Bati um papo com o Bruno Maron sobre o lançamento de Dinâmica de Bruto, a primeira coletânea de tiras de seu blog homônimo. Nossa conversa resultou nessa matéria aqui, publicada hoje na Ilustrada da Folha de São Paulo. Recomendo muitíssimo o livro do Maron, primeira obra editada pelo selo Maria Nanquim da Luciana Foraciepe, e também a leitura da entrevista. Além do humor autodepreciativo do autor, suas falas são algumas das mais lúcidas que já vi sobre obras cômicas produzidas hoje no Brasil e em relação ao mundo das publicações independentes nacionais. Taí:
O primeiro post do Dinâmica de Bruto foi dia 8 de maio de 2010. Agora, quase cinco anos depois, ele está ganhando sua primeira coletânea. Você lembra se nesse início do blog você cogitou que uma dia, em um futuro próximo, ele poderia ganhar uma versão impressa?
Sequer imaginava que alguém leria aquilo. Quando vi que existiam mais de 50 pessoas acompanhando meu trabalho, pensei: “é, tem público pra tudo no Brasil”.
Numa das primeiras vezes que conversei com o Ricardo Coimbra, ele me disse que achava “que talvez o blog de tirinha seja a banda de garagem de hoje”. Esses trabalhos impressos recentes de vocês representam de alguma forma essa saída da garagem?
A pergunta que eu me faço hoje é: será que é tão importante sair da garagem? Grandes desenhistas, músicos, cineastas e pensadores estão por aí fazendo coisas incríveis sem grande alarde, sem grandes estratégias de difusão. Considerando, logicamente, que sair da garagem é dar um passo rumo à consagração popular. No caso do meu quadrinho, que nasceu na web, penso que o livro impresso é muito mais uma demonstração de carinho para aqueles que querem guardar o trabalho em um suporte físico do que um marco civil de relevância artística.
Essa primeira coletânea reúne os três primeiros anos de tiras suas. O quanto você acha que mudou, tanto no seu estilo de desenho quanto nos temas que você aborda, ao longo desses três anos de trabalhos presentes no livro?
No início eu sentia muita vergonha do meu desenho. Era tão inseguro que fazia umas colagens com pedaços de desenhos bizarros que eu colecionava. Me soltei completamente e perdi a vergonha de assumir pra mim mesmo e pros outros que meu desenho é ruim. Com o texto e os temas a coisa é mais esquizofrênica, pois sempre forcei a barra pra parecer inteligente e culto, meus dois grandes sonhos da vida. Veja bem, eu não quero SER inteligente e culto, eu quero PARECER, é uma ambição tão rasa, tão classe-média, que me proporciona um salvo-conduto jocoso para aquelas tomadas de consciência que estalam de vez em quando. Penso: “tô forçando a barra demais ~pausa dramática~ ótimo, é por aí mesmo”.
E como foi a dinâmica da edição do livro com a Luciana Foraciepe? Você comentou no blog que a falta de padrão no formato das suas tiras acabou afetando bastante a versão final do livro, certo?
Umas das ideias que surgiram no processo foi a de desenhar o título das tirinhas pra equacionar o espaço, já que os títulos geralmente são digitados na fonte do blog. Isso deu uma levantada surpreendente no visual do livro. A Luciana tem um faro aguçado pra edição de quadrinhos.
Você já comentou em outras entrevistas que não costuma ter muita disposição para correr atrás de impressão, que a internet é ideia pra praticidade do seu trabalho. Nos últimos anos você publicou o Manual de Sobrevivência dos Tímidos, esteve presente na Xula e agora lança a coletânea. Tá mudando a sua relação com a impressão dos seus trabalhos?
Mudou sim, especialmente depois do Manual e da Xula. Olhando pro material impresso, eu vi que vale muito a pena todo aquele esforço.
Alguns quadrinhos publicados no livro são de 2010. Não parece tanto tempo assim, mas em cinco anos houve uma transformação crescente em relação ao que é politicamente correto ou não e até onde o humor pode ir. Os debates relacionados a esses assuntos interferiram nos seus trabalhos? Você costuma pensar duas vezes antes de publicar algo pensando se pode ofender alguém?
Você observou bem, houve uma mudança considerável nos debates sobre humor. Tentando analisar o Brasil, me parece que o modus operandi predatório da construção (e destruição) do país ao longo dos séculos fez saltar um senso missionário de reparação social perfeitamente justificável. Mas claro, é normal que um país com tradição de pensamento macropolítico fomente uma percepção muito binária em qualquer área da ação humana, fica uma tendência irresistível a funcionar na clave da adesão integral ou da negação sumária. Ponto pro mau humor. MInha perceção de “sacanear” não se restringe à aniquilação completa de nada, é muito mais um afeto polissêmico – flertando com sentimentos difusos, da repelência à aproximação – do que um exercício de maniqueísmo. Como não quero arrumar confusão com ninguém, sigo firme no projeto de ser a pessoa mais chapa branca possível, fazendo um humor sem glúten.
Não que todo mundo seja lido/ouvido, mas todo mundo tem voz graças à internet. Isso também resultou numa cobrança por engajamento, principalmente de artistas, algo que você costuma criticar em alguns trabalhos. Você sente essa cobrança?
Não sinto cobrança justamente porque não entrei nessa dança macabra da arte engajada. O Michel Laub, colunista da Folha que eu admiro muito, disse com precisão: “há algo de errado quando uma obra de arte diz o mesmo que um anúncio publicitário”. Tudo indica que a pedra de toque da arte contemporânea é a declaração de intenções puras, para que o artista possa “tunar” a autoridade moral. Deleuze já traçava um paralelo interessante entre ciência, filosofia e arte, onde a ciência se encarrega de criar funções, a filosofia de criar conceitos e a arte de criar sensações. É claro que a arte pode ser funcional e engajada, mas essa arte servil não me interessa tanto. Prefiro a arte que cria sensações e eventualmente evoca sentimentos menos nobres, garantindo espaço para ambiguidades e dúvidas em relação à vontade de verdade que se insinua pro ser humano incessantemente.
Já vi o Ricardo Coimbra comentando como algumas pessoas interpretam o trabalho dele como sendo de alguém “de direita”. A partir do momento que vocês publicam seus quadrinhos, perdem o controle em relação à leitura que as pessoas fazem deles. Você costuma prestar atenção em relação a como seus leitores interpretam seus trabalhos? Te incomoda ser lido de alguma forma muito distinta em relação àquilo que você originalmente se propôs a tratar?
Já vi gente muito chateada com o que eu fiz, e não posso negar que me causa incômodo. E que artista é esse que quer incomodar e não ser incomodado? Considero o humor uma forma de arte, mas discordo efusivamente de humoristas que se colocam num púlpito de imunidade argumentativa. Se eu fiquei ressentido com alguma crítica a ponto de dormir mal, bem feito pra mim. Considero isso muito mais interessante do que essa atmosfera policialesca de proteção semiótica, partindo do princípio que as pessoas estão fragilizadas demais pra ouvir certas coisas.
Já que falei no Ricardo Coimbra, ele fez o prefácio do livro certo? Junto com ele, o Calote e o Bruno di Chico vocês publicaram a Xula no ano passado. O que você vê em comum no trabalho de vocês?
Uma volúpia patológica e infantiloide pela ‘zuêra’.
E volta e meia, quando converso com quadrinistas ou leitores de quadrinhos, o papo acaba chegando numa conversa sobre a cena de quadrinhos brasileiros. É tanta gente publicando e com estilos tão distintos que acho que dá até pra falar em várias cenas. Você concorda? Se sim, você se vê fazendo parte de alguma?
Eu chutaria que essa cena é o segundo grande levante das webcomics no Brasil. O primeiro levante foi o que revelou Arnaldo, Dahmer e Sieber. Agora temos aí uma centena de bons quadrinistas cujo trabalho foi nitidamente influenciado por esses caras.
Pra finalizar: esse é o primeiro volume, você já tem planejado o Dinâmica de Bruto #2? E o filme do Manual de Sobrevivência? Alguma novidade?
O Volume II do Dinâmica de Bruto será a continuação cronológica do blog, com uma seleção dos anos de 2013, 2014 e 2015. O filme do Manual ainda tá nos trâmites iniciais.