Reúno mais uma vez por aqui a íntegra do depoimento de um dos artistas participantes da Série Postal sobre o desenvolvimento do trabalho deles para o projeto. Dessa vez, a quadrinista Cecília Silveira comenta os conceitos, as técnicas e as reflexões por trás do terceiro número da coleção em 2018, batizado de Ausência de Si. Se quiser ter acesso a esse conteúdo com antecedência, siga o tumblr da Série Postal – estou apresentando por lá no momento, os bastidores do trabalho de Deborah Salles já para a quarta edição. A seguir, aspas, rascunhos, textos e ilustrações de Cecília Silveira:
“Eu tinha feito um trabalho pra um professor que ama ficção científica, o Felipe Abranches – professor do Ar.co, aqui em Lisboa e com uma história muito consolidada na banda desenhada em Portugal. O Felipe propôs um desafio de pensarmos cinco vinhetas (quadros) de forma que os quadrinhos não fossem unidades autônomas naquele corte de tempo, que a gente conseguisse refazer um cenário, que a gente conseguisse refazer a imagem total daquele espaço-tempo, que o conjunto das vinhetas fosse mais abrangente. Eu fiz, só não era de ficção científica como ele queria (risos)”
“Eu tinha essas vinhetas prontas: uma era um céu, outra uma vista de cima de uma cidade,… A ideia era fazer um movimento que fosse de cima pra baixo, do céu pro chão, e que a câmera tivesse num plano aberto, indo do macro pro micro. Então o objetivo era fazer um movimento que estivesse descendo e aprofundando”
“Pensando essa possibilidade, esse olhar específico da câmera, não só fazendo os quadros, é que foi o ganho pra mim. Eu tenho uns cadernos nos quais vou fazendo uns rascunhos e depois desenvolvo cada ideia. Então esse rascunho já existia no meu caderno e eu fui melhorando”
“Quando eu fui convidada pra fazer o postal eu logo soube o que ia criar, então o grande desafio foi: eu já tinha feito um tratamento em preto e branco e podia ser colorido, mas como reunir esses cinco quadros em um espaço de um postal? As cinco vinhetas, como eu tinha desenhado, não iam caber nesse espaço. Essa sobreposição das artes foi a parte mais complicada do processo, mas o quadrinho ganhou muito com ela”
“Todas as coisas que faço tem algo de poesia, o texto tem um peso muito grande no processo. Não penso nunca apenas as imagens, penso as duas coisas juntas. Antes de trabalhar com quadrinho em trabalhava com música. Eu trabalhei com a cantora Erika Machado durante sete anos, eu era letrista, a gente se conheceu na Belas Artes, em Belo Horizonte. Era um processo contínuo de fazer música e texto e eu não deixei de fazer isso, mas agora eu faço quadrinhos”
“Me interessa que a cor seja um instrumento narrativo, como ocorre nessa história. O azul vai conduzindo para essa coisa terrosa do fim. Essa é uma história em que eu tento extravasar as vinhetas, os quadrinhos, com as cores, de forma que fique meio sujo e tosco. Na verdade ficou até bonitinho, eu queria que tivesse ficado mais podre (risos) pra deixar claro essa coisa do processo, das múltiplas camadas”
“Eu comecei tudo no Photoshop e depois fui pro manual. Essa coisa da materialidade é algo muito português que acabou entrando no meu trabalho. Eles são velho mundo, então é comum nas BDs daqui esses puritanismos, como fazer na mão e tal. Mas isso foi bom, eu já tinha parado de desenhar há muito tempo e voltei a rever as contradições e distorções do meu desenho. Vou aceitando cada vez mais o acaso e o erro… O erro não, o acaso”
“Eu fiquei obcecada com a ideia de fazer caber esse quadrinho que eu já tinha desenvolvido no espaço de um cartão postal. Foi mesmo um desafio e o resultado é um outro objetivo, completamente distinto do que eu já tinha feito, com outra relação espacial. As sobreposições ajudaram muito esse trabalho e deram essa forma de poesia. As cores também contribuíram e deram essa cara de cair da tarde”
“Eu tinha acabado de assistir uma conferência no doutorado de uma pintura que chama Ana Marta. Na conferência ela fazia uma sobreposição entre uma obra do Julio Verne, O Raio Verde, com o Fragmentos do Discurso Amoroso do Roland Barthes e o trabalho dela como pintora. Ela disse que buscava o ápice da luz natural nos objetos e o romance do Julio Verne fala desse ápice do pôr-do-sol e existe mesmo esse fenômeno óptico, chamado de Raio Verde. O terceiro quadrinho do postal, com o casal em um desencontro amoroso, é verde. Eu tava com isso na cabeça, com essas coisas todas quando fiz o postal. Essa justaposição entre um texto filosófico e também poético do Barthes com o desencontro amoroso, que também tem a ver com o pano de fundo da história – a perda de tempo e o desvanecer da vida… Então tá tudo aí”