Dalton Cara, Magenta King e a criação do universo de Black Emperors: “Queremos buscar o que só uma página de HQ pode oferecer em uma narrativa”

Os quadrinistas Dalton Cara e Magenta King retornam ao FIQ de 2011 quando lembram da origem do projeto Black Emperors. Encerrado o Festival Internacional de Quadrinhos, num bar de Belo Horizonte, em uma noite de domingo, eles tiveram a ideia de uma HQ assinada pelos dois mostrando o confronto de uma gangue de skatistas contra outra de bicicletistas com ares sobrenaturais. Sete anos depois, já com um prólogo lançado, Black Emperors: Bikes vs SK8s está em campanha de financiamento coletivo no Catarse.

Segundo os artista, o principal estímulo para finalmente colocar o projeto em prática foi uma aula do quadrinista norte-americano Paul Pope em São Paulo. Inspirados pela abertura do autor de Battling Boy e Batman: Ano 100 em relação aos seus processos criativos, Cara e Magenta conceberam um manifesto que guiaria tudo relacionado a Black Emperors. Essencialmente, eles estabeleceram como principais preceitos que o processo de criação do projeto deveria ser aberto ao público, totalmente manual e divertido para eles.

O prólogo de Black Emperors: Bikes vs SK8s chegou às lojas em julho, poucos dias após eles terminarem a revista durante a última aula de um curso na Quanta em que ocorreu grande parte da produção da HQ. Da mesma forma, Bikes vs SK8s está sendo produzido enquanto o financiamento coletivo do projeto está no ar. A ideia é que seja finalizado no último dia da campanha. Conversei com os dois quadrinistas sobre a origem do projeto, suas inspirações e os desafios auto-impostos por eles . Eu já apoiei o projeto no Catarse e recomendo procê – assim como acho que vale a pena seguir as páginas de Cara e Magenta no Facebook e no Instagram (aqui, aqui, aqui e aqui) pra acompanhar ao vivo o desenvolvimento dessa empreitada. A seguir, falas dos autores de Black Emperors:

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A origem do projeto

Magenta King: A origem do projeto explica o que ele é. A ideia surge em 2011, no primeiro FIQ que participamos. Acabou o evento e fomos num bar, num buteco, domingo a noite, lá em Belo Horizote. Tivemos a ideia de fazer um quadrinho de uma gangue de bikes contra uma gangue de skates. “Isso é sensacional! temos que fazer!”, aí passaram seis anos (risos). Nunca rolava e cada um ia fazer outra coisa.

Dalton Cara: Fizemos um monte de coisa nesse meio tempo e temos uns quatro ou cinco roteiros diferentes pra essa ideia. Quando criamos chamava só Bikes. Na época parecia que estávamos repetindo a mesma ideia do primeiro que fizemos juntos, chamado EP. Então acabamos deixando um pouco de lado, parecia a mesma coisa, mas em outra escala. O EP era esse confronto de músicos, uma página de um contra a página do outro, sempre um ganhava e finalizava a página toda. Era muito sobre quem a gente tava ouvindo, desenhamos todos os caras de rock’n’roll que gostávamos.

Magenta King: Essa parada já não era tanto pra quem gosta de super-heróis, nós não gostamos tanto de super-heróis. O EP foi a mãe desse projeto atual e quando terminamos pensamos, “a gente veio do design e nossa piração é outra”, queríamos falar com outro público, que curta música e design também.

Eu não sabia andar de bicicleta e nem de skate, até hoje não sei de bicicleta (risos), mas ficamos com esse negócio na cabeça. Fizemos o 5/5, eu fiz o 9 Horas e ele o Don Juan e aí resolvemos retomar esse ano. Calhou de vermos uma masterclass do Paul Pope e tudo mudou. Saímos de lá pensando que precisávamos produzir.

Dalton Cara: Acho que isso rolou pra todo mundo que esteve naquela aula. Ele trouxe tudo pro nosso mundo, foi muito simples e entendemos que não está nada no céu e inalcançável.

Magenta King: Ele começou dizendo que não ganha dinheiro com quadrinhos. Ponto. Eu também trabalho com outras coisas pra poder fazer o meu quadrinho. E ele comentou que não se trata de ser virtuoso em desenhar figura humana, é compreender o seu trampo, que ele pode ir pra tantos lugares diferentes e você não precisa viver de quadrinhos.

Dalton Cara: Eventualmente você pode até viver de quadrinhos. Também tem uma coisa assim, não precisa ser seu único interesse como pessoa criativa só fazer quadrinhos, eu gosto de fazer animação e design, não é motivo de vergonha fazer outros trabalhos, tem outras legais que alimentam os quadrinhos.

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Magenta King: Tem uma coisa legal que sempre batemos na tecla nos nossos cursos: você não precisa só desenhar e entregar e tá pronto. Tem que pensar no trampo todo, na lombada, no design. sendo seu, assim como esse trabalho é nosso. Você tem que tomar conta de tudo ou então você vira um operário do quadrinho, só vai desenhar. Eu não quero só desenhar, quero controlar tudo. Já ouvi que nenhum desenhista vai escrever tão bem quanto um roteirista e isso é um absurdo. Tudo pode se aprender, entendeu? Posso não ser magistral na escrita mas posso dominar muito bem o meu desenho e contar uma história do caralho.

Dalton Cara: Então esse é o enredo que queremos contar, a arte que queremos fazer, com o melhor design possível, melhores fontes, melhor forma de divulgação. É preciso tentar entender todas as etapas, sabe? Tudo bem, às vezes você pode saber mais desenhar ou mais escrever, mas é legal ter conhecimento sobre os dois se vai fazer quadrinho. Quando você vê que alguém pode passar mais tempo pensando na página do que desenhando, o desenho pode virar algo até substancial.

A influência de Paul Pope

Dalton Cara: Nós já estávamos concebendo o quadrinho, mas aula dele foi um empurrão por essa busca por coisas novas. Passamos a pensar um processo que fosse mais interessante também. A gente precisa escrever essa história de um jeito que seja legal e não apenas uma obrigação de seguir um roteiro à risca e que o desenho não vire um peso.

Magenta King: O Paul Pope explicou que trabalha de forma muito aberta. Ele escreve a ideia principal em que quer investir e depois vai trabalhando nas páginas. Ele pega a página e vai escrevendo do lado do quadro um monte de considerações, trabalhando junto com o desenho. Ele não distingue o roteiro e o desenho, é tudo junto.

Aí se um cara dessa magnitude abriu o trampo dele pra gente ver, sem qualquer pudor em mostrar, também queremos que as pessoas nos vejam produzindo. Vendo como a gente trampa.

Dalton Cara: Você pode aprender mais vendo alguém desenhar. Eu meio que sempre segui uma fórmula, escrevia um roteiro, depois ia pra página… Aí refleti que talvez fosse melhor parar um pouco com isso. A aula dele foi pra abrir a cabeça nesse sentido. “Cara, seja um pouco mais flexível na abordagem, como você encara o trabalho”.

O manifesto concebido por Dalton Cara e Magenta King listando conceitos e princípios que fundamentariam a razão de ser de Black Emperors
O manifesto concebido por Dalton Cara e Magenta King listando conceitos e princípios que fundamentariam a razão de ser de Black Emperors

A criação do manifesto

Dalton Cara: Um dia eu sentei e fiz um manifesto com tudo que estava envolvido na produção desse quadrinho. A Simone, namorada do Magenta, também está muito envolvida e é ela que nos põe de volta ao chão. Uma vez que discutimos mais esse manifesto, nós três listamos o que mais estava faltando, o que não podia ser e nos dividimos em um volume de coisa que cada um ia desenhar.
São 32 páginas, isso que é possível ser feito dentro de 30 dias. É um projeto com início, meio e fim, que precisa ser finalizado em 30 dias. Precisamos desse resultado rápido. Mesmos os testes precisavam ser rápidos, pra sabermos qual direção seguir.

Magenta King: Havia dois motivos pra isso. O primeiro: a gente não podia perder a vontade de continuar produzindo. O segundo: se formos parar pra produzir, criar um hype e depois o Catarse, precisava ser rápido. Nos comprometemos com a Quanta, vamos fazer quatro sábados de produção e no quinto lançar. Foi meio que isso mesmo.

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Dalton Cara: Batemos a estrutura muito antes. O que dá pra fazer? Cada um faz metade, 32 páginas, 16 pra cada, é possível. Tinha que caber nisso. Pegamos esse manifesto e a estrutura e fizemos caber. Dividimos em capítulos e fizemos uma descrição do que rolaria em cada um. Não tínhamos claro quem ia fazer cada parte e passamos essa decisão pros alunos.

Magenta King: Já tínhamos dado esse mesmo curso antes, num molde em que não gostávamos. Eram duas aulas pra cada professor. Dessa vez trabalhamos todas as aulas, sempre juntos, falando sobre o geral e entrávamos nos assuntos durante três horas. Porra! são 12 semanas, 12 aulas em que podemos aplicar em tempo real o que estamos fazendo. A última aula terminou com as minhas 16 páginas e as 16 páginas do Dalton e colocamos todas na mesa. Os caras ficaram impressionados de terem acompanhado tudo do início ao fim.

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Dalton Cara: E extrapolamos para além das aulas, nos comprometemos com as lives e as fotos, muito processo. Acho que o Black Emperors no fim nasceu por processo. Ele existe pra entender o que é fazer quadrinhos pra gente e como é fazer de um jeito mais interessante, como tentamos elevar o nosso jogo. Como eu melhoro o meu desenho? Como eu me divirto mais? É processo.

No começo bateu uma insegurança minha em relação ao roteiro, então tivemos essa base de quatro capítulos de oito páginas cada um. Listamos o que acontecia e os ganchos pros capítulos seguintes, do ponto A até o B, mas o trajeto poderia ser diferente. O roteiro era aberto o suficiente para talvez o Magenta pegar e mudar completamente o que acontece e não se perder depois. A gente sabia onde ia chegar

Magenta King: Tínhamos alguns pontos muito importantes. A gente se comprometeu a não ter texto, queríamos fazer tudo na mão, não queríamos nenhuma intervenção digital – retícula eu fiz com adesivo, é tudo manual. Não queríamos texto, também pra ficar fácil de mandar pra fora. Quando acabou a aula do Paul Pope ele foi muito gente boa e continuou em contato, com o cara falando sobre o trampo e mandando referências, começamos a pensar que queríamos que chegasse em mais gente se ele também tava gostando.

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Restrições e roteiro

Dalton Cara: Nos incomodou muito quando fizemos o EP das pessoas classificarem como uma “piração”. Eu queria que as pessoas entendessem. Eu tinha um ponto, por mais que fosse uma coisa muito absurda. Mesmo com todas as nossas regras e propostas, é importante que as pessoas entendam o que aconteceu. Se só eu tô me divertindo, vira punheta, sabe? Todo mundo na sala me olhando, mas ninguém tá acompanhando. Isso rolou com o EP, talvez lá a gente tenha se perdido em algumas coisas e isso nos marcou muito.

Por isso fizemos algo com precisão agora, um resumo a partir do qual começamos a trabalhar. Percebemos, por exemplo, que tava difícil criar vínculos com muitos dos personagens. Fizemos um roteiro, mas sabendo que era só um mapa e não precisava ser seguido a risca. Nos demos essa liberdade.

Magenta King: Isso é uma coisa que conseguimos fazer por causa da cabeça aberta do Dalton que sabe que eu vou entregar em algum momento. Ele sempre entrega, eu não… Tô fazendo, não mostro nada, chega na última semana e saí tudo de uma vez. Desde o EP é assim, só ia chegando email com duas páginas e eu na última semana precisava fazer e tirava do nada. A gente trabalha muito bem junto, mas eu não sei se conseguiria fazer com mais ninguém. Todos os outros que eu fiz mais próximo de alguém acabei fracassando, não curti o resultado final ou foi muita treta.

Dalton Cara: No EP eu fiquei mais nervoso, o FIQ tava vindo e eu achei que não ia rolar. Dessa vez a gente já se conhece o suficiente pra saber que cada um vai fazer e isso é muito difícil. Não chegamos nenhuma vez perto de brigarmos e isso por nos conhecemos muito bem. Ele entende que sou muito pragmático em relação a algumas coisas.

Estilos e registros

Dalton Cara: Eu me aproximei muito das referências do Magenta no processo, eu queria desenhar diferente. Eu fazia as coisas no jeito do Don Juan e uma hora encheu o meu saco, começou a ficar repetitivo e eu precisava chegar num outro lugar, ser melhor. Comecei a olhar algumas coisas que ele gosta e outras que eu queria fazer diferente.

Magenta King: Nessa pré-produção dividimos muito em função dos pontos mais fortes de cada um. Eu gosto de roteiro, mas sofro muito pra escrever. Ele é bom nisso e eu sou mais do design…

Dalton Cara: E isso do design, incluindo o visual dos personagens, foram decisões do Magenta. Como eles são, o visual da revista,… Ele é muito bom nisso. Eu sou da estruturação do roteiro e do projeto, mas é claro que um dava um monte de pitaco no trabalho do outro. Eventualmente, quem resolveu cada parte era quem dominava melhor cada coisa.

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Magenta King: O roteiro e a arte ficaram consistentes por termos ambos bem resolvidos. No final, a produção foi solta pra caramba, nunca tivemos nada nos travando, tinha uma página que o roteiro previa quatro quadros e eu fiz 20. Cara, Não tem nenhum balão e precisávamos passar a informação de outra forma. É um quadrinho mudo, apesar de acontecer muita coisa era preciso que as pessoas demorassem pra ler.

Dalton Cara: Mesmo o roteiro… Aquela sequência inteira que mostra o passado da menina não tava no roteiro. Foi tudo decidido na página, era preciso frear a leitura e criar mais empatia e decidimos isso na hora, percebemos que era preciso criar um relacionamento ali. Ru precisava explodir o subterrâneo e por isso ela precisava usar o isqueiro antes, então voltamos lá atrás e criamos esse tique em que ela fica brincando com o isqueiro, o que justifica tudo o que fizemos lá na frente.

Magenta King: Tem muitaque coisa que a gente também abriu mão. mas no próximo, vai ser um capítulo cada um, mas com uma história muito mais complexa, vamos aumentar a escala do Black Emperors, aumentar a escala do desafio.

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Dalton Cara: Como vamos lidar com texto? Com capítulos maiores? Vai entrar cor ou não? Isso tudo vai ser decidido. Também estamos contando com essa parte de documentação de processo muito grande, o projeto nasceu disso, mas queremos talvez documentar isso também no papel.

Magenta King: Isso volta ao começo de tudo, no Paul Pope novamente (risos) Ele tem um livro que é uma coletânea de ensaios e trabalhos sobre fazer quadrinhos e tal. Lá ele fala do processo e é muito aberto. Na época que li pela primeira vez não entendi nada. Hoje eu acho muito importante ver sobre a produção, ver um texto de quem produziu, assistir um vídeo da pessoa fazendo,…

Dalton Cara: As pessoas não falam das restrições e expor isso tudo deixou tudo ainda mais divertido. As restrições, as regras do jogo que estabelecemos entre nós dois. Eu podia estar trabalhando às 4h, mas tava divertido e eu queria ver a página pronta. No Don Juan eu sofri e agora foi muito diferente.

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Ramon Vitral

Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista e nasci em Juiz de Fora (MG). Edito o Vitralizado desde 2012 e sou autor do livro Vitralizado - HQs e o Mundo, publicado pela editora MMarte.

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