhos acadêmicos sendo apresentados como quadrinhos em um futuro próximo?
Matteo: Esse é um dos meus sonhos. Há alguns anos eu achava impossível, mas hoje sou mais esperançoso. Os quadrinhos se tornaram um meio respeitado e há uma pressão crescente para tornar pesquisas mais abertas e acessíveis. Acho que o quadrinho pode ser o formato ideal, mas talvez não em um futuro próximo, ainda há um trabalho imenso para ser feito em ambos os frontes.
Hana: Eu acho que os quadrinhos têm a vantagem de oferecer algo diferente do texto acadêmico – como paixão, alegreia e emoção. No entanto, não acho que eles irão, ou deverão, substituir a pesquisa acadêmica. É necessário ter ambos servindo para seus respectivos propósitos. Desculpa, estamos lutando contra estereótipos outra vez, eu estou sendo a pragmática realista e o Matteo o idealista sonhador.
Quando vocês começaram a produção do livro quais artistas tinham como referência?
Matteo: Mais do que quadrinhos eu queria ter como referência os grandes ilustradores científicos do passado: Fritz Kahn, Ernst Haeckel, Ramon y Cajal e Leonardo Da Vinci. Esses polímatos sempre foram de grande inspiração para mim, eles provaram que a arte tem o que acrescentar à ciência, não precisa ser uma simples ilustração. Também estava pensando em outras histórias clássicas de “jornadas”, como ‘A Odisséria’, ‘A Divina Comédia’ e ‘Alice no País das Maravilhas’ (como você lembrou). De alguma forma, eles são todos “livros didáticos” desfarçados de aventuras da ficção. Sei que podem parecer referências muito pomposas para um humilde quadrinho! Há ainda tantos cartunistas que eu amo, principalmente autores norte-americanos, é impossível listar todos eles.
Hana: Sou muito nova nesse mundo de quadrinhos e nunca tive ninguém em particular como referência. O que me inspira (sem soar pretenciosa e pedante), é a própria natureza. Não cheguei a esse projeto com o objetivo de escrever um quadrinho, vim de outra direção: de olha a ciência e o cérebro todos os dias e saber que existiam muitas coisas para me inspirar. Depois, quando conheci o Matteo e descobri seu talento para ilustração, tive certeza que a forma ideal de arte ideal para responder minha curiosidade e expressar minha imaginação seria em quadrinhos. No final, acho que o Matteo se tornou minha referência e sou muito grata a ele pela oportunidade.
Qual público vocês tinham em mente quando começaram a criar a hq?
Matteo: Eu queria que o livro fosse o mais acessível o possível, então não estava escrevendo para ninguém em particular. Esperava que o livro pudesse ser aproveitado por pessoas diferentes e de várias formas. Talvez alguns conceitos sejam muito complexos para jovens leitores, mas espero que o fator estético atraia a atenção deles e estimule a procurar por mais informações. Já os profissionais da ciência provavelmente não vão aprender nada novo, mas eles podem apreciar ver o assunto representado de uma forma diferente.
Hana: Eu preciso ser honesta (mesmo que pareça um pouco cômodo da minha parte), mas nunca pensei em quem poderia ler esse livro. Era algo que eu queria fazer para mim, como uma forma de expressar coisas que estavam presas na minha cabeça, e era realmente uma experiência minha e do Matteo – era bastante experimental (é o primeiro desse tipo), então não sabíamos se iria funcionar. Então nunca presumi que um determinado público iria ler. Ainda fico surpresa pela quantidade de pessoas que gostam do livro, como um garoto de 8 anos que conheço.
E que tipo de retorno vocês tiveram até agora?
Matteo: O feedback de não-cientistas tem sido extremamente positivo, o que é provavelmente o mais importante para mim. Cientistas podem ser bastante céticos em relação a simplificações, mas foi enorme a aceitação de todos que conheço. Talvez a Hana possa dizer melhor, já que ela ainda trabalha com pesquisa científica…
Hana: Eu tinha expectativas muito baixas, então foi uma surpresa quando especialistas e não-cientistas mostraram interesse genuíno e o sentimento é gratificante. Claro que há algumas exceções, como cientistas que acham perda de tempo estar fazendo qualquer outra coisa além de ciência, mas não fá pra agradar a todos. Pelo menos estou bastante feliz por ter seguido minhas intuições.
Há muitos formatos, enredos e invoções introduzidos recentemente no meio dos quadrinhos. O que vocês acham que torna essa mídia tão especial?
Matteo: Eu acho que os quadrinhos são especiais pois eles refletem a forma como pensamos. Como o Scott McCloud disse há mais de 20 anos, ler um quadrinho exige muito tanto do escritor quanto do leitor (interpretar símbolos, fazer conexões, criar movimentos e sons). Eu sinto que os nossos cérebros estão de alguma forma mais conectados com os quadrinhos do que qualquer outra mídia e talvez isso torne o formato tão receptivo a inovações, tão apto a representar ideias complexas e não-lineares, como a ciência. No entanto isso é pura especulação, quero deixar claro que não estou falando como um cientista, mas como um fã de quadrinho!.
Hana: O que amo nos quadrinhos é o fato de você poder gastar o tempo que quiser em determinadas partes, dependendo de você estar gostando ou não. O tempo investido está por conta do leitor e eu gosto de me fixar em alguns quadros durante mais tempo do que em outros. Gosto de prestar atenção nos detalhes – como nas unhas de algum personagem, no gramado no canto da página ou na luz de uma lâmpada – e junto com a possibilidade de ir e voltar em determinada páginas e nunca me esquecer daquela conteúdo. É o que amo nos quadrinhos. Eles não existem para serem apreciados apenas pela narrativa, mas também degustados visualmente.
Vocês têm planos para uma continuação?
Matteo: Os estudos do cérebro estão longe de estarem completos e cobrimos apenas alguns conceitos básicos em Neurocomic, uma pequena fração do que é conhecido. As possibilidades para continuações são basicamente infinitas. Estivemos conversando sobre o assunto, mas como também estamos ocupados com outros projetos, ainda não definimos nenhum rumo específico…
Hana: Claro que vai existir uma continuação Matteo (!), há muitas coisas legais que podemos explorar e estou muito empolgada para isso, é só uma questão de tempo (é claro que vou convencer o Matteo, não se preocupem, leitores).
Em 2013 eu entrevistei o Chris Ware e conversamos bastante sobre a relação entre quadrinhos e memórias. Ele me disse: “Acho que o potencial dos quadrinhos para capturar o fluxo e refluxo da consciência em toda sua complexidade visual e linguística foi muito pouco explorado, principalmente por eu achar que histórias em quadrinhos são por definição uma arte da memória”. O que vocês acham dessa definição dele?
Matteo: Eu amo essa pergunta pois o Chris Ware é um dos meus autores favoritos (e Building Stories provavelmente é o meu quadrinho preferido). Não citei ele como referência simplesmente por não achar que está explícito no meu estilo, mas a primeira vez que conheci seu trabalho eu abri a minha mente para o potencial real dos quadrinhos. Talvez tenha sido a primeira vez que considerei que quadrinhos pudessem ser o formato ideal para falar de ciência. Acho que o trabalho do Chris Ware é o que melhor expressa o que quis dizer quando comentei que “quadrinhos refletem a forma como pensamos”. Concordo plenamente com o que ele disse sobre memória, mas eu estenderia para toda a nossa vida: a forma como percebemos a realidade não é como uma sequência linear de eventos de um filme, mas um confusão repleta de camadas que mesclam presente, passado, futuro, memória e expetativas. Qualquer chance que tenhamos de representar isso de forma fidedigna, acho que estão nos quadrinhos a nossa melhor oportunidade.
Hana: Estou gostando bastante dessa entrevista e das suas questões reflexivas, elas me forçam a ir longe e pensar nas coisas de forma ainda mais profunda. É uma pergunta bastante filosófica e eu teria de escrever um ensaio para responder de forma eficaz. Mas gostaria de pensar algumas algumas coisas, o que talvez esclareça a forma como vejo o assunto (e depois vocês interpretam a resposta como quiserem!). Quando era criança, eu jamais iria ler um livro na sequência determinada pelo autor: eu lia o começo, depois pulava pro fim e então ia de trás pra frente, capítulo por capítulo, tentando criar quebra-cabeças pra eu resolver (como “quem é Mildred?” ou “como eles foram parar no Alaska?”). Pra mim era mais pelo momento do que pela construção, e é exatamente por isso que acho Building Stories tão atraente. Ele dá ao leitor o poder de determinar suas própria sequência. Se eu tivesse esse livro pra ler quando era criança, as pessoas não teriam achado que eu sou completamente louca (ou ainda sou?). A forma como os quadrinhos nos fornecem fragmentos é similar à forma como construímos nossas memórias e também por esse motivo eu amo fotografia. É a transitoriedade e a disordem dos quadrinhos que me conectam com eles. Então, respondendo à sua pergunta, sim, eu acredito que os quadrinhos podem “capturar o fluxo e refluxo da consciência em toda sua complexidade visual e linguística”.